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História

A simplicidade do primeiro Range Rover

Um amigo ontem me mandou fotos de um Range Rover de primeira série, azul, aqui em São Paulo. Parei para olhar com calma aquilo, pois talvez não exista carro mais influente que o primeiro Range Rover. É o carro que começou a loucura por peruas off-road que nunca mais terminou, ainda que a maioria das vezes hoje, o “off-road” seja só promessa.

Outras peruas fora-de-estrada existiram antes do Range-Rover, claro. Mas é ele a gênese do SUV moderno. Ao provar que um SUV extremamente bom no mato podia frear, acelerar, ter estabilidade e conforto de carro normal, abriu as portas para que uma multidão pudesse projetar a imagem de aventureiro. E também a possibilidade de se ter um carro só para tudo, que como um pato, nada, anda e voa, mesmo que não faça todas essas coisas excepcionalmente bem.

O que me impressiona sempre ao ver o primeiro Range Rover de 1970 é como ele não é um artigo de luxo. Sim, sempre foi caro e consumiu muito combustível, mas inicialmente era um jipe de utilidade expandida apenas. Simples, ascético, espartano. Pequeno e leve visto dos dias de hoje: aos 1650 kg parece hoje algo normal, mesmo tendo chassi separado, dois eixos rígidos, reduzida, e um V8. É um carro compacto até: 4445 mm num entre-eixos de 2540 mm. Só é alto; nem muito largo é. Os pneus eram 205/80 R16, em rodas de aço; também pequenos para os dias de hoje.

O Range Rover é também bem convencional; nem monobloco é. Mas é um carro especialmente bom em sua faceta multi-uso; antes dele jipes assim apenas funcionavam bem atravessando pântanos e lamaçais; o resto do tempo eram duros, desconfortáveis, lerdos demais.

Faz a gente pensar, olhar para este carro original: seu pequeno V8 de alumínio com 132 cv dava a ele capacidade de chegar pouco menos de 160 km/h, e acelerar de 0-100 km/h em 12,6 segundos. Hoje parece coisa de carro mil, mas na época, era desempenho de carro de rua decente. Uma pequena amostra do futuro, que na época, poucos imaginaram podia ser uma revolução tão grande.

Sempre tive curiosidade de como coisas assim, tão influentes, nascem. Então sem divagar muito mais, vou contar para vocês como esta revolução em particular aconteceu; como o Range Rover nasceu.

 

O Land Rover

A Rover a inventora da bicicleta moderna, a “Safety Bike” de 1885 com rodas pequenas e transmissão por corrente, em 1885. Um início auspicioso para uma empresa que embora tradicionalista em seus desenhos e missão, sempre acreditou em avançar a tecnologia. Nos anos 1950, por exemplo, estava no topo da pesquisa para colocar turbinas a jato em automóveis.

“Rover”, na tradução da empresa que leva este nome, significa “Andarilho”. Mas também significa outras coisas, segundo o dicionário: vagabundo, pirata, corsário. A Rover emerge no pós-guerra administrada pelos irmãos Spencer e Maurice Wilks. A empresa estava com problemas então: necessitava desesperadamente de algo novo para vender e fazer caixa. Seus carros de luxo, herdados do pré-guerra, eram simplesmente à prova de vendas então. A enorme fábrica em Solihull, criada durante a guerra para fazer motores aeronáuticos, estava parada; algo era necessário para ser fabricado lá.

Maurice Wilks tinha uma fazenda. Nela, como tantos outros, usava um Jeep que sobrara do conflito para usos diversos. Os irmãos Wilks notaram também que a Standard começara a produzir o trator Ferguson TE20 com grande sucesso. E é assim que a Rover, uma empresa de automóveis e não caminhões, começa a fazer jipes. O carro de Wilks pretendia ser o meio termo entre um trator e o Jeep; tinha por exemplo tomadas de força para implementos agrícolas. Tinha também carroceria de alumínio rebitado, para não enferrujar, e produção mais fácil naqueles tempos de materiais escassos. Nascia em 1948 o Rover do mato, da terra: o Land Rover.

Foi um sucesso imediato, e duradouro, e impulsionou a Rover para fora do buraco naqueles anos. A empresa manteve o carro em produção sem muito investimento ou mudança: esse ia apenas para os automóveis, a Rover considerando-se uma empresa de carros, não “caminhões”. Era um tapa-buraco, uma solução temporária.

