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Car Culture

A história real que inspirou o filme “Race for Glory: Audi vs. Lancia”

O próximo ano já irá começar acelerado para nós, entusiastas. No início de janeiro estreia “Race for Glory: Audi vs. Lancia”, que promete ser uma combinação de “Rush” e “Ford vs. Ferrari” em um só filme, ambientado na temporada de 1983 do WRC — logo no segundo ano do Grupo B.

Àquela altura, a Audi já vinha dominando os estágios com o Quattro e sua quase invencível tração integral, quando a Lancia decidiu que, para combatê-lo, iria usar um carro de tração traseira mesmo, feito à moda italiana. Ainda não dá para saber qual será a abordagem do filme, mas como ele é baseado em uma história real, podemos antecipar um pouco do que veremos nas telas conhecendo essa história de fato.

E ela começa alguns anos antes, no final dos anos 1970, quando um dos engenheiros do alto escalão da companhia, Jörg Bensinger, inspirou-se no Volkswagen Iltis, utilitário construído pela VW sob encomenda do exército alemão entre 1978 e 1988.

Em 1977, durante testes com o novo “jipe” — que tinha um sistema de tração integral que usava os robustos componentes do Audi 100, maior modelo da marca na época —, Bensinger percebeu que o protótipo do Iltis era mais rápido que qualquer outro veículo na neve, não importava o quão potente fosse o outro veículo.

Foi ali que ele teve a ideia de criar uma variação do Audi 80 com tração integral.

 

Audi Quattro – a revolução dos ralis

A base foi a versão cupê do Audi 80 de segunda geração — aquele que tem parentesco com o nosso Volkswagen Santana que, por sua vez, é nada mais que a segunda geração do Passat na Europa.

audiquattro

O sistema do primeiro Audi Quattro, desenvolvido em conjunto por Bensinger e Walther Treser, diretor de pré-desenvolvimento com o apoio de Ferdinand Piëch, então diretor de desenvolvimento técnico, não era muito diferente daquele usado pelo Iltis, e era tão primitivo que não tinha nem diferencial central — algo que foi incorporado ao modelo de produção depois que a esposa de Bensinger usou o protótipo por algumas semanas e reclamou do fato de o carro ser difícil de estacionar.

O diferencial central tornava mais eficiente a distribuição do torque entre os eixos, adaptando-se um pouco melhor a diferentes situações. Como era o primeiro modelo a usar a tecnologia, o Audi Quattro foi feito com algumas adaptações — e a mais notável delas era o próprio diferencial central, que consistia em um segundo diferencial dianteiro posicionado longitudinalmente no eixo cardã. É uma solução simples e engenhosa, utilizada até hoje no mundo todo.

O Audi Quattro foi apresentado em março de 1980, no Salão de Genebra e foi colocado à venda no fim daquele ano, sendo produzido até 1991. Sua história nos ralis, contudo, é mais breve e muito mais intensa, mas seu sucesso entre o público foi tão grande que o que deveria ser só uma série de homologação tornou-se uma linha esportiva que durou onze anos (1980 a 1991) e ainda introduziu uma tecnologia que não só é usada até hoje mas também é uma das marcas registradas da Audi, ao lado dos motores turbo — ao menos na era pré-downsizing.

Na verdade, o Audi Quattro foi o primeiro carro a usar a combinação de turbo tração integral que ficaria famosa em modelos como a perua RS2.

Já em 1980 o Audi Quattro começou a ser usado em competições de rali, ainda que longe do WRC, e se mostrava um carro um tanto pesado e complexo. Contudo, também mostrava clara vantagem de aderência, que se traduzia em uma sensível vantagem contra o relógio. Este carro é conhecido como Ur-Quattro, que pode ser entendido como “o Quattro original”.

audiquattro (5)

A estreia do carro de competição no WRC aconteceu na temporada de 1981. O Audi Quattro era equipado com um cinco-cilindros de 2,1 litros montado em posição longitudinal que, com comando simples no cabeçote, injeção e turbo, entregava 305 cv na versão de competição (eram 160 cv na versão de homologação).

Naquele ano, o carro teve três vitórias — duas com o finlandês Hanu Mikkola e uma com a francesa Michèle Mouton — a primeira vitória de uma mulher no WRC. Contudo, como já vimos, aquele foi o ano do Ford Escort RS1800 e do Talbot Lotus Sunbeam. A glória do Quattro chegaria no ano seguinte.

