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Pensatas

A importação de carros usados não será como você imagina

Em fevereiro passado, quando o deputado federal Marcel Van Hattem apresentou seu Projeto de Lei 237/2020, que visa liberar as importações de carros usados no Brasil, escrevi algumas palavras sobre as consequências da importação de carros usados ao Brasil. Passado pouco mais de ano e meio, o projeto foi discutido pela primeira vez no Congresso Nacional em uma audiência pública na semana passada.

Como a discussão pública está aberta, é uma boa hora para aprofundarmos mais neste assunto, trazendo os dois lados da liberdade de importação, os impactos que esse tipo de liberação pode trazer e, claro, alguns exemplos de carros que poderiam ser importados com a aprovação da lei.

 

Por que não importar carros usados?

A proibição de importação de carros usados não é uma regra adotada universalmente. Na verdade, a maioria dos países não tem nenhum tipo de lei que impeça a importação de carros usados. Isso se deve a um simples motivo: a maioria dos países não têm uma indústria automobilística — há menos de 50 países produtores de automóveis em um universo de 195 países.

Mesmo nos EUA, que produziu o maior número de automóveis em toda a história do automóvel, e tem uma  restrição de 25 anos para importação, você é autorizado a importar um carro usado. Ele só precisa ser destinado ao mercado americano (o chamado “U.S. Spec/Specification” ou “especificação para os EUA”). Um cidadão americano poderia, por exemplo, importar um Ford Fusion do México para os EUA mesmo que ele seja usado.

Normalmente o que é proibido é a importação de carros usados que estejam fora dos padrões de segurança e emissões exigidos pelas legislações nacionais. Era o que acontecia com o chamado “grey market” dos EUA nos anos 1980. Os carros eram importados usados e adaptados para os EUA. Muitas adaptações eram mal-feitas, muitos carros não tinham os mesmos itens de segurança que suas versões homologadas nos EUA, e muitos eram objeto de fraudes. Entre os carros mais populares deste mercado paralelo, estavam os modelos Mercedes, o que levou a própria Daimler-Benz a comprar um Mercedes 500SEL 1985 com airbags no “mercado cinza” para entender o que estava acontecendo.

Eles receberam um 500SEL 1984 sem airbags e com os itens de segurança mal-instalados apenas para passar nas inspeções do governo. Foi o ponto de partida para um movimento que culminou com a proibição das importações de usados que não fossem destinados ao mercado americano e que não tivessem 25 anos ou mais, o que caracteriza um “historic vehicle” nos EUA.

Leis semelhantes existem em outros países que permitem a importação de carros usados. O pitoresco “Mongol Rally”, por exemplo, foi severamente afetado pela mudança na legislação de carros importados da Mongólia, que em 2012 impôs um limite e proibiu a importação de carros com mais de 10 anos. No Paraguai a restrição é a mesma: o usado precisa ter até 10 anos, ou é barrado na alfândega.

Mongol Rally: uma aventura épica só para carros populares

O Reino Unido e a União Europeia também permitem a importação de carros usados. Mas você não pode importar qualquer carro, porque eles são submetidos a vistorias para verificar a adequação das emissões ao padrão europeu/britânico, além da necessidade de ter os itens de segurança obrigatórios. É uma lei bem mais permissiva, mas ainda com algum tipo de controle.

Em todos os casos, dos EUA à Mongólia, as restrições são claramente uma tentativa de coibir a importação de carros sujos, inseguros e mal-conservados.

 

Brazil, o Filme

Trilha sonora deste bloco

O Brasil é diferente destes países citados acima. A importação de carros usados é expressamente proibida, com apenas seis exceções previstas pela lei — duas delas se referem ao trânsito de passagem, duas se referem a doação e herança, uma se refere às missões diplomáticas, e a última diz respeito aos veículos históricos. Esta, como você já deduziu, é a exceção que permite a importação dos carros antigos e é semelhante à legislação americana.

