Há exatos 50 anos, a indústria automobilística estava em uma situação semelhante à atual. Os padrões estabelecidos nos 50 anos anteriores estavam se quebrando, uma nova realidade precisava ser desenhada para o futuro. Aconteceu em dois momentos, como acontece toda crise: primeiro aos poucos, depois, de repente. As fabricantes, pegas de surpresa por algo que já vinha se desenhando lentamente, tiveram que improvisar e atuar em modo de crise. Foi um dos períodos menos inspirados da história do automóvel, que acabou apelidado como “malaise era” pelos jornalistas americanos.
“Malaise” é uma palavra sem tradução exata, que designa aquela mistura de mal-estar com fraqueza e indisposição generalizada que a gente sente quando se recupera de uma doença, por exemplo, sem conseguir identificar a origem. Era como se a indústria estivesse se sentindo assim.
O momento atual não é exatamente uma nova “malaise era”, porque o problema não é a indisposição, o mal-estar. É o contrário: a indústria está muito disposta a resolver seus problemas, o problema é que ela não sabe onde precisa chegar, e por isso não sabe como começar. É uma combinação de incerteza, preocupação e impotência. Quando foi a última vez que você viu um fabricante errar grosseiramente na concepção de um esportivo, como aconteceu com a Mercedes-AMG e seu C63 de quatro cilindros? Ou fracassar assombrosamente com um SUV de ponta, como a BMW e seu XM? Ou ainda, cometer uma ação potencialmente suicida de suspender vendas de carros por um ano, como a Jaguar está prestes a fazer. E o investimento em carros de baixíssimo custo, como se estivéssemos em 1945?
É claramente um momento de transição como foram os anos 1970. E o resultado não poderia ser diferente do que estamos vendo em 2024. Desde o desaparecimento do carro popular como algo acessível, até a nova geração de hipercarros.
Um exemplo é o McLaren W1, que foi lançado como o sucessor do P1 e, segundo a própria McLaren, como herdeiro do F1, mas não quebrou nenhum paradigma e traz como grande trunfo números de aceleração de zero a 200 km/h e de zero a 300 km/h, um nível de downforce jamais visto em um carro de rua e nada muito além disso. Nenhuma inovação no design. Um carro que é superado por seus próprios pares da casa, como o Speedtail, que é superior a ele em quase tudo, exceto os trunfos mencionados três linhas acima.
Outro exemplo é o desafio da Porsche, que está atirando para todos os lados na esperança de acertar um dos disparos. Ela tem um desafio enorme para o sucessor do 918 Spyder — falei disso nesta matéria. Seus 911 GT chegaram a um nível altíssimo em Nürburgring, e um hipercarro precisará superá-los por uma ampla margem, como o 918 fez há 10 anos. Mas como fazer isso com tantas limitações impostas pelos governos? As mesmas limitações que provocaram uma convergência de soluções dos engenheiros, não pela criatividade, mas pela falta de alternativas possíveis.
É por isso que não teremos uma nova guerra dos hipercarros como vimos em 2013. Ela será parecida na forma, mas não na função. Primeiro, por que não teremos um Porsche tão cedo. Depois, por que esta nova geração de hipercarros não será uma revolução, mas um refinamento do que vimos há 10 anos, com foco em elementos menos tangíveis e compreensíveis ao público. Não é algo de apelo primitivo como um ronco de V12 ou um V8 biturbo que cospe fogo pelo escape. Nem uma tecnologia que parece inacessível ao homem comum.
Esta nova geração de hipercarros tem foco em pormenores técnicos tão distantes do público em geral, que eles se tornam desinteressantes. Somos animais, no fim das contas. Os instintos primitivos, ainda que domados para a civilidade, são o que nos movem. Números e minúcias são secundários, e colocá-los em primeiro plano, seria como ir a um show para curtir a pirotecnia e os equipamentos, em vez de dançar a música.