O ano de 1982 viu uma das maiores mudanças da história do WRC: o Grupo 4 seria extinto e, em seu lugar, nascia o Grupo B. A nova categoria virava tudo de ponta-cabeça: em vez de competir com um carro de rali baseado em um modelo de rua, as equipes fariam o contrário — desenvolveriam primeiro a versão de competição e depois, a versão de homologação para as ruas. Valia praticamente tudo, desde que respeitados certos limites (beeeem tolerantes) de potência, e o carro poderia ser um modelo de rua modificado ao extremo ou um protótipo feito do zero.

Naquele primeiro ano as equipes ainda estavam descobrindo o que fazer em seus carros e, por isso, o grau de engenharia insana ainda era comedido. Mesmo assim, as novidades foram bastantes para tornar o WRC uma competição ainda mais extrema — que o Audi Quattro levou de lavada. Em 1982, entre os pilotos da Audi estavam Michèle Mouton, Hanu Mikkola e o sueco Stig Blomqvist. Walter Röhrl ainda estava com os rivais da Opel.

E foi Röhrl que, apesar da bela sequência de vitórias de Michèle Mouton, levou o título de pilotos daquele ano. O alemão subiu ao lugar mais alto do pódio três vezes e a francesa três, mas Walter Röhrl foi mais consistente e conquistou seu segundo e último título do WRC na carreira. De qualquer forma, um hipotético título de Michèle Mouton (que chegou perto, com 97 pontos contra 109 de Röhrl) só deixaria ainda maior a alegria da Audi, que levou para casa o primeiro título do mundial de construtores com 116 pontos — 12 pontos de vantagem sobre a segunda colocada, a Opel.

Para o ano seguinte, sem nenhum carro integral desenvolvido há tanto tempo e com o nível de sucesso do Quattro, seria fácil para a Audi repetir a dose. A menos que alguém fizesse um carro melhor em tempo recorde. Seria possível? Bem… o único jeito de descobrir era tentando.

 

O Lancia 037

Com o Audi Quattro dominando a competição, a Lancia sabia que precisava de algo igualmente radical para recuperar as vitórias. Àquela altura, o WRC completava dez anos, e estava em sua 11ª edição. A Lancia era a fabricante com o maior número de títulos no Mundial de Rali (considerando a temporada de 1972, quando a competição ainda não tinha esse nome).

Por isso, os italianos foram radicais na hora de projetar o Rally 037 — era preciso, pois o Audi Quattro era forte demais na competição. O trabalho ficaria com a Abarth — que havia conquistado os três títulos da Fiat —, e a base seria o Lancia Beta Montecarlo, esportivo de motor central-traseiro produzido entre 1975 e 1981. O carro, de perfil baixo em formato de cunha, foi projetado pela Pininfarina e teve pouco menos de 8.000 unidades fabricadas e foi vendido nos EUA como Lancia Scorpio.

Com o regulamento debaixo do braço, a Lancia descobriu que poderia fazer alterações extensas no Montecarlo. No fim, do carro original só sobrou a seção central da estrutura, com portas e para-brisa. Todo o resto era bem diferente: todos os painéis da carroceria eram diferentes, e eram instalados sobre estruturas tubulares na dianteira e na traseira. Tanto que ele precisou de uma série limitada de rua para homologação — não foi possível usar o Montecarlo para isso.

O motor era muito parecido — em ambos os carros, era o quatro-cilindros de dois litros projetado por Aurelio Lampredi. Contudo, havia algumas diferenças fundamentais: o 037 recebeu um cabeçote de 16 válvulas para melhor rendimento — unidade que veio diretamente do Fiat 131 Abarth — e foi instalado em posição longitudinal (no Montecarlo era transversal) para dar mais espaço para o sistema de suspensão e melhorar a distribuição de peso.

A mudança mais importante, porém, era o sistema de indução forçada. Se a norma da época era usar turbocompressores, a Abarth decidiu-se por um compressor de polia Volumex, entregando 0,9 bar de pressão — o que fica fácil de entender quando se lembra que, naquela época, os turbos ainda sofriam muito com o lag, prejudicando o desempenho do carro enquanto a turbina não “enchia”.

