Omundo não teria tanta graça sem os malucos que querem fazer tudo diferente – os não-conformistas que se recusam a pensar como as outras pessoas, a aceitar o óbvio. Os corajosos, destemidos, que não tem medo do fracasso. Na melhor das hipóteses, se tudo der certo, eles entram para a posteridade como visionários, inspiração para todos nós. Na pior das hipóteses… ao menos o entretenimento é garantido com uma boa história para contar.
A história da vez tem a ver com a Alfa Romeo – possivelmente uma das marcas mais cheias de caráter do planeta. Tanto caráter, na verdade, que a maior parte dos entusiastas perdoa quaisquer problemas que os Alfa tradicionalmente apresentam. Já virou tradição, na verdade: estranho seria se o Alfa Romeo Giulia, além de um dos melhores carros para se dirigir da atualidade, também fosse um dos mais confiáveis e não desse problemas. .
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O mais curioso é que, apesar desta fama, a Alfa Romeo nunca foi fã de soluções tradicionais e consagradas. A estrada mais rápida e segura muitas vezes passa longe de ser a mais divertida, e a Alfa sabe disto.
O que ajuda a explicar porque, na década de 1970, aqueles italianos malucos decidiram fazer um carro de dois motores para disputar ralis de longa duração – o Alfa Romeo Alfasud Ti Bimotore 4×4, de 1977.
Quem conhece um pouco da história da Alfa Romeo sabe que eles já haviam feito um carro de dois motores antes: o 16C Bimotore, um monoposto da década de 1930 que foi o primeiro carro de corrida projetado por Enzo Ferrari – como o nosso colega Milton Rubinho contou aqui. O precedente, portanto, já existia.
Dois motores, nenhum juízo: Alfa Romeo 16C Bimotore – ou o primeiro Ferrari projetado por Enzo
Diferentemente do 16C, porém, o Alfasud Bimotore não chegou a competir a sério de forma oficial, embora tivesse o apoio da fabricante. O carro, na verdade, foi um projeto quase independente de Gianfranco Mantovani, fundador e dono da Wainer, oficina de preparação especializada nos Alfa Romeo que, ocasionalmente, embarcava em projetos com a ajuda da própria fabricante e também da Autodelta – possivelmente os maiores especialistas em Alfa Romeo do planeta além da própria Alfa Romeo.
Entre os alfisti, o nome de Mantovani é mais ligado aos monopostos – em 1958 ele já os construía, sempre com mecânica Alfa, e os monopostos foram sua principal ocupação até o fim da década de 1980. Apesar de ser um cara insistente e que fazia bons carros, os resultados de seus esforços nunca foram muito expressivos. E o problema era quase sempre o mesmo: falta de confiabilidade e quebras mecânicas.
O Alfasud Ti Bimotore foi, então, um ponto fora da curva em sua carreira.
Tudo começou com um Alfasud 1974. Por si só o Alfasud era um carro interessantíssimo – lançado em 1971, ele foi concebido como o modelo de entrada da marca, apostando em uma carroceria compacta e um projeto simples, porém com o DNA da Alfa Romeo. Ou seja: devia ser, acima de tudo, empolgante na hora de guiar, mesmo custando pouco. A Alfa até criou uma nova empresa só para cuidar de sua fabricação.
Outro aspecto notável era o motor boxer – um quatro-cilindros criado especificamente para o Alfasud que injetava bastante personalidade no carro por si só. Além do ronco diferenciado, ele ajudava a manter o centro de gravidade mais baixo e tinha até sistema de cárter seco.
A ideia de Mantovani era transformar o Alfasud em um carro capaz de encarar sem problemas provas de rally raid, como o Safari Rally ou o Rally Dakar. Sua lógica fazia certo sentido: com dois motores, um na frente e um atrás, obtinha-se instantaneamente tração nas quatro rodas, além de uma espécie de “backup”: caso um dos motores tivesse problemas durante a prova, o carro poderia continuar rodando com o outro – mesmo que com metade da potência. Era como um “nobreak”, mas para o carro.
O Alfasud Ti vinha equipado com um boxer de 1,2 litro e 79 cv, acoplado a uma caixa manual de cinco marchas que levava a força para as rodas dianteiras – para muitos, o grande pecado do carro, visto que até então não existiam outros Alfa com tração nas rodas da frente. Mantovani, então, aproveitou seus contatos oficiais para conseguir outro conjunto de motor e câmbio para montar na parte de trás do carro. O banco traseiro foi removido para acomodar o segundo powertrain.
A ignição dos dois motores era acionada separadamente por uma chave de partida – ou seja, era possível escolher entre tração dianteira, tração traseira ou 4×4 antes de sair dirigindo. Os dois câmbios eram ligados ao mesmo trambulador, e o pedal da esquerda operava as duas embreagens simultaneamente. O segundo motor, obviamente, recebeu um sistema de escape dedicado – e, como tomou o lugar do tanque de combustível, um novo reservatório de 80 litros foi instalado no porta-malas.
Olhando por fora, a única mudança aparente foi a adoção de dois scoops para admissão de ar frio nos para-lamas traseiros, complementado por dois radiadores com ventoinha elétrica – e um terceiro radiador para o óleo. Era uma modificação importantíssima, pois a ideia era colocar o carro para disputar provas de longa duração em desertos. Apesar disto, porém, sua dinâmica foi testada na neve – o que resultou em belos registros fotográficos.
Com quase 160 cv em um veículo de pouco mais de 900 kg, o resultado era um foguetinho capaz de ir de zero a 100 km/h em 8,1 segundos, com máxima de 215 km/h – números dignos de hot hatches lançados 20 anos depois. Mas… não era o suficiente.
Os motivos para o cancelamento do projeto nunca foram muito claros, mas o fato é que o Alfasud Bimotore de Gianfranco Mantovani nunca passou da fase de protótipo. Certamente problemas mecânicos resultantes da complexidade excessiva (e da própria natureza do carro) contribuíram para isto. Talvez por desilusão, Mantovani deixou o carro para lá e voltou a concentrar-se nos seus fracassados monopostos.
Não se sabe o que foi feito do Alfasud Bimotore após o cancelamento do projeto, que ocorreu em algum momento entre 1978 e 1979. O que se sabe, porém, é que ele foi preservado – possivelmente por pessoas próximas ao próprio Mantovani – e que, atualmente, está igualzinho ao que era quando foi montado, incluindo a pintura vermelha.
A RM Sotheby’s vai leiloá-lo em fevereiro durante um evento em Paris, e diz que o Alfa nunca foi registrado para rodar nas ruas. Seu destino provavelmente será uma coleção particular, mas gostaríamos de ter a certeza de que o próximo dono ao menos vai dirigir de vez em quando um dos Alfa Romeo mais bizarramente interessantes já feitos.