Já ouviu falar em “consenso científico”? Essa expressão se popularizou há uns quatro anos, depois que aquele caos todo aconteceu em 2020.
É interessante observar esses fenômenos linguísticos. Há uns 10 anos a palavra da moda era “estarrecedor”, ninguém mais ficava “horrorizado”, nem “impressionado”, nem “chocado”, ou “assustado”, nem “pasmo”. Era “estarrecido”. Quer outra? “Gratidão”. A gente agradece com “obrigado” singificando “me sinto obrigado a retribuir o favor”. Se você acha “obrigado” algo agressivo, forte demais, diz “gratidão” — o que é uma resposta iletrada. Quem tem/sente gratidão por alguém é “grato”.
Depois tivemos “fala”. Não tem mais pronunciamento, declaração ou discurso. É tudo “fala”. Mas fala é o ato ou capacidade de falar. Quem tem problemas de fala não tem problema com declarações, o problema é na articulação da expressão oral. E tem também o “sneaker”, que é a gourmetização do tênis, usada para transformar uma etiqueta de R$ 1.200 em algo aceitável para um calçado esportivo.
O problema dessas expressões da moda é que elas simplificam o vocabulário, e a simplificação do vocabulário é também a simplificação das ideias. Porque você só pode verbalizar o que se pensa, e só pode pensar o que se ouve ou se lê. Quando você remove as nuances do vocábulo, você remove também as nuances do pensamento. E aí todo mundo fica meio burro mesmo.
E qual o verdadeiro problema? Tudo vira slogan. “Estarrecido” não cabe quando você descobre que o cachorro rasgou o sofá, por exemplo. Da mesma forma “consenso científico” não significa um ponto final na discussão, uma certeza. “Consenso científico” é justamente o contrário: é o ponto de partida para a discussão científica — e ela começa, veja só, verificando o consenso. A ciência, afinal, nunca foi feita de certezas, mas da verificação delas.
O futuro dos carros elétricos é uma certeza que, constantemente, vem sendo verificada — especialmente porque não se trata de um movimento natural do mercado, mas de uma imposição governamental de vários países, como resposta prática à questão ambiental. Essa foi a premissa da nossa série “Os desafios do carro elétrico” (clique para ver). Seu nome é explicativo: visa trazer à tona os desafios que o carro elétrico já superou e os desafios que ele ainda precisa superar para se tornar o novo padrão da mobilidade individual privada.
Nesta série abordamos todos os aspectos envolvidos na universalização do carro elétrico, desde o preço de compra, passando pela disponibilidade de matéria-prima, pelas questões técnicas de baterias e fornecimento de eletricidade, pela economia e tributação e pelo próprio desafio ambiental.
Mas há um outro aspecto envolvido indiretamente nos carros elétricos: a questão social. Carros elétricos usam baterias, que usam matéria-prima obtida por mineração. Em muitos países a mineração é regida por uma forte legislação ambiental e trabalhista, mas em outros países isso é deixado um pouco de lado. É o caso da República Democrática do Congo, no centro-oeste africano.
O Congo é um dos países mais ricos em recursos naturais em todo o planeta. Em seu território estão 70% da reserva global de coltan, um terço do cobalto e mais de um terço das reservas de diamantes. O coltan e o cobalto são os que nos interessam nesse papo: eles são materiais fundamentais para a produção de baterias de íons de lítio, supercondutores e condensadores — usados não apenas por veículos elétricos, mas também por dispositivos eletrônicos como o seu smartphone ou notebook.
E aqui surge o primeiro problema: a mineração de coltan e do cobalto (abaixo) é o objeto principal das guerras civis da República Democrática do Congo, que por questões étnicas e políticas, disputam os territórios das minas de coltan e cobalto.
Além de inflamar as guerras civis no país, a mineração — por ser a principal atividade econômica do país – também trazem outro problema social: Pior: as denúncias não são recentes; elas acontecem há mais de oito anos, antes mesmo da decisão da União Europeia e da Califórnia em banir os motores de combustão interna, substituindo-os efetivamente pelos veículos elétricos.
Em janeiro de 2016 a Anistia Internacional denunciou em , que a mineração destes materiais naquele país .
“As exibições comercial glamourosas e o marketing destas tecnologias contrastam fortemente com as crianças carregando bolsas de pedras e mineradores em túneis estreitos, escavados a mão, correndo riscos de lesões pulmonares permanentes”, diz um trecho do relatório. “Milhões de pessoas se beneficiam destas novas tecnologias, mas raramente se perguntam como elas são feitas. Já passou da hora de as grandes marcas assumirem alguma responsabilidade pela mineração das matérias-primas que fazem seus produtos”, completa o texto.
Mais recentemente, em 2023, apontou que “os principais fabricantes de baterias e eletrônicos fazem pouco para garantir que o cobalto que eles usam não provêm de trabalho infantil nas inúmeras minas artesanais do Congo.
A situação levou o Departamento do Trabalho dos EUA (análogo ao nosso Ministério do Trabalho) a publicar um relatório sobre a exploração do trabalho infantil e violação de direitos humanos. O relatório repercutiu a ponto de que visa proibir a comercialização de produtos que contenham baterias produzidas com matéria-prima oriunda destas minas artesanais no Congo.
O problema é que a medida esbarra em uma outra questão que vai além da questão ambiental e dos direitos humanos: a geopolítica. Segundo o deputado americano que propôs o projeto de lei, Chris Smith, do partido Republicano, “a China está explorando as reservas de cobalto do Congo para abastecer sua economia e sua agenda global à custa do tráfico de trabalhadores e do trabalho infantil”.
A afirmação vai ao encontro do que relatou a Anistia Internacional em 2016, que tamém acusou a China de explorar os recursos do Congo à custa do trabalho infantil e trabalho análogo à escravidão. Isso, porque a China tem 68% da Sicomines, uma joint-venture formada com a estatal congolesa de mineração Gecamines em 2008. O governo do Congo está tentando revisar este contrato, pois, segundo sua avaliação, o país se beneficia pouco com o acordo.
A situação fica ainda mais grave porque, devido à economia local, as mulheres e crianças que trabalham nestas minas dependem deste trabalho para comprar comida, roupas e suprir suas necessidades básicas. .
Os mais recentes movimentos para tentar conter o uso de trabalho infantil e análogo à escravidão no Congo são do final de 2023. Ainda há muito pela frente e a situação pode se agravar nos próximos anos, porque, além de cobalto e de coltan, o Congo também é o maior produtor de cobre da África, e recentemente foi encontrado lítio no território congolês — ambos componentes essenciais para baterias.
A questão humanitária é apenas parte deste outro desafio do carro elétrico, porque, como vimos anteriormente, a questão ambiental levou os EUA e outros países a proibir a mineração das matérias-primas em determinadas regiões, o que irá reduzir a oferta de lítio, cobalto, coltan e cobre para as baterias.
Com a eventual restrição das baterias que utilizam matéria-prima extraída em condições sub-humanas, a mineração terá que criar mecanismos para impedir a situação, algo que certamente irá impactar no custo das baterias. Afinal, o baixo custo financeiro vem do alto custo humanitário. , sobre a vantagem chinesa no mercado de baterias: “Honestamente, o lítio produzido no Canadá será mais caro, porque não usamos trabalho escravo”, disse Trudeau em uma clara provocação à China.
Como ficou claro, há muito mais dúvidas do que certezas no futuro elétrico do automóvel.
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