Você sabe o que é dinheiro? Parece uma pergunta idiota. É claro que você sabe o que é dinheiro. Mas eu quero que você pense um pouco mais e responda: você sabe mesmo o que é dinheiro? Não precisa comentar, apenas pense se você saberia explicar para um garoto de 12 anos que bateu à sua porta e perguntou “o que é dinheiro?”
Dinheiro é valor. E valor é retribuição, gratidão, utilidade e importância. Quando você recebe um salário, talvez pense que está trocando seu tempo de vida por dinheiro. Mas é o contrário: as pessoas estão te dando dinheiro por você ter dispensado um pouco do seu tempo de vida, de sua atenção, sua habilidade e força e capacidade, para ajudá-los. E quando você percebe que dinheiro é “seu tempo de vida, sua atenção, sua habilidade, sua força e capacidade”, entende que receber dinheiro de alguém é, indiretamente, receber tudo isso dessa pessoa em troca. Ele só está te dando dinheiro porque é mais prático (e mais útil) do que retribuir em tempo, atenção, habilidade, força e capacidade.
Dinheiro é um pacto social. Em vez de carregar ovos para comprar um carro, um granjeiro pega um papel avalizado pela sociedade em troca dos ovos e, com muitos papéis daquele, ele troca na loja por um carro. O dinheiro é um documento público que atesta o valor da sua produtividade, do seu trabalho, do seu tempo. Governos não fazem dinheiro. É o povo que faz. Somos eu e você, servindo uns aos outros, sendo úteis para todos. Dinheiro é isso.
Quando você entende isso, começa a entender como funciona a variação cambial, a inflação e os preços das coisas. Os preços dos ovos, da carne e do leite, da pedra britada e do cimento, do Xiaomi e do iPhone, dos móveis e dos imóveis, dos carros e dos aviões. O preço é o tempo, a atenção, a habilidade, a força e a capacidade de todas as pessoas que colocaram aquele produto/serviço na sua frente. Por que o iPhone é mais caro que o Xiaomi? Por que dinheiro é “retribuição, gratidão, utilidade e/ou importância”. Se as pessoas dão mais importância para o iPhone, ele vale mais. E se vale mais, pode ser mais caro. É basicamente isso.
Há pouco mais de dez anos eu sonhava em fazer intercâmbio na Europa. A universidade tinha um convênio com universidades portuguesas, o custo da mensalidade era quase o mesmo. Eu só precisaria trancar a faculdade, juntar uma grana, fazer a rematrícula e iniciar o intercâmbio. Para fazer o planejamento, eu peguei as notas fiscais do supermercado das ultimas semanas, e fui ver quanto custaria para comprar a mesma coisa em Portugal. Essa é uma dica boa, se você planeja passar um tempo fora: acessei os sites dos principais supermercados tugas (portuga é coisa de brasileiro, português fala “tuga”), baixei os folhetos de ofertas e comecei a calcular. Foi aí que me deu o estalo do valor das coisas.
O quilo do tomate custava € 0,99. Eu pagava R$ 6,10. O tubo de pasta de dentes Colgate custava € 0,93, eu pagava R$ 5,70. O quilo da coxa/sobrecoxa de frango saía € 1,99; eu pagava R$ 11,50. O xampu que eu pagava R$ 13,50, lá custava € 2,20. Então a ficha caiu. Os preços dos mantimentos, da comida, dos itens de primeira necessidade, são os mesmos no mundo todo, com pequenas variações devido a tributos e produção regional — a carne bovina no Brasil, por exemplo, é mais barata que na Europa, porque somos os maiores produtores do mundo. Mas fora esses fatores de influência, os preços acabam se equivalendo — as variações são parecidas com as variações de preço em diferentes supermercados. Ou seja: o que você gasta aqui, é o mesmo que gastará lá.
Com os carros é parecido. Em 1993, quando a expressão “carro popular” ganhou força, motivada pela redução da alíquota do IPI para o valor simbólico de 0,1%, que se aplicava a carros com motor de até um litro (ou para Fusca, Chevette e Kombi), desde que eles custassem até US$ 7.200. Ou seja: o carro popular de 1993 custava US$ 7.200. Esse valor, hoje, corresponde a US$ 13.600 (porque o dólar também tem inflação; não é só o real). Na cotação de hoje, US$ 13.600 são R$ 70.950.
Mesmo se você fizer o câmbio de 1993 e corrigir o valor pelo IPCA (a inflação oficial, calculada pelo IBGE), o valor atualizado será semelhante. Em 4 de fevereiro de 1993, dia em que o protocolo do carro popular foi assinado, os US$ 7.200 equivaliam a CR$ 119.376.000, cerca de R$ 50.000 em valores de hoje.
Não é por acaso, portanto, que os carros mais baratos do mercado custem entre R$ 50.000 e R$ 70.000. O Ford T, em 1914, seu primeiro ano “cheio” na linha de produção, ainda não beneficiado pela imensa economia de escala que ele atingiria anos mais tarde, custava US$ 454, que são US$ 12.400 em 2021 — praticamente o mesmo que os US$ 13.600 do carro popular atualizado. Percebe o padrão?
