A Ferrari sempre disse que jamais faria um SUV. A declaração mais marcante a respeito desta recusa da marca em aderir ao que parecia ser um modismo não muito passageiro foi dita em 2016 pelo então CEO da Ferrari, o finado Sergio Marchionne: “Um SUV Ferrari? Terão que atirar em mim antes”.
No ano seguinte, 2017, sem um único tiro disparado contra Sergio Marchionne, a Ferrari confirmou o desenvolvimento de um esportivo com as características de um SUV. Não dessa forma. A Ferrari se recusa a considerá-la um SUV. Eles só mencionaram esta sigla e a palavra crossover de passagem, entre parênteses, no comunicado de lançamento à imprensa para explicar o porquê de a Purosangue não ser um desses “GT modernos”.
No comunicado está escrito o seguinte: “Foram adotados um layout completamente diferente e proporções inovadoras quando comparados aos arquétipos dos GT modernos (os chamados crossovers e SUV)”. E só. Para a Ferrari, ela é um esportivo e pronto. Um “esportivo de quatro portas e quatro lugares”, segundo a Ferrari. O primeiro que eles fizeram.
A decisão da Ferrari em não chamar a Purosangue de “SUV” ou “crossover” foi ousada. Porque palavras servem para representar a realidade, não para modificá-la. Da mesma forma que a palavra “vírus” não transmite doenças, chamar um carro de “esportivo” não o faz andar mais rápido ou ter uma dinâmica afiada. E não chamá-lo de “crossover” ou “SUV’ também não o faz deixar de ser um crossover ou um SUV. Não é a terminologia comercial que determina o que um carro é, mas seu projeto de engenharia e sua capacidade.
Por isso a decisão da Ferrari foi ousada: desviar dos termos “SUV” e “crossover” de nada adianta se a Purosangue rodar como um SUV/crossover. Se o carro não tiver nada do que se espera de uma Ferrari de quatro lugares, ele será o SUV que a Ferrari não quer chamar de SUV. Se ele tiver… a Ferrari está certa em não chamá-lo assim.
Como a palavra não quer dizer nada sem uma base prática calçada na realidade, a única forma de descobrir se ele é um SUV, um esportivo, um crossover ou uma salamandra, é ver como ele se comporta no mundo real.
Para começar a descoberta — e ainda falando em palavras e realidade –, repare que o nome do carro é Purosangue, outra jogada de simbolismo e significados da Ferrari. É um nome irônico para o carro que menos se parece com uma típica Ferrari em toda a história de 75 anos da Ferrari, mas o pessoal de Maranello ao menos levou isso em conta nas decisões técnicas do carro.
Veja por exemplo a suspensão: ela não tem bolsas de ar, como tantos SUV de luxo. Ela se mantém fiel às molas helicoidais com amortecedores ajustáveis que se espera encontrar em uma Ferrari. Sua antecessora, a GTC4Lusso T, até aderiu ao downsizing, mas esta Purosangue não. Seu motor é um puríssimo V12 aspirado, instalado na porção central dianteira do carro. Diferentemente de outros SUV como o Cayenne ou o Urus ou ainda o Aston DBX, ao se abrir o capô você pode achar que ela tem um V6. Isso, porque o motor é tão recuado em direção à linha central do carro que somente metade fica exposta.
Logo de saída, portanto, a Purosangue conserva três características de sua linhagem: o V12 aspirado, a posição central-dianteira na qual ele é instalado, e a suspensão com molas metálicas. Outra tradição preservada: não há espaço para um quinto passageiro — nem mesmo ocasionalmente. Não há um banco traseiro, mas dois bancos individuais como os dois dianteiros. A diferença aqui é que, pelo porte do carro e por ter quatro portas, ela oferece mais espaço que todas as suas antecessoras para quem vai atrás.
Os americanos da revista Car and Driver pontuaram isso ao falar sobre a cabine da Purosangue:
“Sendo a única Ferrari a oferecer espaço de verdade para quatro ocupantes, a Purosangue tem uma dupla de portas pivotadas na parte posterior, como as de uma carruagem (também chamadas “suicidas”), para facilitar o acesso aos bancos traseiros, mantendo a aparência de um carro duas-portas’.