Ninguém, na verdade, acreditava no sucesso daqueles carros básicos e espartanos, naquele tempo. Mas o público sempre os amou de paixão. Como o Jeep americano, que se mostrou um sucesso no mercado civil também, o Land Rover também foi um imenso sucesso desde 1948. Dali em diante, sempre se venderia mais Land-Rover que Rover. Em alguns anos, o dobro de carros fora de estrada em comparação aos de rua. Hoje a Rover não existe mais, mas a Land-Rover, hoje uma marca separada, continua firme e forte. Nem a Rover acreditou no futuro de suas maiores criações.

Como a Ineos salvou a história do Land Rover. Literalmente.

 

Land Rover para família.

Desde cedo, a Jeep nos EUA criou uma perua baseada no popular Jeep CJ (civilian Jeep). Nós a conhecemos com o nome de “Rural”, mas nos EUA era simplesmente o “Jeep Station Wagon”. Era um carro de extremo sucesso, mesmo quando equipada com tração 4×2 e eixo rígido dianteiro. Era uma das raras peruas totalmente em aço estampado (e não madeira) da época, mas não era este o cerne de seu sucesso. Este vinha das pessoas que gostavam de ir pescar, caçar, acampar em fins de semana, mas precisavam de um carro para uso diário durante ela. Era um segundo carro da família de grande sucesso.

A perua Jeep, 1946

Uma coisa que pouca gente notou na época, mas é importante aqui: muita gente comprou a perua Jeep, e a usou exclusivamente em ambientes urbanos. A imagem de um dono de Jeep era tão importante quanto o uso fora-de-estrada, já no início. Só demorou muito a ser percebido, e explorado.

A perua Tickford

A Rover era minúscula em tamanho comparada às empresas americanas. Em 1965, produziu pouco mais de 78 mil veículos (2/3 deles Land Rovers), quando a GM produziu 7,5 milhões de carros no mesmo ano, por exemplo. Este é um dos motivos do fracasso da perua do Land Rover: lançada pouco depois do jipe em 1948, vendeu menos de 700 unidades, e saiu de linha. Isto pelo motivo de que a Rover não tinha dinheiro suficiente para investir na perua: subcontratou-a para a Tickford, que criava carrocerias com estrutura de mogno revestida de alumínio. O carro era caro, o que piorava pelo fato de que o governo o classificou como carro de passageiros, não utilitário como o jipe, cobrando mais imposto dela.

Road Rover: o primeiro protótipo

No início dos anos 1950, o Land-Rover já sustentava a empresa, e os irmãos Wilks começaram a temer que quando esta popularidade inevitavelmente acabasse, estariam em mais lençóis. Um medo infundado, sabemos hoje olhando de 2024; mas um medo real então.

Road Rover: o segundo protótipo, 1956

Por isso, é tentado o projeto de uma nova perua, que nunca chegaria a produção, mas é a interessante ponte, o elo perdido para o Range Rover. Chamada de “Road Rover”, usava o desenho utilitário, o motor de quatro cilindros e dois litros, os vidros retos e a carroceria de alumínio como os Land-Rover, mas o chassi do sedã de rua, o Rover P4, com vão livre aumentado ligeiramente. Seis protótipos são construídos, mas o projeto morre em 1954, com o lançamento da perua Land-Rover feita na fábrica de Solihull, bem mais barata que a Tickford anterior.

Maurice Wilks e a perua Land Rover definitiva

Em 1956, porém, uma segunda série do Road Rover é criada, com um desenho de carroceria mais elaborado, mas seguindo o mesmo princípio do carro anterior. Ambos as versões do Road Rover ficam em uso por algum tempo na fazenda de Maurice Wilks, e em vários estágios de teste na empresa, mas o projeto acaba definitivamente cancelado em 1958.

 

O motor V8

Existem dois fatores que tornariam o Range Rover diferente de todas as outras peruas off-road desde tempos imemoriais. O primeiro, é o compromisso de conforto e aderência da suspensão nas estradas e ruas, equivalente ao de um automóvel normal. O outro, seu desempenho: com um suave, torcudo e potente V8 de alumínio, o Range-Rover foi também uma das peruas off-road que primeiro mostravam desempenho de carro de rua.

O V8 Rover no primeiro Range Rover

O motor do Range Rover original era perfeito para ele: além de deslocar generosos 3,5 litros, e ser suave e refinado, além de potente e torcudo, era todo em alumínio, e minúsculo: não pesava mais que o quatro em linha dos Land Rover. Seria o Range Rover o sucesso que foi usando um cinco em linha, ou seis, derivado do pouco sofisticado quatro em linha da marca? Provavelmente não, mas era o que estaria disponível na pequena empresa, se não fosse um encontro casual, um acaso providencial.