Não é coincidência. É o valor do carro popular. O valor de sua produção. Um carro popular dificilmente custará menos que isso, porque este é o valor mínimo para ele ser viável. Para pagar tudo o que precisa ser pago e ter uma lucratividade condizente com o trabalho — e que permita novos investimentos.
Por isso, quando se fala que “o Brasil é o enésimo país mais caro para alguma coisa”, não significa que o produto X é mais caro aqui. Significa que a proporção entre o preço do produto X e a renda média do brasileiro é maior do que em outros países. Quando vou ao supermercado e vejo que o quilo do patinho custa R$ 35, eu acho caro porque comparo o preço do quilo do patinho ao meu salário. Mas… se eu convertesse o preço do patinho para dólar e euro, veria que o quilo deste corte custa US$ 6,90 / € 5,85. E se fosse comprar esse mesmo quilo de patinho na Europa, não pagaria menos de € 10. Ou seja: a carne é barata. Nós é que ganhamos pouco.
Com os carros acontece o mesmo. O Hyundai Creta, lançado hoje por R$ 107.490, custa, na Rússia, 1.500.000 rublos, equivalente a cerca de R$ 105.000. Seu equivalente americano, o Kona, custa US$ 18.750, ou R$ 97.750. A comparação, claro, só vale para carros produzidos localmente — se você importar, é evidente que o preço ficará mais alto. Mas você verá, nos preços dos carros, um padrão semelhante com o da lista do supermercado.
E aqui é a hora em que você já está montando o argumento do Salário Mínimo. Não precisa fazer isso. Eu faço: o salário mínimo não pode fazer nada a respeito disso. Primeiro, porque ele é um valor de referência — normalmente usado para remunerar os trabalhos mais simples, com menos qualificação. Depois, porque a maioria das pessoas recebe mais de um salário mínimo e, por isso, não serve como referência de poder de compra.
O problema é que, mesmo os trabalhadores que têm uma renda mensal acima da média nacional, ganham pouco se comparadas aos trabalhadores de outro país. Veja: a renda média nacional é R$ 2.308. A renda média dos trabalhadores com ensino superior completo, é de R$ 5.108. Estes valores, em dólares, correspondem, respectivamente a US$ 442 e US$ 980 — ou US$ 5.300 e US$ 11.760 por ano. É muito pouco.
E aqui voltamos àquela história do que é o dinheiro. O dinheiro é o valor que você produz. E aqui não estamos falando de valor da vida, do valor do tempo, do valor da amizade, mas de valor financeiro. O que você produz para a sociedade. E, no mundo globalizado, onde nossa carne é exportada e nosso combustível importado, nossas laranjas são exportadas e nossas maçãs são importadas, nosso algodão é exportado e nossos eletrônicos são importados, o valor financeiro do seu trabalho é medido de acordo com o que você produz globalmente.
Você pode entender o valor do nosso trabalho pelo PIB per capita, por exemplo. O Brasil é a sétima economia do mundo (sétimo maior PIB), mas temos a quinta maior população do planeta. O Canadá tem menos gente que o estado de São Paulo, mas tem o décimo maior PIB do planeta. Como eles conseguem isso? Por que eles não têm o borracheiro de quinta-feira.
O trabalhador brasileiro — e aqui estamos todos nós incluídos — . E não pense que é por preguiça ou falta de talento: a produtividade tem muito mais a ver com a qualidade da formação técnica e sua atualização, com a infra-estrutura das empresas, com a burocracia de um país e até com sua carga tributária.
A improdutividade resulta no infame Custo Brasil. Como nossa produtividade não é tão eficiente quanto poderia, levamos mais tempo, gastamos mais dinheiro e consumimos mais recursos para produzir o mesmo que em outros países. Em resumo, nossa improdutividade custa caro.
Mas ela custa caro para nós. Para quem nos remunera, ela é barata, porque nosso trabalho é menos valioso financeiramente do que o trabalho de um americano ou de um alemão.
E é por isso que o Brasil , e os EUA e a Alemanha são, respectivamente, o segundo lugar e o sexto lugar mais barato para se manter um carro. Por que a comparação é feita relativa ao salário anual. Os custos são parecidos, a diferença está na renda. O americano gasta 54% de sua renda anual para comprar e manter um carro. O alemão gasta 78% de sua renda anual para comprar e manter um carro. O brasileiro gasta 442% de sua renda média anual para comprar e manter um carro — 8,2 vezes menos que um americano e 5,6 vezes menos que um alemão.
Não quer dizer que somos burros, mas que não temos opção. Assim como não tínhamos opção de compra de um telefone nos anos 1990. As linhas eram caras, o serviço era caro e, em alguns casos, mesmo tenho dinheiro e idoneidade para comprar uma linha, você não tinha a linha disponível. As pessoas precisam continuar vivendo suas vidas apesar da alta do dólar, dos preços dos carros etc. É uma questão de adaptação e prioridades. Os preços vão continuar altos para sempre?
De volta à pergunta do início do texto, o dinheiro não é imediatista. O dinheiro depende da espera. Os maiores investidores do planeta sabem que o dinheiro não se multiplica da noite para o dia, mas ao longo dos anos. Da mesma forma que você passa 11 anos na escola, quatro, cinco, sete anos na universidade, seis meses como estagiário, um ano como trainee. Da mesma forma, os preços não vão se resolver da noite para o dia. Mas identificar o problema é um bom começo.