Nos GT da Ferrari, com sua suspensão baixa e ponto H encaixado no chassi, entrar no carro é uma questão de encaixar as pernas, girar o corpo e se soltar sobre os bancos. Na Purosangue, claro, é diferente afinal ela é um crossov… um esportivo de quatro lugares e quatro portas. Apesar disso, tanto a cabine quanto a posição do quadril são mais baixos que em outros super crossovers premium, como pontuam os britânicos da revista EVO:
“Você não sobe na Purosangue, mas é um tanto estranho estar na cabine de uma Ferrari em posição tão elevada. Ela parece muitos andares mais baixa que um DBX707, por exemplo, mas a sensação de se estar acima do trânsito. Imagine uma M5 Touring Cross. É mais ou menos isso.”
Outra característica que ajuda afastar a sensação de se estar em um SUV é a ausência de uma tela central, padrão nos carros modernos e, principalmente, em crossovers familiares.A revista americana Road & Track descreve da seguinte forma:
“Não há tela central. Em vez disso a maioria das funções são operadas por uma tela no quadro de instrumentos e controladas por botões e superfícies no volante, espelhadas para o passageiro da frente em uma tela separada. No console central há um único botão rotativo com uma tela integrada, que se eleva do painel para controlar o ar-condicionado e os ajustes dos bancos.
À primeira vista é complexo, e se exige muita concentração para fazer pequenas mudanças. A Ferrari também dispensou o sistema de navegação, já que seus cliente usam Apple CarPlay ou Android Auto, o que funciona bem, mas para ver o mapa é preciso abrir mão do conta-giros. Alternar entre as duas telas não é difícil, mas não é muito elegante.”
Ainda segundo a Road & Track, esse é o único aspecto deselegante da Purosangue, pois o restante da cabine é condizente com uma Ferrari de topo. Os bancos são “muito confortáveis” e têm massageadores, algo inédito nas Ferrari. O teto panorâmico de vidro ajuda a criar uma sensação de arejamento, fazendo o carro parecer mais espaçoso do que é. Quem não fizer questão da luminosidade, pode escolher o teto de fibra de carbono opcional, o que certamente ajuda a reduzir o centro de gravidade e deve melhorar sutilmente o comportamento dinâmico da Purosangue. A revista Car Magazine descreve os materiais usados:
“A escola de materiais é de primeira, indo de couros impecavelmente costurados a uma trama de fibra de carbono com fios de cobre integrados. O carpete é feito de tecido de alta resistência usado em uniformes militares, o que significa que pés (ou patas) lamacentas não precisam ser objeto de discussão.”
Já a Autoexpress pontuou que o interior não é perfeito — especialmente na traseira. Além de não haver massageadores nos bancos traseiros, o site menciona que “o espaço para a cabeça não é dos melhores”, embora o acesso seja “uma boa experiência graças às distintas portas traseiras”. O porta-malas “não é grande como se espera de um carro que ocupa tanto espaço na rua”. O compartimento foi alvo de críticas também da Autocar:
“O porta-malas tem 473 litros, ante os mais de 600 litros dos vários rivais do Grupo Volkswagen. E mesmo com os revestimentos protetores opcionais para o verso dos bancos traseiros, quem espera transportar esquis ou bicicletas acabará usando um acessório opcional para a tampa do porta-malas.”
Como comparação, a Ferrari GTC4Lusso tinha 450 litros de volume no porta-malas. Nesse quesito, a Purosangue só perde para seus ancestrais Tipo 101 (365 GT 2+2, 400 e 412), que tinham porta-malas de 500 litros, o maior da história da Ferrari.
Se considerarmos que a proposta dos SUV/crossovers é o espaço interno e a versatilidade, a Purosangue cai mais para a definição de GT do que para a definição dos SUV/crossovers. Ao mesmo tempo, ela é um GT mais conveniente, o que gera uma licença poética para chamá-la de “crossover GT” — como a própria Ferrari chamou seus rivais não-declarados. O site Top Gear diz que ela é “utilitária até certo ponto” por ser “o mais prática possível” mantendo características de uma Ferrari. “Ela parece um meio-termo entre um GT grande e um SUV”, segundo a publicação.
