zEu avisei. E eu detesto dizer isso, porque só digo isso quando alguma coisa deu errado — apesar de tudo indicar que não tinha como dar certo. Não sou vidente, nem mágico, afinal — sou apenas um profissional que passou os últimos 5.290 dias em uma imersão automobilística, para usar um termo da moda.
Esse aviso veio em 6 de outubro de 2017, quando foi ao ar uma matéria intitulada “O Carro Elétrico Será Viável em Escala Universal?”. Ela foi feita antes do hype dos elétricos. Antes de a Tesla valer US$ 1 trilhão, antes de a Europa determinar o fim da combustão. A conversa nasceu junto do slogan “O futuro é elétrico”, tão repetido nos últimos anos. Deu trabalho, mas recompensou. Sete anos depois, a matéria recebeu um destaque da SAE em seu prêmio de jornalismo, e tem questionamentos pertinentes até hoje.
Durante os últimos anos, contudo, para muita gente ela pareceu uma teimosia de quem gosta de carro. Uma negação, a recusa de que o mundo onde crescemos e que aprendemos a gostar, estava deixando de existir. Essa sensação se amplificou especialmente entre 2022 e 2023, quando várias fabricantes — incluindo a Porsche — decidiram matar carros icônicos para fazer modelos elétricos. Depois, vimos o boom dos elétricos no Brasil — a BYD quebrando recordes de venda e os carros elétricos ganhando cada vez mais espaço. Parece mesmo um momento de mudança.
Ou… talvez seja só uma tendência passageira. Como foi a TV 3D, a paleta mexicana ou a jaqueta puffer. No papel os carros elétricos são vantajosos para determinados perfis de consumidores. Falei sobre isso em uma pensata há algumas semanas (abaixo). Quem roda muito, por exemplo, acaba compensando a desvalorização assombrosa dos elétricos. A economia com combustível será tamanha que, mesmo que o carro seja vendido por seu peso para a reciclagem, ele terá valido a pena.
Você rejeita o carro elétrico pelo que ele é, ou pelo que ele representa hoje?
Para muita gente, contudo, ele não é viável. Da mesma forma que uma picape cabine simples não é para todos, tampouco um SUV de cinco metros e sete lugares. Como opção ele é válido, mas como única alternativa, como querem impor, o negócio complica. Veremos isso mais adiante.
O papo aqui é algo mais concreto que mera opinião ou gosto. São as evidências de que a euforia do carro elétrico está passando e a realidade está se impondo como a força da natureza que ela é.
Vocês viram por todos os lados — aqui no FlatOut, também: os fabricantes anunciavam eufóricos cada modelo elétrico novo que iria pavimentar a estrada para o futuro da marca e da mobilidade. Projeções otimistas mostravam como os elétricos iriam crescer nos próximos anos e todas elas tinham um discurso politicamente desejável sobre a salvação do planeta pelo uso de eletricidade em vez de coisas que fazem fumaça. O mercado financeiro não ficou atrás: os planos para o futuro afetaram as relações com investidores. Quem não tivesse um plano de eletrificação, ficaria para trás. E ficar para trás era perder acionistas – o que significa, em bom português, perder dinheiro.
Mas o tempo passou e o mercado — não apenas a turma que compra ações e espera retorno, mas também o motorista comum do interior dos EUA, da Índia ou de Minas Gerais — percebeu que não basta força de vontade e pensamento positivo. Isso parecia funcionar nas cavernas, quando a humanidade pintava um cervo nas paredes para “atrair” uma boa caça no dia seguinte. Hoje, no atual estágio de desenvolvimento científico e econômico, não é assim que funciona.
A sensação já estava no ar, mas quem transformou a abstração em algo concreto foram justamente os fabricantes: Ford, GM, Mercedes-Bens, Stellantis, Volkswagen, Toyota, Jaguar Land Rover, BMW, Porsche e Aston Martin recuaram de seus ambiciosos planos de ter a maioria de suas linhas de produto eletrificadas até o fim desta década. Esse negócio de relações com investidores e questões governamentais é algo ingrato. Você sabe que não vai acontecer, mas você precisa do dinheiro e eles precisam ouvir mentiras confortáveis para colocar a mão no bolso e abrir a carteira.
Até mesmo a Tesla, que é a fabricante mais interessada na transição para os elétricos, admitiu que a participação dos carros elétricos no mercado não irá crescer muito rápido — eles disseram que ela “poderá ser notavelmente lenta”. O horizonte que se desenha hoje são linhas de produto mais diversificadas. Um pouco de combustão para quem precisa, híbridos para quem quer, e elétricos para quem pode.