A esta altura, depois de 643 palavras, você talvez esteja se perguntando o que isso tem a ver com a nova Ferrari F80. Bem… olhe para ela e pense nela como a sucessora da 288 GTO e da F40, em vez da LaFerrari. E aí você vai entender. Comparada ao seu rival britânico, a Ferrari entregou muito mais, admito correndo o risco de ser visto como um fanboy da marca. Não é o caso, pois nenhuma Ferrari moderna me provocou os instintos primitivos. A questão aqui é que a Ferrari conseguiu fazer algo notadamente superior a tudo o que ela oferece no momento e capaz de superar o que há de melhor em outras marcas — incluindo o pobre W1.
A configuração mecânica básica, um hipercarro híbrido com aerodinâmica avançada, é o que já vimos na LaFerrari. Claro, aqui um passo acima, e fortemente influenciado pela Ferrari 499P que venceu as 24 Horas de Le Mans duas vezes. Ela tem tração integral — algo inédito em uma Ferrari dessa linhagem — e, pela primeira vez em 35 anos, dispensa o V12 em favor de um motor turbo. O caso aqui é o V6 biturbo F163, em uma derivação própria para este modelo.
Muita gente dirá que isso é um problema, pois é o mesmo projeto básico da Ferrari de entrada, a 296 GTB. Mas ele também é o motor usado na 499P, e considerando todo o resto do carro, ela realmente está muito mais para 499P que para a 296 GTB. Além disso, a F40 também usava uma derivação do motor do carro de entrada, a 328 GTB, mas isso não foi um problema para a turma das redes sociais na época.
Nessa configuração, o V6 de 120 graus da Ferrari tem nada menos que 900 cv produzidos com ajuda dos dois turbos elétricos de 48 volts — aqui é importante notar que os turbos são eletrificados, mas ainda funcionam com os gases de escape. E apesar de ter 2,9 litros e dois turbos, ele vai até 9.200 rpm. A metade elétrica do conjunto é formada por um motor traseiro integrado ao V6, como era na LaFerrari, com 95 cv, e um par de motores elétricos no eixo dianteiro, cada um com 140 cv para proporcionar tração e vetorização de torque. Com uma bateria de 800V e 2,28 kWh projetada para descargas rápidas, esse conjunto é capaz de entregar 383 cv de uma só vez. Apesar de toda essa potência disponibilizada apenas pelos motores elétricos, a F80 não tem um modo 100% elétrico.
A potência total combinada é de 1.275 cv, a mesma do McLaren W1. A Ferrari, porém, é mais pesada — são 1.525 kg contra 1.399 kg do W1 –, culpa do eixo dianteiro eletrificado. Mas o peso extra é compensado pela capacidade de saídas de curva/aceleração e tracionamento em situações de baixa aderência. É por isso que a Ferrari, ainda que tenha 126 kg a mais, é capaz de acelerar de zero a 100 km/h em apenas 2,1 segundos, enquanto o W1 leva 2,7 segundos. A corrida até os 200 km/h, contudo, é mais acirrada: o W1 faz em 5,8 segundos, enquanto a Ferrari precisa de 5,75 segundos — um empate técnico.
Os dois carros, como se nota, são conceitualmente muito semelhantes. Como o McLaren, a Ferrari também usa componentes de suspensão impressos tridimensionalmente, também há suspensão ativa e ajustável em carga, e ela também dispensa as barras de torção em favor de um sistema eletro-hidráulico como os McLaren. Os freios também têm discos de carbono-cerâmica e as rodas da Ferrari também são feitas de fibra de carbono. A semelhança não é mero acaso: uma fonte ligada à indústria revelou que muitas pessoas-chave no projeto da Ferrari também trabalharam no W1. Lembra da convergência de soluções que mencionei mais acima?
Esses detalhes todos são o que restou do apelo emocional do carro. Onde ele realmente se destaca, infelizmente, é nos detalhes técnicos minuciosos. Por exemplo: a F80 traz a versão mais atualizada do Side Slip Control da Ferrari, uma configuração usada exclusivamente por ela, ao menos por enquanto. É o velho cruzamento de dados de sensores e atuadores para tornar o carro mais responsivo, atualizado com mais refinamentos. É algo que pouca gente poderá experimentar e menos gente ainda irá perceber a diferença — por isso, é irrelevante para a imagem do carro.