Todos os veículos que avaliaram a Purosangue foram unânimes a respeito do isolamento acústico da cabine. Ou se ouve o áudio hi-fi da Burmeister, ou o ronco do V12 aspirado de 6,5 litros e 725 cv ecoando pelo habitáculo a 8.250 rpm, sua rotação máxima. A Evo Magazine diz que só isso, essa caraterística “selvagem e faminta por rotações” coloca a Purosangue em sua própria categoria. É uma impressão compartilhada com o Top Gear:
“Onde os outros SUV ficam sem ideias, a Purosangue eleva o nível do jogo. A natureza pulsante da subida de giros do V12 expõe uma nova dimensão de capacidade. A Purosangue se torna um imenso carro de rali que gosta de ser abusado e não perde o fôlego quando tudo começa a ficar divertido. E ela faz isso porque ainda é um carro alto com mais de 700 cv.
Não que você perceba isso. Ela tem sensibilidade e precisão, e há um senso de conexão que parece coisa de outro mundo. Ela simplesmente avança em seu caminho em vez de brigar por ele. Uma das razões disso é o sistema de tração integral, que parece ser extremamente direcionado para a traseira. Em pista seca com carga máxima no acelerador — como na saída de uma curva de baixa, por exemplo — os pneus traseiros deslizam alegremente antes de a dianteira agarrar e puxá-la de volta para a trajetória.
Não é um off-roader, é mais um carro de tração traseira com um eixo dianteiro auxiliar do que algo que pode fechar o diferencial. Deve ser um ralizeiro espetacular (e muito caro). E ainda assim ele tem esterçamento das rodas traseiras para lidar com estacionamentos de hotéis chiques.”
A Road & Track também não economizou elogios:
“Este V12 é um dos maiores de todos os tempos. Suave e refinado, mas sempre disposto a rasgar além das 8.000. Não há muito ronco, mas, na cabine, você ouve bem a admissão e a combustão, com essa assinatura aural variando constantemente de acordo com a velocidade do motor e a posição do acelerador. Como deve ser.
Isso dá ao motor uma qualidade interativa que é amplificada pela velocíssima transmissão de embreagem dupla. As trocas não são afiadas como na 812, mas isso é mais adequado à personalidade deste GT de pernas compridas. Sendo naturalmente aspirado, é fácil controlar a potência e o torque disponíveis. Você também é encorajado e girar o V12 porque, mesmo com uma ampla curva de torque, o motor trabalha melhor e soa melhor quanto mais alto ele gira. É um negócio especial.”
A pista que procuramos sobre o desempenho da Purosangue está no foco de praticamente todas as avaliações na suspensão do carro. Se falam da suspensão — e falam bem dela —, parece que a Ferrari construiu uma realidade que embasa suas palavras.
O negócio é interessante até mesmo no papel. Como mencionei antes, ela dispensa as bolsas de ar das suspensões pneumáticas que os SUV de luxo adoram. Em vez disso, ela usa molas helicoidais metálicas e amortecedores ajustáveis. A diferença aqui é que não há barras estabilizadoras, e quem ajusta os amortecedores são motores elétricos que variam constantemente a carga da suspensão. É como o Magic Body Control da Mercedes, mas em vez de aumentar ou diminuir a pressão das bolsas de ar, o controle de compressão e retorno é feito pelos motores elétricos.
Isso permite eliminar as barras estabilizadoras, que acabam limitando o conforto de rodagem em linha reta em nome de uma maior capacidade de desafiar a inércia nas curvas. Quando a Purosangue faz uma curva para a direita, o controle de suspensão do lado esquerdo altera a carga do conjunto para minimizar a rolagem da carroceria. Esse sistema foi desenvolvido pela Multimatic, e calibrado pela Ferrari, que o rebatizou como FAST – Ferrari Active Suspension Technology. A suspensão tem ajustes independentes do modo de condução — Soft, Mid e Hard, este último disponível apenas no modo Sport.
Controle de rolagem: como as fabricantes evoluíram a suspensão ativa?
Todas as publicações foram unânimes a respeito do acerto da suspensão. A Evo Magazine diz que “a rodagem e o acerto dos novos amortecedores foi uma verdadeira surpresa”. O Top Gear diz que ela funciona “de forma espetacular”, enquanto a AutoExpress atesta que “ela não roda como nenhum outro SUV”. Os britânicos da tradicionalíssima Autocar disseram que ela é “complicada, porém brilhante” e capaz de “resistir à rolagem da carroceria com confiança”.
A Road & Track percebeu algo diferente, mas ainda positivo:
“O mais interessante desse ajuste de suspensão é que ele não afeta o desempenho do carro, mas o que os ocupantes sentem. Em qualquer um dos modos, há níveis de ajuste e todos eles são ótimos. A Purosangue sempre parece um pouco firme, mas com as arestas aparadas. Impressionante mesmo é o desempenho em estradas irregulares, onde o carro nunca balança demais.”
