Para conhecer e apreciar a Saab é preciso ser um verdadeiro entusiasta – ela não tem a mesma fama que a compatriota Volvo, sendo mais admirada por quem gosta e entende um mínimo de carros. E, dos vários motivos para isto, está o sucesso dos Saab nos ralis. Ontem, dia 27 de maio, morreu o homem responsável por este sucesso: o Mr. Saab, Erik Carlsson, aos 86 anos.
Carlsson nasceu em Trollhättan no dia 5 de março de 1929 – por feliz coincidência, a mesma cidade sueca onde ficava a sede da Saab, fabricante de automóveis fundada dez anos antes como divisão do grupo Saab AB, companhia aeroespacial fundada em 1937.
Ele perdeu os pais ainda adolescente e acabou desenvolvendo um gosto especial por velocidade e aventura muito jovem. Em 1947, aos 18 anos, já competia em subidas de montanha com motocicletas, fazendo fama com uma Norton ES52 com motor de 500 cm³. Não demorou para que ele começasse a trabalhar na concessionária Norton local e fizesse amizade com o dono do estabelecimento, Peter Nystrom.
A dupla estreou no Rali da Suécia em 1953 ao volante de um Volvo. Carlsson era o navegador, mas em vez de ficar no banco do carona ele se sentava atrás – dizem que seu físico avantajado ajudava na distribuição de peso do carro. Ao lado do piloto ficava uma cama, na qual Nystrom às vezes descansava e entregava as chaves ao navegador.
Foi ali que Carlsson descobriu a paixão pela velocidade sobre quatro rodas. Por isso, em 1954 ele comprou um Saab 92 de um fazendeiro que precisava de dinheiro e começou a aperfeiçoar suas técnicas de pilotagem. Vale lembrar que estamos falando de mais de cinco décadas atrás, e a Suécia não era exatamente o modelo de infraestrutura que é hoje. Naquela época, as estradas raramente eram pavimentadas e não havia limites de velocidade, e o tempo quase sempre ruim (a única coisa que não mudou desde então) tornava as estradas nos arredores de Trollhättan verdadeiros estágios de rali.
O Saab 92 foi o primeiro carro produzido em série e comercializado pela companhia. Sua origem está no conceito Ursaab, que começou a ser desenvolvido em 1945, pouco depois do fim da Segunda Guerra. A divisão automotiva ainda não havia sido fundada e os engenheiros responsáveis pelo projeto não tinham experiência com automóveis, e por isso a Saab teve que comprar carros de outras marcas para estudar seus projetos, incluindo um Volkswagen Fusca, um Opel Kadett e um DKW.
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O conceito tinha motor dianteiro de dois tempos montado em posição transversal, tração dianteira e carroceria aerodinâmica, com coeficiente de arrasto baixíssimo. Estas características todas foram aproveitadas no modelo de produção, que foi lançado em 1949 e batizado como Saab 92 pois era o 92º projeto criado pela companhia.
O motor bicilíndrico de dois tempos do Saab 92, inspirado pelos DKW, não era exatamente um poço de potência: deslocando apenas 794 cm³, era capaz de entregar apenas 25 cv, que davam ao carro uma velocidade máxima de 105 km/h.
A versão de corrida tinha 85 cv produzidos pelo motor de 850 cm³. Não parece muito, mas estamos falando de 100 cv/litro nos anos 1950, e foi o bastante para que Carlsson desenvolvesse sua pilotagem – em especial, sua técnica de frenagem com o pé esquerdo, que lhe dava controle simultâneo sobre o acelerador e os freios e lhe possibilitava contornar curvas com agilidade, levando o motor ao limite e escorregando suavemente a traseira.
Logo em suas primeiras provas Carlsson impressionou por sua habilidade, e sua primeira vitória em 1955, ainda com o 92: o Rali Rikspokalen, em Örebro, na Suécia, um dos mais difíceis de seu tempo. A partir daí ele começou a correr com o Saab 93, que havia sido lançado em 1955 e tinha um motor de 33 cv. Foi com o 93 que Carlsson conquistou algumas das vitórias mais importantes de sua carreira, como o Rali da Finlândia e o Rali da Suécia, em 1959.
