O ano é 2022. A Red Bull, sem dinheiro, não conseguiu desenvolver um carro para a Fórmula 1 e se retirou da competição. A Mercedes desenvolveu um carro revolucionário, chegou a negociar com Max Verstappen, mas na última hora desistiu de participar do campeonato. As equipes de fábrica — Renault, Alfa Romeo, McLaren e Aston Martin — com restrições orçamentárias adaptam os carros de 2021 para o regulamento novo. No fim das contas, somente a Ferrari tem um projeto para a nova temporada. O que fazer para que o campeonato não seja disputado por apenas uma equipe?
Que tal adotar o regulamento da Fórmula 2 no campeonato da Fórmula 1? Assim, além da Ferrari e das poucas equipes remanescentes, o grid recebe as 11 equipes da Fórmula 2 e o desempenho dos carros fica mais pareado. Soa absurdo, não? Imagine colocar Hamilton, Alonso, Vettel e Verstappen de volta em carros de Fórmula 2.
Mas foi exatamente o que aconteceu há 70 anos, no Mundial de Fórmula 1 de 1952. A Alfa Romeo, então campeã do ano anterior com Juan Manuel Fangio, estava endividada e não pôde fazer um carro novo para 1952 e se retirou da competição. A BRM chegou a desenvolver dois carros com motor V16 e negociou com Juan Manuel Fangio, para dividir a garagem da equipe com Stirling Moss, mas desistiu da competição antes do início da temporada. No fim, restou apenas a Ferrari como uma equipe competitiva, então a FIA decidiu organizar o campeonato da Fórmula 1 sob as regras da Fórmula 2, porém sem alterar o regulamento da Fórmula 1.
Com isso, as equipes que disputavam a Fórmula 2, como a Cooper, a Maserati e a Gordini se inscreveram também para o campeonato da Fórmula 1. Na época, o regulamento exigia que os carros tivessem motores de até 750 cm³ se fossem sobrealimentados ou até dois litros se fossem de aspiração natural. A Ferrari disputava a Fórmula 2 desde 1948, corria com a 166 F2, que usava um V12 de 2 litros e 155 cv a 7.000 rpm. Contudo, para aquela temporada, estava na hora de fazer um novo Fórmula 2 — uma tarefa que ficou a cargo de Aurelio Lampredi.
O chassi novamente era feito de aço tubular coberto por uma carroceria de alumínio para manter o peso baixo — na época os F2 pesavam cerca de 550 kg. A suspensão também seguia o projeto do antecessor, com braços triangulares assimétricos na dianteira, suspensos por uma mola semi-elíptica transversal, enquanto a traseira usava o arranjo padrão da época, com semi-árvores oscilantes, mola semi-elíptica transversal e braço De Dion para controlar a variação de cambagem ao longo do movimento vertical da suspensão.
A grande sacada de Lampredi foi abandonar o V12. Parece um contrassenso, ainda mais quando se fala de Ferrari, mas o mago dos motores já estava de olho no futuro: a partir de 1954 a Fórmula 1 correria com motores de 2,5 litros, então ele decidiu projetar um novo motor para aquele novo carro — um motor que pudesse ser desenvolvido naquele ano e aprimorado para as temporadas seguintes.
Pouco antes do verão de 1951, o motor ficou pronto. Era um quatro-cilindros de alumínio, com dois litros de deslocamento, comando de válvulas duplo e três carburadores Weber 45 DCO. Nos testes de bancada ele se mostrou bem mais eficiente que o antigo V12 usado até aquele ano. Era 45 kg mais leve que o V12, o que melhorou sua relação peso/potência em 15%, uma vez que, além do peso mais baixo, ele também ficou mais potente: nasceu com 165 cv e chegou aos 200 cv com o desenvolvimento ao longo do ano seguinte, quando ganhou um par de Weber 50 DCO. Além disso, ele tinha 65% menos partes móveis, o que o tornou mais confiável, também.