Não é uma solução ruim, se você parar e pensar — talvez as metas de emissões impostas por gente que não perde nada com o fracasso (sim, estou falando de políticos) não sejam atingidas. Mas se elas não forem porque não é possível, bem… é uma questão de aceitar a realidade. Ou questionar se elas não são ambiciosas demais ou até mesmo utópicas. Ainda somos humanos, afinal.
Essa desaceleração na marcha elétrica também pode ser estratégica. Recuar um passo para avançar dois. Esperar o momento certo. Afinal, entre 2021 e 2023 vimos um boom de carros elétricos que ainda estão longe de substituir adequadamente os carros a combustão. E quem teve uma experiência ruim com um carro elétrico, dificilmente voltará a comprar outro. .
O que aconteceu?
Primeiro: o boom dos carros elétricos foi comprado. Governos de todas as esferas em praticamente todos os países concederam incentivos e benefícios para a compra de veículos elétricos, sob a justificativa das emissões e melhoria da qualidade do ar e reversão das mudanças climáticas. A ideia aqui é que os incentivos atrairiam compradores, que conheceriam a tecnologia e acabariam convencidos de seus benefícios, passando a desejar esse tipo de veículo de forma que os incentivos não seriam mais necessários.
É claro que isso não aconteceu. Primeiro porque, como mostrei em nossa série especial “Os Desafios do Carro Elétrico”, ele ainda tem muitos desafios a serem resolvidos antes de substituir plenamente os carros de combustão interna. Aqui, permitam-me citar algumas experiências recentes que tive usando e viajando trechos de até 150 km com elétricos: há um número significativo de carregadores em manutenção, há muitos carregadores de baixa potência e pouquíssimos de alta potência. E a pior parte: você disputa os carregadores com carros híbridos. Isso, sem mencionar as filas em carregadores de alta potência.
LEIA AQUI – OS DESAFIOS DO CARRO ELÉTRICO
Depois, tivemos o problema da pandemia, que afetou drasticamente todos os setores envolvidos no mercado dos automóveis — elétricos inclusive. A escassez de matéria-prima reduziu o volume de produção e aumentou os preços. A inflação e o risco de inadimplência aumentou as taxas de juros para parcelamento dos carros.
E, claro, ninguém ainda decidiu quem é que vai investir o que é preciso investir em infra-estrutura de geração e distribuição da energia usada nas recargas. Parte dos carregadores que encontrei nas ruas não pode operar com sua potência máxima por falta de transformadores adequados para suportar a corrente das recargas rápidas. Pergunte a qualquer fabricante quantos carregadores gratuitos oferecidos por eles estão operando de fato com a potência máxima de recarga.
Para piorar: dinheiro público tem limite. Governos não podem dar incentivos permanentes, porque o dinheiro público é do público. E se o público tiver que pagar mais impostos para comprar carros elétricos, a economia popular entra em colapso. Sem os incentivos, o custo de compra e operação dos carros elétricos aumenta. E aí eles deixam de ser interessantes para os compradores.
Nos EUA, por exemplo, a indústria trabalha com estoque para 78 dias de vendas, mas os elétricos estão em baixa, com estoques suficientes para 136 dias. Note que essa estatística não significa que há o dobro de carros nos pátios, mas que o ritmo de vendas dos elétricos é bem menor.
E o que vai acontecer?
Bem… estamos em 2024 e o que os interesses do mercado e da população não são exatamente a prioridade. Os EUA, por exemplo, estão preparando um novo padrão de economia e emissões para os carros vendidos localmente — que pode resultar até mesmo em multas às fabricantes se o público rejeitar os carros que eles estão vendendo, o que soa absurdo sob qualquer padrão de sensatez.
Na Europa, fabricantes e até governos locais estão em um embate com o Parlamento Europeu — a principal força contrária aos motores de combustão interna —, que vem se mostrando irredutível quanto aos prazos, ainda que isso possa afetar drasticamente a economia dos países membros da União Europeia.
Na prática, os fabricantes irão dançar conforme a música tocada pelos burocratas. E torcer para que alguma destas músicas seja adequada à realidade. Não há muito o que fazer: todos os países de alguma forma têm metas baseadas não na ciência nem nas capacidades tecnológicas atuais, mas em minúcias burocráticas que ditam como o mercado deve andar — é o exato oposto do conceito moderno de democracia.
Se nenhuma legislação mudar drasticamente, o que teremos é a permanência das linhas de produtos atuais, que combinam híbridos, elétricos e modelos a combustão, como mencionei mais acima. Não do jeito que eles devem ser, nem do jeito que o consumidor deseja, mas do jeito que governos permitem que eles sejam. E quem não gostar deles (ou não puder comprá-los), que vá a pé comprar seus brioches.
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