O caso brasileiro, contudo, é sui generis. Isso, porque entre 1976 e 1990 as importações de todo tipo foram proibidas. Antes disso, as importações eram dificultadas como medida protecionista. Até 1976 você poderia importar qualquer carro, porém com uma tributação cumulativa superior a 100% do valor do carro em si.

Quando as importações foram liberadas novamente, no início dos anos 1990, o Departamento de Comércio Exterior publicou uma portaria (portaria nº 8) proibindo a importação de qualquer bem de consumo usado. As justificativas na época foram variadas, como o evidente protecionismo à indústria e ao comércio locais. O que fazia algum sentido na época, quando nossa indústria ainda era estritamente localizada, produzindo apenas para o mercado interno.

E aqui você precisa lembrar (ou imaginar) o contexto da época: passamos 14 anos proibidos de importar qualquer coisa. Imagine hoje se você tivesse sido proibido de importar qualquer coisa desde 2007. Era assim que o brasileiro se via em 1990.

A abertura das importações sem nenhum controle poderia resultar em uma verdadeira avalanche de produtos usados de todas as qualidades e estados de conservação — o que poderia colocar em risco a indústria e o comércio, pois eles sequer teriam tempo para se adequar à nova realidade. E nem pense no argumento do livre comércio, pois não existe livre comércio quando o governo impõe uma proibição de 14 anos e depois a levanta da noite para o dia.

Um bom exemplo do que aconteceu com a liberação das importações foi a falência de todas as fabricantes semi-artesanais de automóveis (Puma, Gurgel, Santa Matilde). Protegidos pela proibição (e sem capacidade de competir no exterior por uma economia maltratada), eles simplesmente não resistiram à chegada dos importados. Só que, nesse caso, eram produtos novos dos dois lados. E era apenas um pequeno nicho da indústria automobilística.

Acontece que desde então se passaram mais de 30 anos. O Brasil entrou na lista dos 10 maiores produtores, exportadores e consumidores de automóveis. Mas a lei continuou a mesma. Exatamente a mesma: importados, só zero-quilômetro ou com mais de 30 anos.

 

A discussão

O projeto de lei do deputado Marcel Van Hattem é claramente bem-intencionado. Em sua justificação, o projeto diz o seguinte:

Como toda política protecionista, o modelo de importação atual de veículos prejudica os consumidores porque impede que haja ampla competição e liberdade econômica. No médio e longo prazos, é uma política que reduz a competitividade e a produtividade da indústria protegida. O que nasce como uma proteção setorial acaba por desproteger a sociedade brasileira como um todo.

De fato, existe um prejuízo econômico quando o mercado de usados é limitado aos produtos que foram importados novos ou produzidos localmente. É exatamente o que estamos vivendo neste momento: a queda do volume de vendas entre 2014 e 2018 diminuiu a oferta de usados atualmente. Com os preços dos carros novos inflacionados pela crise global neste setor, resultante da pandemia, a demanda por carros usados aumentou. Como a oferta é limitada e não é permitido aumentá-la pela importação, é um argumento lógico a afirmação de que há um prejuízo econômico na proibição.

Sobre a competitividade e a produtividade da indústria protegida, o argumento também é lógico. Basta observar a própria história da indústria automobilística brasileira durante o período da proibição das importações de carros novos. Tecnologias de emissões, desempenho e segurança não eram oferecidas no Brasil, pois o mercado não era livre para haver concorrência. Ninguém poderia importar um Honda Civic em 1987 para competir com o Escort, ou com o Chevette.

Assim, a discussão sobre a liberação de importações não é apenas oportuna, como também necessária para que o mercado brasileiro possa ser mais competitivo.

 

O outro lado do livre mercado

Agora… livre mercado é uma coisa. Anarquia é outra. Todo mercado precisa de regras. E não existem regras públicas sem a mão do Estado — considerando que o Estado é formado por representantes do povo e de seus interesses. O projeto de lei proposto pelo deputado Van Hattem tem uma falha grave, que precisa ser corrigida para que ele possa ser, de fato, levado adiante e, quem sabe, futuramente aprovado.

