No início dos anos 2000, o Campeonato Mundial de Rali havia mudado. Em 1997 a competição adotou um novo regulamento, o que trouxe novas equipes ao topo – se até então as japonesas Toyota, Subaru e Mitsubishi dominavam a competição, agora era a vez das europeias. Peugeot e Citroën já iam bem, e a Ford também queria um pedaço do bolo.
O novo regulamento, que trocava os bólidos do Grupo A pelos chamados World Rally Cars, já usava desde 1995 uma série de medidas para nivelar a performance dos carros. Uma delas eram restritores nos turbos, que limitavam a passagem do ar frio pressurizado por um duto de 34 mm em todos os carros. A regra era clara: todo ar da indução forçada deveria passar pelo restritor, sem exceção. Com isso, assegurava-se que todos os carros teriam desempenho mais próximo, e não havia meio de driblar esta medida.
Quer dizer… é claro que havia. A Toyota foi a primeira a mostrar isso com uma das trapaças mais discretas e sutis da história, feita ainda na temporada de 1995.
Como a Toyota fez a maior trapaça da história do automobilismo?
A trapaça acabou descoberta e, embora tenha sido elogiada por sua engenhosidade, rendeu à Toyota punições severas para a temporada seguinte. Quem ousaria tentar driblar o regulamento novamente depois disso?
Bem… a Ford. Mas não com uma trapaça, e sim com uma exploração de brechas no regulamento das mais engenhosas já vistas em toda a história do automobilismo: o surge tank usado pelo Ford Focus em 2003, há exatos 20 anos. O que ele fazia? Estocava vento. Ou melhor: ar pressurizado, para ser mais exato.
Naquela temporada, o Focus usava um quatro-cilindros de dois litros com turbo e aproximadamente 300 cv — um número relativamente conservador para um motor turbo de dois litros feito para competições, não? Era o bendito restritor.
Um dos grandes problemas dos carros turbo do WRC era o threshold e o lag – enquanto o rotor da turbina não atingisse sua velocidade ideal para gerar a pressão máxima de trabalho, o rendimento do motor ficava comprometido. Sistemas anti-lag, então começaram a ser desenvolvidos.
Um dos mais rudimentares consistia em um sensor eletrônico que atrasava o ponto de ignição do motor em baixas rotações e deixava os corpos de borboleta parcialmente abertos o tempo todo, tornando mais rica a mistura ar-combustível que chegava às câmaras de combustão mais rica. Como resultado, combustível não-queimado chegava ao coletor de escape, explodia com o calor e mantinha a velocidade da turbina mesmo com o motor girando baixo, minimizando o tempo de “enchimento”.
A Ford aproveitou a onda para desenvolver seu próprio sistema, porém, com um jeitinho de produzir um pouco mais de pressão, efetivamente burlando os restritores – ainda que, tecnicamente, estivesse 100% dentro das regras. Compare o Focus WRC que competiu entre 1999 e 2002 (na foto superior) ao Focus WRC que correu em 2003 (na foto inferior):
Os para-choques traseiros são maiores no modelo mais novo. São os mesmos para-choques usados no modelo norte-americano, o que era no mínimo estranho mas não gerou questionamentos nem levantou suspeitas.
Apesar de o carro de rali ser feito com base no Focus europeu, as equipes tinham liberdade para modificar a aerodinâmica dos carros, e na época a Ford provavelmente disse que os para-choques do Focus vendido nos EUA eram melhores nesse aspecto. Além disso, sendo um carro de competição, o Focus WRC 2003 não ficou ruim com uma dose extra de agressividade.
Acontece que o para-choque queixudo servia para esconder o “segredo” da Ford: o surge tank – “tanque pressurizado”, em uma tradução livre.
O tanque de 45 litros era feito de titânio, com paredes de 2 mm de espessura, e era ligado ao coletor de admissão por quatro metros de tubulação, também de titânio, com 30 mm de diâmetro. O sistema pesava cerca de 20 kg, e era conectado ao motor por uma “válvula de controle de marcha lenta” – um nome bastante vago para uma peça que executava uma função bem específica.
Qual era esta função? Abrir para deixar que o ar “desperdiçado” pelo turbo em situações de baixa e média aceleração fosse armazenado e pressurizado no tanque de titânio. A Ford dizia que esse era seu sistema de anti-lag, algo perfeitamente legal de acordo com o regulamento do WRC na época.
Acontece que, em altas rotações, essa válvula se abria e deixava que o ar frio pressurizado do tanque de titânio fosse devolvido para o coletor de admissão quando o piloto pisava fundo, na prática, devolvendo ao motor todo o boost perdido por causa do restritor no turbo. O resultado era potência extra – cerca de 5% a mais. Pode parecer pouco, mas fazia uma grande diferença nos trechos de alta velocidade, especialmente nos estágios de asfalto.
E como todo o ar que estava armazenado no tanque já havia passado pelo restritor no turbo, tecnicamente o aparato estava dentro do regulamento e poderia ser usado sem problemas. No entanto, assim que a artimanha foi descoberta pelos fiscais do WRC, a organização do evento tratou de bani-la – evitando que outras equipes desenvolvessem aparatos semelhantes. O sistema só foi usado pela Ford em três eventos da temporada antes de ser proibido.
Naquele ano, de qualquer forma, quem venceu o título de construtores do WRC foi a Citroën, enquanto o título dos pilotos ficou com Petter Solberg, da Subaru. O Ford Focus só conseguiu vencer seu primeiro campeonato em 2006, já em uma nova geração – e sem qualquer tipo de trapaça. Se é que dá para chamar o engenhoso surge tank de trapaça.
Com a atual padronização de conjuntos mecânicos “em nome da competitividade”, é improvável que vejamos algo do tipo sendo colocado em prática no WRC novamente.
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