Laura Ferrari era uma mulher machucada e amargurada. Abandonada, ela negocia seu próprio futuro com o marido e abre mão de seu patrimônio em nome de um pouco de paz de espírito. Ainda assim, a personagem parece uma alma perdida, vagando pelo mundo sem saber o que fazer. Pudera: em 1957 ela ainda vivia o luto pela perda de seu único filho e já era bem ciente das aventuras extra-conjugais de seu marido, que fizeram de seu casamento uma mera formalidade do passado.
Isso é o que conta o filme “Ferrari”.
Mas… como era a verdadeira Laura Ferrari, a mulher com quem Enzo teve seu primeiro filho e a quem Enzo protegeu sua honra a ponto de colocar todo o seu legado em risco? Como ela chegou ao ponto em que conhecemos no filme e o que aconteceu com ela nos anos seguintes, até sua morte, em 1978?
A história do casal Ferrari começa em uma noite de 1918, em uma rua próxima à estação Porta Nuova, em Turim. Enzo tinha 20 anos e trabalhava na Costruzioni Meccaniche Nazionali, uma empresa que convertia caminhões da guerra em carros para uso nas estradas. Sua função era dirigir os chassis rolantes à encarroçadora em Milão. Laura Dominica Garello era pouco mais nova que Ferrari, tinha cerca de 18 anos na época, e trabalhava como dançarina. Descrita por Enzo como “bonita, loira, elegante, pequena e com olhos encantadores”, ela impressionou o jovem motorista que se encontrava sozinho e longe de casa.
Como o encontro aconteceu é algo que muitos historiadores já se perguntaram. A região da estação era famosa pelo entretenimento noturno e Enzo Ferrari, na época, era apenas um jovem anônimo. Esse encontro, seja lá como ele tenha acontecido, não é o tipo de coisa que se registra para a posteridade.
O fato é que, quando Enzo Ferrari começou a ganhar notoriedade, por volta de 1921, ele e Laura já formavam um casal. Vivendo em Modena, Enzo dividia seu tempo entre a esposa, os carros de corrida da Alfa Romeo, e sua futura encarroçadora, a Carrozzeria Emilia, a qual estava ainda batalhando para estabelecer. O casamento aconteceu somente em 1923, mas desde as primeiras cartas trocadas, Enzo a chamava de “Laura Ferrari”. Ali começava a parceria que se mostraria tão importante quanto controversa na história da Ferrari.
O casal não poderia ser mais diferente. Enzo era um homem reservado, avesso a viagens e à exposição pública. Gostava de estar cercado por um grupo de amigos próximos, era um grande líder e podia ser tão astuto quanto manipulador. Os óculos escuros ajudavam nessa aura misteriosa. Nem mesmo o sucesso dos seus carros era capaz de tirá-lo da região de Modena, onde vivia e trabalhava, e mantinha uma rotina intocável.
Laura, por sua vez, não tinha medo de enfrentar o mundo. Não recusava a oportunidade de viajar e mesmo durante o namoro com Enzo, passava seu tempo livre visitando a irmã ou a mãe, ou passava semanas sozinha na Riviera Italiana. O próprio relacionamento com Enzo Ferrari era uma evidência da personalidade de Laura, pois ele não era aprovado nem pela mãe de Enzo, tampouco pela família Garello, que temia pelo futuro da filha ao lado de um piloto de corridas. Mais tarde, ela passou a viajar não apenas para os eventos de corrida, mas, também para resorts onde poderia descansar e se recuperar de crises de depressão induzidas por estresse emocional, como ficaria claro nas cartas que trocava com Enzo.
As crises do casal começaram cedo, logo após o casamento. O primeiro inverno de Laura como esposa de Enzo foi em um hotel na Riviera Italiana, sozinha, pois Enzo estava na Suíça auxiliando o representante local da Alfa Romeo no desenvolvimento de um modelo voltado ao público local. Além disso, Laura tinha ciúmes das mulheres que frequentavam as corridas de carro e procuravam se aproximar dos pilotos, e frequentemente acabava discutindo com o marido por isso. Apesar do ciúme, ela o acompanhou a algumas corridas, como na vitória de Ferrari sobre Tazio Nuvolari no Circuito de Rovigo.
Na maior parte do tempo, contudo, Laura estava nas montanhas ou no litoral ou então com sua família, em Turim, sempre sob o pretexto de precisar de descanso. O tom das cartas começou a mudar: Enzo deixou de chamá-la “Laura Ferrari” ou “Bibi” ou mesmo “Laura caríssima” para dirigir-se a ela apenas pelo nome, e passou a enviar mensagens em que reclamava por ela não estar ao seu lado, e tentava convencê-la a voltar a Modena e passar mais tempo junto dele.
Era uma relação instável. Mesmo após a criação da Scuderia Ferrari, Laura passava boa parte do tempo com sua irmã em Turim, mas ainda assim se interessava pelo funcionamento da equipe, sempre de olho nos gastos da empresa. Ela também estava presente na primeira vitória da equipe, a subida de montanha Trieste-Opicina de 1930, vencida por Tazio Nuvolari a bordo de um Alfa Romeo P2 — Laura aparece ao lado do carro, que tinha Nuvolari e Enzo no cockpit.