A falha está na proposição do artigo 2º:

Art. 2o O veículo de que trata o art. 1o deverá atender aos limites legais de emissões veiculares vigentes no país, relativamente ao seu ano de fabricação e categoria.

Parágrafo único. São meios de comprovação do atendimento aos limites de emissões os índices dispostos na especificação ou no manual do veículo, elaborado por seu fabricante, assim como, entre outras formas, os limites de emissões constantes da norma do país de sua fabricação.

A proposta começa bem: atender aos limites legais de emissões vigentes. Ok. Todo país do mundo faz isso.  O problema está na segunda parte, o parágrafo único: estamos falando de carro usados, cujos vendedores decidiram exportá-los em vez de vendê-los em seus mercados de origem.

Aqui vamos cair com nossos vestidos azuis na toca do coelho: carros exportados, via de regra, são exportados porque não conseguem atender aos limites legais de emissões vigentes em seus países de origem. Não por que são velhos demais, mas por que são, simplesmente, usados. Carros em fim de vida. Carros com desgaste acentuado e manutenção corretiva desvantajosa frente a um carro novo ou melhor conservado.

Carros usados importados em Uganda

Estes carros são enviados em lotes para países pobres ou em desenvolvimento. Países que não têm legislação ambiental referente às emissões dos automóveis. Um relatório de 2020 do Programa Ambiental das Nações Unidas, apontou que 14 milhões de veículos foram exportados para países de renda baixa ou média entre 2015 e 2018, e mais da metade deles foram destinados à África. A União Europeia é a maior exportadora, enviando cerca de 7,5 milhões de veículos para o exterior. E estes veículos são exportados porque não atendem os padrões europeus de emissões/consumo.

Então você tem um carro usado, que já não atende os padrões europeus, porque foi reprovado nas vistorias e testes, que poderia entrar livremente no Brasil com base apenas nos dados impressos no manual, obtidos pela fabricante em testes controlados com o motor novo.

Eu sequer estou questionando a intenção de usar o manual como referência — o que é outro grande equívoco, pois o manual de um carro sequer é um documento oficial, muito menos obrigatório. Nada impediria de se imprimir um manual falso com os números desejados. Mas esse não é o ponto aqui.

O ponto é que o projeto não prevê nenhum tipo de teste do carro a ser importado.Carros a gasolina dos EUA, Europa e Coreia, que foram reprovados em testes de emissões, poderiam entrar livremente no Brasil com base em um dado irreal. Porque o nível de emissões de um carro novo não é o mesmo depois de 15 anos e 150.000 km rodados. Isso abre o caminho para transformar o Brasil em um cemitério automobilístico dos países desenvolvidos. O projeto ainda está na Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, onde será avaliado e, provavelmente, modificado para que não ocorra esta brecha para carros poluentes.

 

Como seria o mercado de importados usados no Brasil?

Completamente diferente do que você está imaginando. Carros são commodities, mesmo usados. Seu preço é basicamente o mesmo no mundo inteiro. Os carros voltados à exportação, contudo, são um pouco mais baratos que a média. E aí entra a questão da qualidade: por que alguém venderia um carro abaixo do valor médio de mercado? Por que o carro está abaixo da média do mercado.

Existem empresas europeias, japonesas e norte-americanas especializadas em exportação de carros usados. Elas compram esses carros rejeitados no mercado interno, embarcam esses carros rejeitados em navios e enviam para países pobres ou em desenvolvimento. A maioria dos países não têm impostos de importação — o México, por exemplo, tem importação livre dos EUA e acabou virando um “lixão automobilístico” dos vizinho do Norte.

Mas o Brasil é diferente, e levanta outro problema do projeto de lei do deputado Van Hattem:

“O montante dos tributos federais incidentes sobre a importação do veículo de que trata o art. 1o não poderá ser superior ao montante incidente sobre os veículos similares fabricados no país.”

