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Car Culture

A vida até parece um Fiesta

Eu tinha 11 anos quando o Fiesta chegou ao Brasil. Foi em 1995, e eu gostei dele logo de cara. Aquele foi um ano legal: eu finalmente fui para a escola nova, onde estudei até o fim do ensino médio e, no fim do ano, ganhei os discos do Blur e do Oasis na noite de Natal.

Naquele ano meu pai comprou um carro novo, um Gol 1000 quadrado, que saiu no consórcio. Veio em novembro, logo no aniversário de 36 anos da minha mãe. O carro era uma porcaria, mas era melhor que o Monza SL/E 84 que ele substituiu.

Meu pai nunca se satisfez com ele. Procurou todos os defeitos possíveis e reclamou até mesmo do quebra-vento que fechava sozinho acima de 80 km/h e das frestas da carroceria na tampa do porta-malas, claramente desalinhado até mesmo para um moleque de 11 anos acostumado às desajeitadas miniaturas da Maisto.

No ano seguinte, em novembro, de novo no aniversário da dona Contesina, meu pai recebeu uma proposta de um vendedor da Ford: entregaria o Gol e, por uma modesta diferença, sairia com um Fiesta CLX 1.3 quatro-portas… vermelho. Não era grande coisa, mas era melhor que o Gol 1000. Ao menos era injetado e tinha ar-condicionado e quatro portas.

O Fiesta foi o primeiro carro “normal” que eu achei legal. Seu nome era divertido. Você não precisa ser muito inteligente pra descobrir que “Fiesta” é “festa” em espanhol. O nome do carro era “Festa”. Até ali os carros tinham nomes sérios como Escort (que eu descobri que significava outra coisa numas revistas que eu não deveria ter comprado…), Vectra, Kadett, Santana, Tempra, F355, 318i, C180.

Mas aquele era Fiesta. “Rock and Roll All Night and Fiesta Every Day” — era mais ou menos isso que eu imaginava quando pensava no nome “Fiesta” para um carro.

O negócio do Fiesta não deu certo. Meu pai deixou passar, ou o vendedor desvalorizou demais o Golzinho… aconteceu algo que criança não precisa saber. E meu pai acabou com um Escort GL 1996 duas semanas depois. Era novinho em folha. Pelado, mas novo e espaçoso. Eu com 12 anos, minha irmã com 8 e meu irmão com 6, não precisaríamos mais ficar amontoados no banco traseiro nos 800 km que separavam SC de SP. Tinha espaço pra todo mundo. Dava até pra brigar. Bons tempos. Sem contar que, 1.8, o carro era bem mais forte, então a gente viajava a 120 km/h.

A alegria na estrada durou pouco. Em 1999, com um apartamento para pagar, dois filhos adolescentes e um quase lá, meu pai vendeu o Escort e o trocou por um Fiesta.

Era um Fiesta 1999, 1.0, básico, parecido com esse aí de cima. E eu detestei aquele carro, é lógico. A gente vinha de um Escort grande e potente e confortável, para um Fiesta no qual eu mal cabia. Aquele painel recuado para liberar espaço para as pernas — que é algo brilhante sob o ponto de vista da ergonomia — era frustrante para aquele adolescente mimado de 15 anos.

E assim ficamos por um tempo. Depois trocamos de carro, e, por ironia do destino, quando chegou a minha vez de dirigir, meu pai tinha, de novo, um Fiesta. E um Fiesta 1999. Na mesma época, eu conheci uma garota que se tornou a minha primeira namorada de verdade, daquelas com quem a gente quer casar, ter filhos e viver pra sempre. E ela tinha um… Fiesta.

Era tipo isso: um Fiesta verde e uma motorista bonita

Às vezes a vida até parece uma festa, e naquela época, ela era mesmo. O “carro do papai” era 1.0. Não andava nada, mas era econômico. Eu esgoelava marcha sobre marcha e o carro ainda rodava 10 ou 11 km/l. Eu me sentia o próprio Jackie Stewart naquele negócio, mesmo que eu estivesse acelerando a incríveis 80 km/h.

O Fiesta 2 da família em um raro registro do início do século

No Fiesta Endura-E, embalado, parece bem mais rápido. E eu também morava numa cidade que tinha uma subida de montanha urbana, ligando o centro ao meu bairro. O Juliano teve o prazer de conhecer — até hairpin tinha, o negócio.