Os altos e baixos da relação haviam feito Enzo perder a esperança de se tornar pai quando Laura lhe disse que ela estava grávida. Algumas semanas depois, em agosto de 1931, após terminar em segundo lugar uma corrida am no Circuito di Tre Provinci, Enzo encerrou sua carreira como piloto. Seu filho nasceu em janeiro de 1932 e foi batizado Alfredo em homenagem ao pai e ao irmão de Enzo, ambos com o mesmo nome, que haviam morrido de pneumonia em 1916 em um intervalo de 11 meses.
Logo após o nascimento de Dino (de “Alfredino”, diminutivo italiano para “Alfredo”), a família mudou-se para um apartamento acima da garagem e oficinas da Scuderia. Era ali que Enzo, agora representante oficial da Alfa Romeo na Emília-Romagha, receberia seus clientes. Também seria ali que, nos anos seguintes, Laura se dedicaria ao filho Dino. O garoto, ainda na infância, apresentou sintomas preocupantes do que seria diagnosticado mais tarde como Distrofia Muscular de Duchenne, uma doença neuromuscular genética que causa lesões degenerativas e irreversíveis ao tecido muscular.
Àquela altura, contudo, Enzo Ferrari já estava envolvido com uma jovem chamada Lina Lardi, que conhecera na Carrozzeria Orlandi, fabricante de carrocerias para seus Alfa Romeo. Não demorou para que ele a contratasse para trabalhar na Ferrari e até mesmo a levasse em algumas viagens de negócios a Milão. Enzo também instalou Lina em uma casa de campo em Castelvetro di Modena, que ficava convenientemente situada no caminho entre sua casa e a fábrica da Ferrari, o que permitiu incorporar à sua rotina diária visitas à moça.
Quando Dino tinha 13 anos, quando Lina Lardi deu à luz seu meio-irmão, Piero, em 1945. Apesar da doença, Dino foi à escola e à faculdade, formou-se engenheiro e trabalhou como projetista junto de seu pai, até sucumbir à doença em 1956, aos 24 anos. A tragédia abalou ainda mais a já instável relação de Laura e Enzo — que já havia piorado quando o casal tomou conhecimento de que a cepa de distrofia muscular era uma herança genética transmitida por um dos cromossomos da mãe.
Sem o filho e ciente da amante de seu marido, Laura passou a se envolver com as finanças da Ferrari, tentando controlar gastos que considerava desnecessários, chegando ao ponto de acompanhar a equipe nas reuniões de corrida. O envolvimento de Laura, claro, incomodava os homens de confiança de Enzo e chegou ao ponto de, no final da temporada de 1961, o gerente de vendas Girolamo Gardini deu a Enzo um ultimato: se Laura não cessasse a interferência na empresa, ele deixaria a Ferrari. Enzo não aceitou a chantagem e demitiu o homem.
Diante da situação, outros oito funcionários de confiança de Enzo, por meio de um advogado, enviaram uma carta com o mesmo teor. Todos foram demitidos, no episódio que se tornou conhecido como “A Grande Debandada” ou “The Great Walkout” ou ainda “A Revolta do Palácio”. O que aconteceu com Laura Ferrari após esse episódio, contudo, é pouco conhecido.
Segundo o próprio Piero Ferrari, Laura tomou conhecimento de sua existência por volta de 1957. Sete anos depois, aos 19, Piero estava na Ferrari, trabalhando com seu pai. As últimas fotos de Laura Ferrari nos autódromos, representando a equipe, datam de 1961 e são anteriores ao motim dos funcionários.
No ano seguinte, 1962, Enzo presenteou sua esposa com uma primeira edição de sua autobiografia. A dedicatória do livro (Le Mie Gioie Terribili/Minhas Alegrias Terríveis) não dizia “Para minha querida esposa” nem “Para a querida Laura” ou “Para a mulher que esteve ao meu lado em todos os momentos”, ou mesmo “Para Bibi”. Em vez disso, ele dedicou a cópia dela “À mãe de Dino”.
Consta que Enzo teria dito a Romolo Tavoni, o diretor da equipe de corridas, que acabou demitido, que “um homem deve sempre ter duas esposas”. Em 1961, em meio à todo o caos de sua vida pessoal , Enzo escreveu: “Estou convencido de que, quando um homem diz a uma mulher que a ama, ele quer dizer que a deseja, e que o único e verdadeiro amor no mundo é o de um pai por seu filho”.
Laura morreu em 1978, após uma longa doença e 55 anos de casamento. A causa de sua morte é desconhecida — somente as pessoas mais próximas a conhecem e, por isso, a mantiveram em segredo. Em seus últimos anos Laura Ferrari viveu às margens do Adriático, em uma casa onde Enzo passava os fins de semana e feriados. Sua verdadeira relação com o marido também é um mistério. O que se sabe é que ela viveu uma vida errante em seus últimos anos, e se tornou ainda mais fechada à medida em que o tempo passava.
Segundo Brock Yates, autor do livro que inspirou o filme, a morte de Laura afetou profundamente Enzo. “No fim, ele ficou triste e vazio por perder Laura, uma vez que aceitara há muito um casamento que era mais uma negociação do que uma união de amor. Eles foram amantes, parceiros, antagonistas, conspiradores, amigos, inimigos, rivais e companheiros combativos ao longo de cinco décadas de uma luta que viu ambos elevarem-se das classes mais baixas da Itália à proeminência nacional”.
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