O texto faz parecer que os carros importados não pagarão o Imposto de Importação — uma vez que ele é um tributo federal que não é cobrado dos veículos similares fabricados no país. Contudo, a base legal do Imposto de Importação é a Lei 3.244, assinada pelo presidente Juscelino Kubitschek em 14 de agosto de 1957. Para isentar um automóvel do Imposto de Importação, seria preciso criar uma nova lei de importações. Isso significa que antes de o projeto avançar na Câmara, essa questão precisa ser resolvida.

Se ela for mantida como está, os automóveis importados terão que pagar 35% de imposto de importação, calculado sobre o preço do carro somado ao frete, seguro e outras taxas aduaneiras. Depois o veículo terá que pagar entre 7% e 25% de IPI, entre 17% e 19% de ICMS e 11,6% de PIS/Cofins.

Com isso podemos calcular quanto custará um carro importado usado no Brasil. Durante a pesquisa para esta discussão, encontrei alguns revendedores de carros usados para exportação. Entre eles, achei um belo Alfa Romeo 159 Sportwagon 2.2 JTS a gasolina. O carro está com 185.940 km e custa apenas € 4.900. É o tipo de carro que eu consideraria importar, apesar da quilometragem um tanto elevada (você não esperava encontrar carros para exportação com 80.000 km, esperava?).

Considerando que o carro custa € 4.900 (US$ 5.730), com todos os impostos e despesas incidentes sobre o valor aduaneiro (valor do carro, frete e seguro), esta perua 159 Sportwagon 2.2 chegaria ao Brasil por cerca de R$ 70.000. Na prática, multiplique o preço original em dólares por 12 e você terá um valor aproximado, em Reais, do carro no Brasil.

Outro exemplo: Toyota Supra Turbo 1994. Um carro legal, que não veio oficialmente para o Brasil na época, e que poderia ser importado caso a lei fosse aprovada. Ele custa US$ 98.880. Multiplique por 12 e teremos R$ 1.186.000 — entendeu o preço daquele famoso anúncio brasileiro? Essa é a lógica por trás dele. Se importar custa R$ 1.200.000, um carro no Brasil, a pronta entrega, por R$ 1.100.000 fica “barato”. Não estou dizendo que isso funciona — precificação tem muito mais a ver com demanda do que com os desejos do vendedor —, mas esta é a lógica por trás dos preços de alguns bens importados usados.

 

A realidade

Quero concluir esta discussão com uma provocação. O mundo inteiro tem algum tipo de restrição de importação de carros usados. Seja por protecionismo econômico, seja por questões ambientais. Para impedir que o Brasil se torne um cemitério de carros velhos (o que traz problemas não apenas nas emissões, mas também no futuro sucateamento destes carros) também teremos que impor algumas regras. As regras geram custos. Os custos tornam os preços pouco interessantes. Nesse caso, haveria alguma vantagem nesta liberdade de importação?

Os custos também são elevados devido à tributação. Temos 35% de Imposto de Importação. Mais 25% de IPI. Mais isso e mais aquilo e mais outra coisa. Mais taxas e tarifas. Mais IPVA. Novamente, haveria aumento da competitividade com esta liberdade de importação — livre, mas tributada?

Qual será o futuro da indústria automobilística brasileira?

A falta de competitividade do mercado brasileiro em geral, já afirmei nesta pensata acima, se deve em grande parte (grande mesmo) ao inferno tributário que o Brasil impõe a quem produz um automóvel no país. Há benefícios e subsídios diretos, mas considerando os custos indiretos (o ICMS da conta de energia elétrica de uma fabricante, que usa soldas elétricas, por exemplo) continuam ali tornando o Brasil um país em que a produção de automóveis está começando a deixar de valer a pena para alguns fabricantes. É por isso que as fabricantes enxugaram suas linhas de produto, suas equipes de engenharia.

O que está acontecendo com a indústria automobilística nacional?

Se o Brasil não se tornar competitivo na produção, de nada adiantará liberar importação de usados, porque logo teremos que importar também os novos, não por opção, mas pela falta dela. A discussão sobre a importação de usados é importante e deve ser considerada, mas temos um problema maior no mercado automobilístico, e a solução não virá de fora.


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