E quando eu não estava no “carro do papai’, estava no carro da gata. Dirigindo para cima e para baixo. Curtindo, viajando. O litoral ficou pequeno para aquele Fiesta verde. Foi nele que eu “dei VDO” pela primeira vez em um carro, a incríveis 160 km/h (indicados no painel, ok?) em um retão à beira-mar da BR-101 entre Itapema e Balneário Camboriú.

Foi nele que eu aprendi a identificar as características dinâmicas de um carro — como ele era diferente do carro do meu pai, ainda que fosse o mesmo carro com rodas maiores, volante menor e assistência de direção, sem contar o motor diferente. Foi uma escola fundamental para eu entender mais dos carros – e das garotas.

Quando comprei meu primeiro carro, ele não era um Fiesta. Nem mesmo um Ford. Quando comprei meu segundo carro, fui atrás dos Fiesta Sport GLX ou Ka XR, mas nenhum deles estava legal o bastante para o meu gosto, então acabei com outro carro.

Quem realizou o projeto que eu tinha para o Fiesta Sport acabou sendo meu irmão, que cresceu ao meu lado dentro dos Ford da família. Ele tem o Fiesta até hoje. Eu acabei com um Focus, o irmão mais velho do Fiesta — faz sentido, se pensar que eu sou o irmão mais velho. E ele tem aquelas qualidades dinâmicas que eu aprendi a distinguir e a apreciar nos Fiesta de 20 anos atrás.

 

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O Fiesta nunca saiu da minha cabeça. Até hoje penso em comprar um GLX Mk4 para fazer o Sport duas-portas que eu nunca fiz. E pouco antes do mundo enlouquecer por causa da pandemia, eu gastava algum tempo pesquisando anúncios dos modelos mais recentes, com o motor Sigma 1.6 16v e câmbio manual. Mas aí o mundo pirou, os preços idem, e a Ford decidiu ir embora do Brasil e se concentrar apenas em SUV, picapes e no Mustang, e aí eu desencanei de vez de ter um Fiesta mais novo.

New Fiesta Sport sold in Brazil.

E a Ford também, em uma infeliz coincidência. Depois de 46 anos, eles decidiram que o Fiesta não é mais necessário e encerraram sua produção na Europa, o último lugar onde ele ainda era fabricado. A festa acabou. Ao menos ela foi boa enquanto durou.

O que virá em seu lugar é irrelevante, não importa. Não importa, porque ele não será um carro para o povo como foi o Fiesta — que até hoje roda por aí nos cinco continentes onde foi vendido. Ele não terá um nome irreverente, que provoca a imaginação de um garoto de 11 anos como nenhum outro nome de carro poderia provocar. Não será um ícone dos ralis e, por isso, não terá fãs que copiarão suas receitas para as pistas.

Ele não levará crianças empilhadas num espaço limitado por viagens inesquecíveis. Não será o transporte dos garotos para a vida adulta, muito menos resistirá por 20, 25, 30 anos nas ruas e estradas, escrevendo histórias de vida.

Seu sucessor será mais um carro elétrico como todos os outros carros elétricos, exemplar e correto como devem ser todos os carros num futuro próximo. Um carro que não polui e não machuca, mas que também não faz barulho e não emociona. O mundo ficou assim

É um Ford, mas poderia ser um Xiaomi

Um carro que não provocará uma reflexão como esta, que não fará diferença para ninguém quando se for. Não será popular, não será um professor, nem um companheiro, nem parte da família como o Fiesta foi para mim e para tanta gente, e como foi qualquer outro carro que atravessou o tempo — Opala, Corolla, Civic, Monza, Escort, Chevette, Gol, Fusca. Certamente não será um carro como a própria Ford descreveu o Fiesta, e isso diz muito sobre o caminho para o qual estamos levando o automóvel:

Era uma vez um carro
Não era um carro grande
Não era um carro bacana
Mas era um carro para as pessoas.
Elas o fizeram, e elas o dirigiram
Ele se tornou parte da família
Um professor
Um bom companheiro
Um amigo de confiança
Às vezes ele foi rápido
Às vezes era lento
Mas ele sempre, sempre foi em frente
Até que um dia… deixou de ir
Não por que não podia
Nem por que não deveria
Mas por que sua missão estava cumprida.
Agora, o que temos a dizer é:
Obrigado, carrinho. Por tudo o que você fez.
Viva sua viagem!

É verdade, Ford… e obrigado por tudo, Fiestinha. Quem sabe a gente não se encontra em breve, naquele Project Car?