O V8 Buick que virou Rover

William Martin-Hurst, cunhado de Maurice Wilks, era o presidente da Rover no início dos anos 1960. Ao redor de 1963, está numa visita técnica na Mercury Marine, empresa de Font-Du-Lac, Wisconsin, Estados Unidos, famosa por suas conversões marítimas de motores diversos. Martin-Hurst tentava interessar os americanos nas turbinas Rover para uso marítimo, mas acaba por conseguir vender apenas os motores Land Rover diesel de quatro cilindros, para uso em barcos pesqueiros pequenos.

Mas andando pela Mercury Marine, avista um V8 pequeno, todo em alumínio: o Buick V8 “215”, de 3,5 litros. A Mercury Marine estava trabalhando para colocá-lo em lanchas de ski aquático, mas a Buick acabava de tirá-lo de produção, terminando o projeto. Ao saber quanto pesava (o mesmo que seu 4 em linha), William Martin-Hurst pega uma trena e mede o motor. Na hora percebe que poderia ser montado em todo carro de sua empresa, sem muita modificação. Compra aquele motor prestes a ser descartado na hora, e o envia para a Rover na Inglaterra.

Rover P5B: primeiro V8, 1967

Enfrentaria muita resistência interna (um motor americano num Rover! Sacrilégio!) e uma difícil e lenta negociação com a burocracia da GM, mas Martin-Hurst acabaria tendo sucesso em comprar o V8 para a Rover. Era absolutamente perfeito para ela, o que prova sua longevidade: lançado em 1967 no Rover P5B sedã, seria descontinuado apenas em 2006, em um Land Rover chamado Discovery. Um negócio da China: a compra do motor descontinuado foi apenas uma fração do dinheiro necessário para o desenvolvimento dos motores de cinco e seis cilindros em linha previstos.

 

Rover como a BMW?

A compra foi de um projeto apenas. Papel, na verdade, mais os serviços temporários do engenheiro da Buick, Joe Turlay, que ficou alguns anos na Rover, emprestado. Nada de ferramental. Os ferramentais americanos não serviriam de qualquer forma, porque serviam apenas para uma produção exponencialmente maior: mesmo sendo produzido nos EUA por apenas três anos (frente a inacreditáveis 37 na Inglaterra), ainda assim mais motores foram fabricados nos EUA do que na Inglaterra. Um exemplo claro do imenso tamanho do mercado de automóveis nos EUA, e do tamanho relativo da Rover.

Spen King

Pois bem. Em um dia de teste de suspensão em fora de estrada na Rover em 1966. Charles Spencer “Spen” King, o engenheiro contratado para liderar o departamento de pesquisa da Rover (um departamento para criar novos conceitos de veículos, coisa inexistente hoje) era convidado e participava das avaliações, com outros executivos. Ao passar pelo terreno acidentado em velocidade no Land Rover, achou o veículo terrível. Os feixes de mola, obrigados a localizar o movimento da suspensão, eram duros demais e com curso de menos, pensou. Eram horríveis para andar rápido sobre obstáculos, se satisfatórios em manobras off-road pesadas, carro quase parado, se movendo devagar.

Rover 2000 “P6”

Diz para os presentes: aposto que meu Rover 2000 (um moderno P6, monobloco e com suspensões independente na frente, e De Dion atrás) pode fazer essa prova melhor que os Land Rover. Claro que todos quiseram tirar a prova e aceitaram a aposta. Dito e feito: o carro de rua lidava com a buraqueira muito melhor que o jipe. Motivos simples: apesar da suspensão mais baixa, ajudavam o monobloco rígido, o maior curso de roda com molas helicoidais, as suspensões independentes, o entre-eixos maior.

A experiência leva ao renascimento do velho conceito do Road Rover, agora revisto por Charles Spencer King. Mas não partindo de um chassi de rua como o carro anterior; e sim partindo do veículo off-road mesmo, mas modificado para molas helicoidais e localização dos eixos rígidos por braços separados, permitindo molas menos rígidas e mais curso. Desta forma, ainda mais articulação no off-road seria possível, e um comportamento nas ruas e estradas bem mais aceitável. Sem perder a robustez tradicional da marca.

O primeiro protótipo do Range Rover

Junte isso ao novo motor V8 da Rover, e um sistema de tração integral permanente, com um diferencial central que poderia ser bloqueado no fora-de-estrada pesado, os freios a disco de duplo circuito nas quatro rodas, e se tem a receita pronta da revolução que chamamos de Range Rover: uma perua utilitária off-road que também funciona perfeitamente bem em conforto, aderência em curvas, e desempenho, nas ruas. Não a primeira perua fora de estrada que pode, se necessário, andar nas ruas; mas é a primeira vez que andar nas ruas não é apenas tolerado. O Range Rover seria gostoso de andar, tanto no caminho diário do trabalho, quanto nos fins de semana, chegando a lugares onde carros normais não podem chegar. O futuro.