O desempenho, na prática, é descrito pela Evo Magazine da seguinte forma:
“Eu temia que a versatilidade e o controle propostos pela suspensão fossem levar a Ferrari a eliminar completamente a rolagem da carroceria e criar uma plataforma impressionante, mas artificial. Em vez disso, o principal trunfo da Purosague é sua fluência. Onde o Urus sucumbe às condições da estrada, a Purosangue roda leve e parece muito mais leve, e justamente por isso ela parece mais naturalmente atlética.
O esterçamento da traseira às vezes cria uma agilidade exagerada, na qual a traseira parece sempre esterçar para dar uma impressão de reações afiadas, mas em geral a suspensão é equilibrada, responsiva e permite que o motorista controle o ritmo. Só o cheiro de freios abusados quebra o encanto. Muita gente fez SUV rápidos, mas não acho que alguém tenha feito um que seja tão equilibrado. Essa suspensão tem muito potencial, e será interessante ver onde a Ferrari irá usá-la a seguir.”
Aquela sensação de carro de rali, mencionada pelo Top Gear também apareceu na avaliação da Autocar:
“A Purosangue escorrega e salta com imensa facilidade e equilíbrio e depois se acomoda novamente com a destreza de um carro de rali. Ela não é um off-roader, nem é um 4×4. Ela sequer pode rebocar alguma coisa. Mas ela tem a experiência de se conduzir uma Ferrari V12, sem a preocupação de ralar uma pequena fortuna em uma rampa de estacionamento.”
Parece que estamos chegando à resposta, não? As conclusões das avaliações devem nos ajudar a encontrá-la. Vejamos o que achou a Road & Track, no fim das contas:
“Ela é mesmo o GT de quatro portas e quatro lugares definitivo, e que tem um tipo de carroceria muito amado e com compradores em todo o mundo. Do ponto de vista dinâmico, ela é um feito que não pode ser minimizado. Você pode não gostar da ideia de um crossover Ferrari, mas não dá para chamar isso de caça-níqueis com o nível de engenharia apresentado aqui.
O debate inevitável sobre um SUV Ferrari nem faz sentido. A Purosangue é uma maravilha que usa um novo nível de tecnologia a serviço da experiência ao volante. Não há nada parecido com ela.”
A AutoExpress teve uma conclusão semelhante, porém mais ácida:
“Não há nada como a Ferrari Purosangue neste momento. A Ferrari pode colocar o preço que quiser no carro, porque sabe que seus clientes vão pagar. Com gosto. Quanto a nós, só podemos assistir incrédulos, mas sabendo que estamos na presença de uma grandiosidade.”
A Evo Magazine aparentemente quis ser mais comedida:
“Em geral, a Purosangue é um carro profundamente impressionante e intrigante. Não sei exatamente para quem ela foi feita. Não é prática para ser uma verdadeira alternativa ao Range Rover ou ao Cayenne, mas é muito grande e comprometida para ser um verdadeiro GT. Ela também carece do glamour nostálgico que transborda da GTC4 Lusso, com sua ligação direta com os maravilhosos GT do passado. Ela não parece muito especial. Mas que motor ela tem…
Eles vão vender todas que puderem fazer. É para isso que ela foi feita, no fim das contas. A Purosangue é um carro feliz para o futuro da Ferrari, mas é um pouco triste que ela precise existir.”
O que posso dizer diante de tudo isso, tentando responder a pergunta inicial? Bem… as conclusões variam da empolgação otimista a um certo elogio pessimista, não? Voltando àquela história da realidade como base para as palavras, a Ferrari precisava atender a expectativa do público que queria um novo GT da Ferrari, mas também queria um carro com rodas maiores e suspensão mais elevada.
O que a Ferrari fez com a Purosangue, como tudo indica, foi entregar o melhor possível nestas condições. O “possível” e as “condições” são só outras formas de nos referirmos à realidade, se você pensar por um instante. E a realidade é que a Ferrari criou algo que não se parece com nada que há por aí. Tem jeito de SUV, mas não tem o espaço de SUV. Anda como um GT, mas é maior e mais alto que um GT. Como você se refere a algo que não existia até cinco minutos atrás? Você inventa um nome.
Acho que encontramos a resposta, não?
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