Acima de tudo, o motor de quatro cilindros era bem mais curto que o V12, o que permitiu que ele fosse instalado totalmente atrás do eixo dianteiro, otimizando a distribuição de massa desta nova Ferrari. Com dois litros divididos em quatro cilindros, ele deslocava 500 cm³ por cilindro, o que deu origem ao seu nome: Ferrari 500 F2.
A distribuição de peso foi manipulada também pela transmissão de quatro marchas, que foi posicionada sob o banco do motorista, e pelo posicionamento dos magnetos de ignição logo atrás do eixo dianteiro. Com isso, a maior parte dos 560 kg da Ferrari 500 F2 ficava entre os eixos.
A estreia do carro aconteceu ainda em 1951, quando Alberto Ascari e Luigi Villoresi disputaram o GP de Modena daquele ano, uma prova extra-campeonato. Ascari venceu a corrida, mas Villoresi abandonou. Em 1952, antes do início do campeonato, a Ferrari inscreveu o 500 F2 em uma série de corridas pré-temporada. Ascari venceu novamente no GP da Siracusa, no GP de Pau e no GP de Marselha, enquanto Nino Farina venceu o GP de Nápoles.
Imbatível
A primeira etapa do Mundial de F1 aconteceu na Suíça, quando o país ainda recebia corridas desse tipo. Ascari não pôde participar pois estava nos EUA se adaptando a Indianapolis e desenvolvendo a Ferrari 375 Indy. A Ferrari participou da prova com Piero Taruffi e Rudi Fischer, ambos na 500 F2. Taruffi venceu a corrida, enquanto Fischer terminou em segundo.
Quando Ascari voltou dos EUA, ele assumiu o posto ao volante da 500 F2 para realizar um feito inigualado até hoje: vencer todas as provas que disputou no campeonato. Das nove provas daquela temporada, Ascari venceu sete. As outras duas, ele simplesmente não disputou. Note que ele já havia vencido outros quatro Grandes Prêmios com a 500 F2 antes da temporada começar.
Ao voltar dos EUA, ele venceu o GP da Bélgica, o GP da França, o GP da Grã-Bretanha, o GP da Alemanha, o GP da Holanda e o GP da Itália. Ascari, evidentemente, se tornou o campeão daquela temporada pois simplesmente não teve rivais.
O vice-campeão, Nino Farina, o terceiro colocado, Piero Taruffi, e o quarto colocado, Rudi Fischer, também correram a temporada toda com a 500 F2. O piloto com a melhor colocação sem uma Ferrari foi Mike Hawthorn, que correu com um Cooper T20.
Ano novo, nada novo
A temporada de 1953 foi basicamente uma repetição da temporada de 1952. A única diferença é que, para o Mundial daquele ano, a Maserati desenvolveu o A6 GCM que, agora, era mais potente que a Ferrari — embora fosse inferior dinamicamente. Isso permitiu um novo domínio da Ferrari, que venceu sete das nove corridas do Mundial.
Ascari venceu os GP da Holanda, Bélgica, Grã-Bretanha e Suíça, enquanto Mike Hawthorn, agora na Ferrari, levou o GP da França. A Ferrari não disputou a Indy 500 e não conseguiu vencer o GP da Itália, porque Ascari e Farina se envolveram em um acidente, abrindo espaço para Fangio vencer novamente depois de quase duas temporadas inteiras.
Faça as contas agora: foram oito vitórias em oito corridas em 1952 e outras sete vitórias em oito corridas em 1953. Em duas temporadas, a Ferrari 500 F2 disputou 16 provas e venceu 15 delas, sendo 14 consecutivas, se não considerarmos a Indy. Levando em conta apenas as vitórias de Ascari — e, novamente, descontando a Indy, que usava outro regulamento — foram nove vitórias em sequência. E se quiser considerar a Indy, foram sete consecutivas — um recorde que só foi quebrado por Sebastian Vettel em 2013, um campeonato com 20 etapas.
Ao final da temporada, Ascari novamente levou o título, tornando-se o primeiro bicampeão da Fórmula 1 ao superar Fangio, o único a não pilotar uma Ferrari entre os cinco primeiros do mundial. E olha que ela nem era uma Ferrari de Fórmula 1…