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Car Culture

A maior chance que a Ferrari não aproveitou em Le Mans

Os mais atentos e entusiastas já sacaram que o jejum de vitórias da Ferrari em Le Mans, que durava 58 anos, foi iniciado na guerra Ford vs. Ferrari. A Ford venceu em 1966, repetiu a dose em 1967, entregou a operação a John Wyer em 1968 e ele ganhou mais duas vezes com os GT40. A Ferrari, claro, continuou tentando — ela venceu o campeonato de carros esporte, mas Le Mans mesmo, ela nunca mais havia conseguido.

Sua oportunidade mais próxima foi em 1973, último ano em que participou da prova na categoria principal. Na ocasião, com Arturo Merzario e José Carlos Pace ficaram em segundo lugar depois que uma série de problemas mecânicos os fez perder a liderança e encerrar as 24 horas de corrida seis voltas atrás do Matra de Henri Pescarolo e Graham Hill.

Depois disso, a Ferrari só disputaria as 24 Horas de Le Mans em categorias de GT, onde ela até conseguiu vitórias de classe — IMSA GTX em 1981, LMP1 em 1998, GTS em 2003, GT2 em 2008 e 2009, GTE Pro em 2012, 2014, 2019 e 2021, e  GTE Am em 2015, 2016, 2017 e 2021 —, mas nenhuma delas era a categoria principal.

O que aconteceu com a Ferrari depois de “Ford vs. Ferrari”?

Sua maior chance, contudo, poderia ter sido aproveitada nos anos 1990. Notou que nas vitórias de classe há uma “LMP1” em 1998? Pois é… foi justamente nessa época, quando o Mundial de Carros Esporte deixou de ser realizado e substituído por várias outras iniciativas, que a Ferrari poderia ter aproveitado a chance de tentar sair da fila de espera.

Em 1996, quando o “mundial de endurance” foi o BPR Global GT Series, a Ferrari decidiu entrar na briga. O campeonato seguia o regulamento GT1 da FIA, que deu origem a especiais de pista como o McLaren F1 GTR, o Porsche 911 GT1 e a até a Ferrari F40 GT/LM, que corria nas mãos de equipes independentes. Para disputar o campeonato, contudo, a Ferrari não usaria a F40, que já estava fora de produção desde 1992. O carro para esta nova incursão no endurance seria seu novo supercarro, a F50.

Ferrari F40 e F50 em Araxá: dissecamos os detalhes da dupla mais exclusiva do Brasil

A arma nada secreta do carro era o V12, derivado do motor Tipo 036 da Ferrari 641. Ele teve o deslocamento ampliado de 3,5 para 4,7 litros e ganhou comandos mais comportados, um novo trem de válvulas e novos sistemas de admissão e escape para sair da F1 e rodar nas ruas. Apesar da domesticação do motor, ele ainda produzia 520 cv a 8.000 rpm e 47,9 kgfm. Com o câmbio de seis marchas, o V12 levava a F50 de rua aos 100 km/h em 3,7 segundos, com velocidade máxima de 312 km/h.

Era o carro perfeito para enfrentar a concorrência. Afinal, o McLaren tinha um V12 naturalmente aspirado de seis litros e 636 cv, enquanto o Porsche 911 GT1 (que era basicamente um protótipo do Grupo C com alguns componentes de carroceria do 911) era movido por um flat-six de 3,2 litros com dois turbos e pelo menos 640 cv. Ambos tinham a potência restrita a cerca de 600 cv para adequar-se ao regulamento da FIA.

Para transformar a F50 em um carro capaz de rivalizar em igualdade e superar estes concorrentes, a F50 GT, a Ferrari ainda deu ao motor uma maior taxa de compressão, novos comandos de válvulas, fluxo retrabalhado nos cabeçotes e uma nova calibração do motor, providenciada pela Michelotto, que trabalhava junto da Scuderia desde o fim da década de 1970. Sem qualquer tipo de indução forçada, a Ferrari conseguiu extrair mais 240 cv do V12 da F50, chegando a insanos 760 cv a 10.500 rpm. O torque foi para 52,9 kgfm a 8.000 rpm.

a dianteira recebeu entradas de ar maiores e um spoiler mais pronunciado e a traseira perdeu a asa integrada, que deu lugar a uma peça fixa de visual mais tradicional e agressivo. Ela também deixou de ser conversível, recebendo um teto de fibra de carbono com um duto de admissão para o motor.