 

O carro esporte Rover

Mas o projeto tem grande resistência interna. A Rover queria aproveitar o impulso do P6, um carro sofisticado numa classe de produtos que seria ocupada no futuro pelos BMW: carros de família sofisticados e alto desempenho. Logo, o P6 receberia também o V8, fazendo o novo Rover 3500TC, reforçando a imagem de desempenho e sofisticação.

Rover P6BS: motor central-traseiro V8!

Além disso, o Range Rover competia internamente com outro projeto que usaria o V8: um carro esporte de motor central-traseiro, of all things. Criado a pedido de William Martin-Hurst pela equipe de Spen King, era chamado de P6BS, e o protótipo era algo especial realmente: com o V8 regulado para potência e giro, e com dois carburadores SU de 2 polegadas (1,6 polegadas nos sedãs), o carro de dois lugares chegou a 245 km/h e acelerou até 100km/h em menos de sete segundos. Em 1966, números incríveis.

Com o apoio do presidente, parecia que era o projeto que ia vingar. Afinal de contas, quem imaginaria que perua off-road seria chique um dia? Para subir o nível da Rover, o carro esporte era o caminho óbvio. E a empresa não tinha recursos para fazer todo projeto que sua fértil imaginação produzia; recursos eram limitados. Ou fazia o Range Rover, ou o carro esporte, os dois era impossível.

Mas o acaso intervém. Em 1967, a Rover passa a fazer parte do conglomerado British Leyland. Neste conglomerado, ninguém da Rover tinha tanto poder político quanto o fundador da Jaguar, Sir William Lyons. Ao saber que o Rover P6BS seria mais barato e mais veloz que seus E-type, tratou de matar o projeto. “Que eles fiquem com aquelas peruas de usar em sítio lá!”, teriam sido suas palavras.

Velar: os protótipos de validação

Soberba. Sir William não viveu para ver isso, mas hoje, só existe Jaguar por causa das “peruas de usar em sítio” da Rover. A Jaguar mesmo faz peruas assim. Não, pera; está num ano sabático agora, fazendo nada para se reinventar elétrica e rival da Bentley. Boa sorte a ela.

 

O Land Rover de fraque

Uma equipe é então montada para andar adiante com a perua de luxo off-road. Como isso tudo ocorre no fim dos anos 1960, e numa empresa pequena, a equipe é também pequena: apenas 3 engenheiros projetam o carro. Seis protótipos são feitos, e 28 protótipos pré-série são necessários, apenas. Como o mundo mudou.

Os protótipos foram colocados nas ruas sem camuflagem, para teste, mas com um nome de uma empresa fantasma sediada longe da Rover, criada para esconder os protótipos do radical P6BS: Velar. O Range Rover, imaginava-se, ia ser usado apenas por fazendeiros e pescadores, caçadores e gente desse tipo, inclusive amadora. Lançado em 1970, era como toda perua off-road, espartana, interior lavável com mangueira, sem ar-condicionado, sem câmbio automático, sem nem direção hidráulica.

Erraram feio. O desempenho decente em ruas fez gente que nunca considerou esse tipo de carro cobiçá-lo. Empresas começam a fazer muito dinheiro tornando seus interiores luxuosos, colocando vidros elétricos e direção hidráulica. A Rover entende isso, e finalmente começa a sofisticar cada vez mais a perua ela mesma. Em 1973, direção hidráulica, depois carpetes, e mais acabamento, em 1981, quatro portas. A rainha Elisabeth pede que protejam o estepe e macaco no porta-malas: seus Corgi estão se sujando de graxa. Um pedido que mostra bem onde iria o carro dali em diante.

Se tornaria um sucesso imenso, a demanda sempre superior à produção. Se tornou um carro de luxo de utilidade extendida, um Mercedes S-class que pode atravessar o Saara, andar na floresta amazônica, visitar o Tibete. Todo mundo quer isso hoje, mesmo que seja numa imitação, de capacidade muito inferior, e que viagens ao Tibete sejam possíveis apenas sonhando de noite. Imagem, é tudo. Não importa que a maioria dos Range Rover nunca se sujará de terra, assim como não importa que a maioria dos Lamborghinis nunca passem de 100km/h. A capacidade existe, e isso dá valor ao veículo.

O Range Rover, quem diria, é tudo que resta da Rover. E por mais que todos amem as versões posteriores mais luxuosas, o primeiro carro permanece de um charme e uma missão específica incrivelmente claras. A versão original, mais simples e focada, de qualquer carro, parece sempre ser a melhor.