A versão de homologação foi lançada primeiro. Foram fabricados 207 exemplares (o mínimo eram 200) do Lancia 037 Stradale, que tinha cabeçote de oito válvulas e entregava 205 cv — um número respeitável em 1982.

O carro de competição era ainda monstruoso. O cabeçote de 16 válvulas (e outras modificações não reveladas, como sempre) garantiam que a potência ficasse em pelo menos 255 cv nos primeiros carros, que competiram ainda em 1982. Por uma infelicidade, o câmbio ZF de cinco marchas apresentou problemas ao longo de toda a temporada, e por isso a Lancia amargou um fraco nono lugar no campeonato. O melhor resultado foi um quarto lugar no Rali da Grã-Bretanha, com Markku Alén ao volante.

Para 1983, a Lancia trouxe um carro aperfeiçoado e ainda mais potente, com algo entre 310 e 325 cv. Foi o bastante para garantir que aquela fosse, de longe, a temporada mais disputada da história do WRC.

 

A temporada de 1983

Além do carro renovado, a Lancia trouxe para a temporada de 1983 ninguém menos que Walter Röhrl, o campeão de pilotos do ano anterior, correndo com um Opel Ascona — a Audi faturou só o título de construtores.

Além dele, eles mantiveram Markku Alén e outros sete pilotos, dentre os quais, o italiano Attilio Bettega. No outro lado, pela Audi, foram escalados Michèle Mouton — então vice-campeã do mundo — e Hannu Mikkola, entre os onze pilotos que a Audi colocou nos Quattro A1 e A2. Aparentemente o filme irá se concentrar em Röhrl e Mikkola, e na relação dos pilotos com os chefes de equipe — no caso da Audi Roland Gumpert (sim, aquele que criaria a marca Gumpert anos depois), e Cesare Fiorio.

O drama do roteiro está no fato de a Audi ter um orçamento insano, além de duas versões do Quattro e quatro pilotos a mais, enquanto a Lancia tinha um carro praticamente novo, orçamento apertado e sete pilotos.

A primeira corrida foi o Rali de Monte Carlo, disputado sobre a neve do principado. A Lancia, com um carro de tração traseira não teria a menor chance contra um carro de tração integral. Mas… eles conseguiram reverter a situação e ganharam a prova, o que foi uma surpresa até mesmo para Cesare Fiorio e colocou na Lancia a percepção de que eles tinham condições de bater o Quattro.

Claro que eles usaram um pouco das artimanhas típicas dos povos latinos. Fiorio, por exemplo, comprou 300 toneladas de sal e espalhou pelos estágios do rali. Isso derreteu a neve e a Lancia pôde usar pneus slick no início, trocando os pneus durante os estágios. A Audi, com a ingenuidade binária típica dos alemães, não sabia da neve e nem imaginava que alguém pudesse manipular as condições daquele jeito e, por isso, largou com pneus de neve para descobrir só no meio do caminho que eles não seriam necessários. Com isso, a Lancia abriu uma vantagem de 11 minutos e venceu a prova.

Ao longo da temporada as duas equipes disputariam as corridas estágio por estágio. A Audi venceu a segunda e a terceira etapa, com os três primeiros lugares no Rali da Suécia e uma dobradinha no Rali de Portugal, com a Lancia em terceiro. A Opel venceu a quarta etapa, o Safari Rally, mas com a Lancia em terceiro lugar. Na quinta etapa a Lancia fez o mesmo que a Audi, com os três primeiros lugares no Tour de Corse e uma dobradinha no Rali da Acrópole, com a Audi em terceiro.

Alternando vitórias nas etapas seguintes, a Audi e a Lancia chegaram ao final da temporada com cinco vitórias, cada, e 30 dos 36 pontos disputados. Pela combinação de resultados, a Audi conquistou o título de pilotos com Hannu Mikkola, enquanto a Lancia faturou o título de construtores pela quinta vez, firmando-se como o grande nome do WRC até então.

É uma história com final feliz, na qual ninguém perde e todos ganham — a melhor forma de terminar um filme popular, não? E considerando a disputa acirrada ao longo da temporada (e algumas artimanhas italianas), é bem provável que seja um filme com uma evolução de emoções até o último minuto. Um forte candidato a figurar entre os melhores filmes sobre carros já feitos.


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