Todo entusiasta tem, secretamente (ou nem tanto), o fetiche de dirigir nas ruas um carro de competição. Mesmo para quem tem experiência zero na pista, é impossível não fantasiar com esta ideia. Especialmente se o carro em questão for o Porsche 917, com seu insano motor flat-12 arrefecido a ar e duas vitórias nas 24 Horas de Le Mans, em 1970 e 1971. Mas aí… já é sonhar demais. Exceto, claro, se você for membro da família que financiou a criação do lendário protótipo.
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E foi em em 1974, e o homem responsável por esta loucura foi Gregorio Rossi di Montelera, mais conhecido como Conde Rossi. Fã de automobilismo, foi ele quem teve a ideia de patrocinar equipes de corrida, começando em 1962 com a criação da Martini & Rossi Racing Team – naquela época, era preciso criar uma equipe toda para usar uma marca não-relacionada ao automobilismo. Foi só a partir de 1968 que a FIA passou a permitir patrocinadores de outros ramos estampando as carrocerias dos carros.
O carro em questão é o Porsche 917-030, um carro fabricado em 1971 que até chegou a participar de uma corrida mas, na verdade, teve como principal função ser uma plataforma de testes para a então recém-criada tecnologia de freios ABS. Sua única participação em uma prova ocorreu nos 1000 Km da Austria daquele ano, no circuito de Österreichring, com as cores da Martini Racing e os pilotos Helmut Marko e Gérard Larrousse ao volante. Foi a primeira vez que um Porsche com freios ABS participou de uma corrida.
Ainda que o Porsche 917-034 tenha vencido a corrida, com Richard Attwood e Pedro Rodríguez revezando ao volante, o 917-030 não teve a mesma sorte: ele se classificou em terceiro, mas não chegou ao fim da prova por conta de um acidente causado por uma falha na suspensão. Assim, depois de recuperado e consertado, ele voltou a ser uma plataforma de testes por mais algum tempo. Então, em 1972, o 917-030 foi guardado em um depósito.
Mas o carro não ficou parado por muito tempo – só até 1974, quando Conde Rossi entrou em cena. O aristocrata foi até a fábrica da Porsche em Weissach e disse que queria comprar o carro. E mais: ele queria que o protótipo fosse transformado em um carro de rua. E como você diz “não” ao homem que paga suas contas e, de certa forma, é responsável por seu sucesso nas pistas?
Exatamente: você não diz.
A Porsche tirou o 917-030 de seu descanso e começou a trabalhar. Não foi, contudo, uma tarefa hercúlea – uma das exigências do Conde Rossi era que o carro mantivesse sua essência e, por isto, os engenheiros alemães limitaram-se a realizar o mínimo possível de modificações: foram instalados retrovisores nos para-lamas dianteiros, as asas sobre os para-lamas traseiros foram removidas, e um abafador de 911 foi adaptado no sistema de escape. Além disso, a carroceria foi pintada no mesmo tom de prata usado pelos carros da Martini Racing. E, para garantir um pouquinho de conforto em suas trips, o Conde Rossi pediu que o interior tivesse o painel e os bancos revestidos em couro bege. Mais nada.
Até onde se sabe (os detalhes a respeito jamais foram divulgados, dado o segredo em torno do projeto), o conjunto mecânico não sofreu modificações – ou seja, apesar de ser transformado em um carro de rua, o 917-030 continuou equipado com um motor flat-12 de 4,9 litros e pelo menos 600 cv e câmbio manual – e continuou pesando menos de 800 kg. Porque, apesar de sua figura imponente, o Porsche 917 (especialmente na versão Kurzheck, de traseira curta) é um caro pequeno, com pouco mais de quatro metros de comprimento, 92 cm de altura, 1,98 m de largura e 2,3 m de entre-eixos.
Se você está achando que é loucura rodar nas ruas com um carro assim, saiba que as autoridades europeias na época concordariam com você: nenhum país da Europa permitiu que o Conde Rossi emplacasse o carro.
Obviamente que, depois de fazer quase tudo, o Conde não deixaria uma burocrazinha boba acabar com seus planos. Não, senhor: ele simplesmente enviou o carro para os EUA, the Land of the Free, para tentar registrar o carro. E ele conseguiu: o departamento de trânsito do Alabama se dispôs a vistoriar e emitir os documentos do carro, com uma condição – o Conde Rossi jamais deveria circular com o 917 dentro do estado.
Sem problemas, até porque o plano era mesmo voltar com o carro para a Europa e rodar com placas do Alabama. Como naquela época as leis eram mais frouxas, o Conde Rossi não podia rodar com o 917 sem placas. Mas placas estrangeiras queriam dizer que, em algum lugar do mundo, aquele carro era considerado apto a circular em vias públicas. Já era alguma coisa – e o bastante para que o dono da Martini pudesse curtir seu protótipo sossegado.
Gregorio Rossi di Montelera morreu em 2003, mas o carro ainda está na família – hoje em dia, ele está registrado em nome de seu filho Manfredo, que, em raras ocasiões, aparece em algum evento de clássicos. A documentação para circular nas ruas já está expirada (atualmente ele usa placas do Texas, que são apenas decorativas), mas isto não o impede de acelerar na pista. Como aconteceu nas edições de 2009 e 2019 do Goodwood Festival of Speed, comemorando, respectivamente, os aniversários de 40 e 50 anos do Porsche 917.
Depois do carro do Conde Rossi, outros dois exemplares do Porsche 917 foram convertidos para uso nas ruas. Primeiro, foi o 917-021, também conhecido como “Psicodélico” ou “Hippie” por conta de sua pintura em roxo e verde. Sim, é o mesmo carro nas duas fotos abaixo.
Depois, foi a vez do carro 917-037, que atualmente pertence ao colecionador Claudio Roddaro, residente no Principado de Mônaco. Para ser autorizado a emplacar seu carro, ele teve de provar às autoridades locais que seu carro era idêntico ao do Conde Rossi – e, como contamos neste post, ele conseguiu.