Depois disso, com o Saab 96, Carlsson conseguiu uma impressionante sequência de três vitórias no Rali Monte Carlo em 1960, 1961 e 1962.
Sua maior conquista de todas, porém, veio no ano seguinte: Carlsson casou-se com Pat Moss, que era ninguém menos que a irmã mais nova de Sir Stirling Moss. O lendário piloto britânico, que além de cunhado se tornou amigo de Carlsson, dizia que ele era “a melhor coisa não-mecânica que já saiu de Trollhätan.
Pat Moss foi uma das mais bem sucedidas pilotos femininas de rali na história, sagrando-se campeã europeia cinco vezes entre 1958 e 1965. Ela casou-se com Erik Carlsson e, desde o início, tornaram-se parceiros no amor e nas pistas, disputando provas no mesmo carro e como rivais. Em 1965, escreveram juntos um livro sobre pilotagem – The Art and Technique of Driving, sem edição em português, porém traduzido para holandês, alemão, japonês e espanhol.
Ao todo, Erik Carlsson venceu 19 ralis entre 1955 e 1970, quando aposentou-se das pistas. Mais marcantes que suas vitórias, porém, são as histórias que rodeiam sua carreira no rali. A começar por seu primeiro apelido, “Carlsson på taket”, que significa “Carlsson no teto”.
O apelido é um trocadilho com o nome de uma história infantil tradicional sueca, Karlsson på taket, e foi dado ao piloto porque ele tinha uma leve tendência a capotar os carros com os quais corria. A ocasião mais notável aconteceu no Safari Rali, quando ele capotou o carro intencionalmente para desviar de um atoleiro. Os jornalistas não acreditaram na história, mas ele provou que era verdade ao repetir a manobra na frente deles.
Por sorte, outra das inovações dos Saab era o modo de construção: a carroceria instalada no monobloco era moldada a partir de uma única chapa de metal e depois cortada onde ficariam as janelas e portas. Assim, a estrutura era bastante rígida e dificilmente um Saab abandonava a prova depois de ser colocado de volta sobre as quatro rodas.
Na edição de 1962 do RAC Rally, no Reino Unido, foi que Carlsson aprontou uma de suas maiores: conta-se que ele precisava de uma peça que não estava em seu estoque de reserva. Passando por um estacionamento, ele viu um Saab 96 novinho em folha e não pensou duas vezes: parou, foi até o carro e ele e seu mecânico começaram a desmontar o carro.
Há quem diga que ele só deixou um bilhete sob o para-brisa, enquanto outros dizem que o dono chegou, furioso, e Carlsson safou-se contando que era piloto de rali da equipe de fábrica da Saab e que, por ter ajudado, o homem ganharia um carro novinho em folha. Qualquer que seja o caso, o dono do Saab 96 e Carlsson mantiveram contato (e trocaram cartões de Natal) por décadas.
Depois de deixar as pistas, Carlsson tornou-se piloto de testes para a Saab, e até os anos 90 nenhum novo modelo era lançado sem que ele aprovasse sua dirigibilidade. Seu carisma também garantia que ele fosse um ótimo relações-públicas para a marca, ajudando a convencer o público de que as inovações da companhia em economia e segurança tornassem modelos como o 900 e o 9000 em sucessos de vendas na Suécia.
Mesmo sem ter assinado um contrato de tabalho quando se tornou piloto pela Saab, em 1955, a carreira de décadas na companhia tornou o nome de Erik Carlsson tão associado à marca que ele ganhou um novo apelido: Mr. Saab. E ele também emprestou sobrenome a uma série especial: os Saab 900, 9000 e 9-3 Carlsson.
O Mr. Saab viveu para ver Pat Moss morrer em 2008. Viveu para ver a divisão de automóveis da Saab tornar-se uma divisão da General Motors e vender Subarus rebatizados – o 9-2X Aero nada mais é do que um WRX Wagon de primeira geração com outra dianteira e outro nome (embora isto não seja de todo ruim). Nada disso, porém, impediu que ele continuasse, orgulhosamente, a representar sua companhia até os últimos anos de sua vida.