O interior foi aliviado, perdendo o pouco de refinamento que a F50 tem nas portas e no assoalho e ganhando uma gaiola homologada para a categoria GT1. Nos três protótipos feitos em 1996, até mesmo o banco do carona foi removido. Com isto, a F50 GT ficou 322 kg mais leve que a versão de rua – de 1.231 kg para 909 kg. Relação peso potência: 1,2 kg/cv

A suspensão usava amortecedores ajustáveis Koni nas quatro rodas — e as rodas originais deram lugar a um jogo da Speedline, de 20 polegadas. Os discos de freio eram de carbono-cerâmica, muito parecidos com os utilizados na Fórmula 1 na época. Na prática, a F50 se tornava um carro de F1 fechado, com dois lugares e rodas cobertas.

Agora imagine isso em uma época na qual praticamente nenhuma fabricante estava investindo nas 24 Horas de Le Mans. Em 1996, por exemplo, a Porsche só colocou o nome no protótipo que disputou a corrida. Quem construiu o carro e operou a equipe foi Tom Walkinshaw. Tanto que o Porsche WSC-95 que venceu Le Mans em 1996 e 1997 era um Jaguar XJR-14 (também de Walkinshaw) modificado para se adequar ao regulamento. Ele sequer parecia um protótipo da Porsche.

A ausência das fabricantes foi o que facilitou o caminho da McLaren à vitória em 1995 — e não foi pela própria McLaren, mas por uma equipe cliente. Tanto que naquele ano e no ano seguinte, em 1996, ainda não havia o F1 Long Tail, que foi desenvolvido pela McLaren para manter o F1 competitivo. Foi somente em 1997 que a McLaren colocou uma equipe oficial de fábrica na disputa.

A F50 poderia ter disputado, portanto, a classe LMGT1, a mesma do McLaren F1 e do Porsche 911 GT1. Esta categoria, embora fosse baseada em carros produzidos em série, tinha um ritmo de corrida praticamente idêntico ao dos LMP1. A própria Ferrari tinha um carro no páreo, a 333SP, que era feita pela Dallara com um motor Ferrari, mas sem envolvimento oficial da fabricante.

Acontece que os carros jamais passaram da fase de pré-produção. Sabe-se lá por que o desenvolvimento levou tanto tempo, mas até 1998 a Ferrari só tinha três protótipos. Naquele ano o BPR Global GT foi transformado no Campeonato de GT da FIA, mas a Ferrari decidiu cancelar o projeto.

O motivo, claro, nunca foi divulgado, mas lembre-se que 1996 foi o ano em que Michael Schumacher estreou na Scuderia. Foi uma época de treinos e testes ilimitados — algo que Michael Schumacher ficou conhecido por fazer incansavelmente. É bem provável que, diante da possibilidade de voltar a ser campeã da Fórmula 1 (afinal, havia um jejum por ali também) e da instabilidade do regulamento do endurance mundial, a Ferrari tenha cancelado o projeto da F50 GT para se concentrar na F1.

Note também que a Ferrari só voltou a Le Mans depois de dez anos do atual Mundial de Endurance e com um regulamento que mantém os orçamentos contidos, o que corrobora para a hipótese de que o endurance nos anos 1990 ficaria caro demais para quem tinha Schumacher e testes ilimitados na F1. A F50 certamente seria limitada a 600 cv como foram todos os GT1 daquela era, mas com menos de 1.000 kg e com todo o DNA de Fórmula 1 do carro, é difícil imaginar um cenário no qual ela não brigaria por vitórias.


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