Você chegou há tanto tempo e foi tão presente na minha rotina, que nem lembro direito quando foi que nos vimos pela primeira vez. Sei que faz uns dez anos – ou seja, foi ali entre 2011 e 2012. Lembro que tinha um filho recém-chegado e que, para me dar uma força, meu pai deixou o carro dele comigo. “Emprestado”, lembro bem – um Mille ELX 1995, branco, quatro portas. Tenho certeza que aquele Fiasa tinha algum veneno.
Mas, meses depois de me “emprestar” o Uno, meu pai comprou outro carro. Outro Uno – você, meu amigo. Na época, semi-novo, menos de quatro anos de vida e menos de 40.000 km rodados, sempre em rodovias, por uma senhorinha de 50 ou 60 anos. A carroceria Vermelho Alpine reluzente, os para-choques e molduras de plástico cinza ainda bem corados, faróis e lanternas ainda cristalinos, tecido impecável nos bancos, calotas que pareciam novas. Os bancos estavam impecáveis, o volante parecia nunca ter sido usado, e juro que havia até um resquício do famigerado cheirinho de carro novo em seu interior.
Foi uma surpresa – se me recordo direito, sua antiga dona te ofereceu ao meu pai como quem não quer nada. Como meu pai tinha tempo livre e um dinheirinho sobrando, topou “dar uma olhadinha”, também sem compromisso… e te trouxe para casa. Eu havia acabado de ganhar um carro, e meu pai tinha um Uno novo. De novo. O terceiro da família, em sequência.
Assim, tínhamos dois Uno na família – due Uno! E eu dividi meu tempo entre os dois. Era divertido ficar caçando as coisas que os dois tinham de igual, o que eles tinham de diferente, e onde um era melhor que o outro. Os bancos do ELX, me desculpe, eram melhores que os seus. Mais macios, maiores, com um tecido mais chique. E ele andava mais, mesmo sendo mais antigo – estou te dizendo que tinha algo naquele Fiasa! Mas você era absurdamente confiável, e fazia completa justiça ao emblema Economy na tampa traseira. Sua suspensão era mais alta, sua direção era mais leve, e você rodava mais silencioso. A suspensão mais alta, com um pouco mais de curso, te fazia o carro perfeito para o asfalto ruim do inteiror paulista, e uma delícia em estradas de terra.
Então, quando inevitavelmente meu velho decidiu comprar outro carro – outro Fiat, uma Idea Adventure com a qual está até hoje, você veio parar nas minhas mãos. Isto sim eu sei exatamente quando foi: no fim de 2015, quando eu já te conhecia muito bem e seu hodômetro já tinha passado dos 80.000 km. Você se tornou meu segundo carro quando o FlatOut já existia e quando eu já era um motorista bem melhor, mas foi com você que eu adquiri mais horas de volante.
Trabalho em home office há mais de dez anos e não preciso sair com o carro todos os dias para ir até o escritório, mas isto não significa que você não foi usado e, talvez, um pouquinho abusado.
As primeiras viagens longas a lugares desconhecidos, com porta-malas cheio e GPS no painel, foram com você. As expedições para o meio do mato, por estradas de chão que eu nunca havia explorado antes, eram um passeio no parque para você. Sem falar nas escapulidas para dirigir sem motivo e com vontade pelas rodovias da região, estreitas e cheias de curvas – deliciosas em um carro de 800 kg vazio, com 60 cv e pneus novos.
E assim passaram-se cinco anos – cinco anos ao longo dos quais você e o FlatOut foram a única constante da minha vida. Você viu meu filho nascer, viu o dia em que ele se mudou para uma cidade distante, testemunhou quatro mudanças de endereço (e ajudou a levar coisas em todas elas), me acompanhou na minha primeira cobertura do Salão do Automóvel (que morro de medo de ser a última) e até figurou em algumas matérias para o site. Você sempre esteve lá, e nunca reclamou. Nunca exigiu nada além de manutenção em dia, gasolina de qualidade e um banho aos fins de semana.
Hoje seu hodômetro marca pouco mais de 135.000 km, e a maioria esmagadora é minha. Com toda a certeza é o carro que eu mais dirigi na vida. E que, agora, não poderei mais dirigir. Você foi embora no último sábado, 6 de março de 2021. Pouco mais de cinco anos desde que se tornou meu segundo carro.
Você pode não é um carro esportivo. Nas curvas, há outros hatchbacks baratos que se saem melhor – o Ford Fiesta, o Chevrolet Corsa e o Renault Clio, para dizer só três. O motor não é espetacular: faz seu trabalho, é macio e gosta de girar, bebendo pouco por isto. Mas é um 1.0 (999 cm³, para ser exato) e, como tal, exige que se explore com vontade a curva de torque e demanda reduções nas ladeiras e ultrapassagens. O Uno te ensina a não ter medo de fazer o motor gritar, e não tolera motoristas preguiçosos. Houve um Uno automático na Itália, mas devia ser tenebroso – sem querer ofender seus parentes, claro.
Mas você foi feito direito. Foi pensado para ter o maior espaço interno possível no menor pacote concebível, custando pouco e aguentando muito – ainda mais no seu projeto brasileiro, com suspensão traseira mais robusta. Abre mão de muita coisa para isto, claro, como o acabamento interno extremamente simplificado e a ausência completa de equipamentos de série (dos opcionais, você só veio com travas e vidros elétricos). É quente demais no calor, frio demais no inverno, e básico em qualquer ocasião.
E, com isto, é leve – a falta de potência vira trunfo quando você tem que embrear, meter a terceira marcha e sentar a bota novamente para ultrapassar um caminhão a 100 km/h. Não pelo trabalho todo, obviamente, mas porque você sempre precisa extrair o máximo do carro se quiser fazer as coisas direito. Então, você aprende a gostar. Até porque, dá para ouvir tudo lá de dentro. Acrescenta à experiência.
Você não foi feito para ser esportivo e fazer curvas muito bem. Mas, quando se aprende a apreciar todos os aspectos do ato de conduzir um automóvel, é difícil não apreciar a natureza analógica, clássica e mecânica de dirigir um Uno Way Economy 2008. Flex, vermelho, duas portas. Um carro como você. E isso vai fazer falta.
Não costumo compactuar com a ideia de humanizar os carros, antropomorfizá-los, atribuir personalidade e dar apelido. Para mim, um carro é muito mais parecido com o fiel cavalo de um cowboy (solitário ou não) do Velho Oeste – você pode tratá-lo bem e até conversar com ele, mas é uma relação diferente.
E, ainda assim, cá estou eu, sentado à frente do meu computador, escrevendo uma carta para você, que já não é mais meu carro. Talvez seja um pouco de culpa – por todas as vezes em que reclamei da sua falta de conforto, pelos pequenos acidentes de percurso, por você ter dormido sob o sol por um ano inteiro, por não estar na cidade quando seu novo dono foi buscá-lo. Talvez por ver seus para-choques esbranquiçados, suas calotas despedaçadas, suas lanternas traseiras novas com piscas da cor errada e a pintura queimada de sol. Aliás, não rolou nem uma foto de despedida, e isto me entristece. Então, acho que você merece este último elogio público. Te devo essa.
Por ora, sou um FlatOuter sem carro – e membro do clube dos sem-Uno. Meu próximo carro não será como você. Não apenas porque preciso conhecer outros veículos, mas também porque você é insubstituível.