As configurações do motor são interessantes: há o modo híbrido, para uso geral, e os modos de pista Performance e Qualify — que aproximam a F80 da 499P e me fazem pensar que este carro deveria ser batizado 499P Stradale. O modo Performance é o que será usado nos track days, economizando a bateria para manter o desempenho do carro mais constante ao longo do stint. O modo Qualify é para quando você quer fazer uma volta rápida, pois ele prioriza as assistências ao máximo, sem se preocupar com a descarga de energia. O recurso mais interessante, contudo, é o chamado Boost Optimization. Nele, a ECU “aprende” o traçado da pista e mapeia a entrega de potência elétrica de acordo com a demanda do traçado, fazendo a variação automaticamente.
O ponto alto da F80 é a aerodinâmica, que também não empolga ninguém como um ronco de 12.000 rpm empolgaria, mas é interessante para os nerds de plantão. Aqui a comparação com o W1 é inevitável: ela parece muito mais fluida que o McLaren, mas também foi otimizada como o rival — lembre-se das equipes de desenvolvimento, que compartilharam engenheiros. A dianteira tem alguma inspiração na 12Cilindri, com aquela faixa preta nos faróis. Logo atrás dela há um duto para direcionar o fluxo de ar na dianteira do carro, passando pelos para-lamas para ser canalizado para as laterais do carro. O fundo do carro foi planejado como parte do difusor traseiro e tanto a dianteira quanto a traseira têm elementos ativos para ajustar os ângulos de ataque. A silhueta tem muito da SP3 Daytona, que, por sua vez, remete ao perfil da “Ferrari proibida” de Jim Glickenhaus, a P4/5.
E isso me traz de volta ao argumento de que os hipercarros de hoje não serão como os de dez anos atrás. Primeiro pela deprimente falta de inspiração dos nomes: W1 e F80. Poderia ser uma senha de wi-fi: Rede Hypercar, Senha W1F80. Qual o problema de “McLaren 1” e 499P Stradale, por exemplo?
Depois, por causa do design. No caso do McLaren W1, ele parece um amontoado de estilos já usados pela McLaren em outros modelos, com uma dianteira perigosamente semelhante à do Lykan Hypersport. O Speedtail, por exemplo, tem um design muito mais interessante tanto no aspecto funcional, quanto estético, enquanto o Senna tem uma agressividade muito mais radical, parecendo ser um carro mais competente na pista. Na Ferrari acontece o mesmo. Há elementos da 12Cilindri e da SP3 Daytona, mas ela ao menos ainda se parece com uma Ferrari — e parece uma Ferrari pronta para correr em Le Mans. A solução italiana, ficou mais elegante, no fim das contas.
Mas a principal diferença desta geração de hipercarros é que ela, definitivamente, separa os hipercarros dos carros mundanos. Em comum, eles têm apenas o aspecto híbrido. Eles estão muito mais próximos dos protótipos de competição do que seus antecessores. Basta pensar no 918 Spyder e no 919 Hybrid, ou comparar a F40 LM com os protótipos da época. Até a geração passada, os hipercarros estavam mais próximos dos GT que dos protótipos. Mas nesta geração tudo mudou: a F80 está mais próxima da 499P do que para a Daytona SP3 ou a 296GTB.
Como falei no começo dessa conversa, estamos em um momento incerto, que parece ser um ponto de virada para mudanças drásticas, como foi há 50 anos. Se for isso mesmo, esta geração de hipercarros deixou claro como serão os hipercarros daqui em diante: eles serão racionalizados, se tornando ainda mais distantes do público que apenas sonha com eles. Pense sobre qual hipercarro recente mexeu com a sua imaginação como se você fosse um garoto de 12 anos. O que sobra da imagem de um esportivo sem os sonhos das pessoas?
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