Pode um carro esporte com motor “de caminhão”? Se vocês perguntarem para um americano, responderá que nada mais normal que isso. Afinal, os motores de automóveis americanos do pós-guerra quase que sempre eram coisas totalmente comerciais em espírito: grandes, baixa potência específica e torque mais alto, e melhor distribuído pelas faixas úteis de giro deles.
O Corvette original, seis cilindros em linha, tinha um motor que era usado em caminhões e caminhonetes na época. Idem para quando virou V8; o Chevrolet V8 de bloco pequeno é tão conhecido como motor de veículo de carga quanto para carros esporte como o Corvette.
O que dizer do Viper então? Embora fundido em alumínio e com várias alterações em relação ao seu parente usado nas caminhonetes RAM, claramente um veio do outro. E a ideia toda do Viper veio de usar o motor de caminhão num Cobra moderno. E, alguém pode dizer, sem falar mentira, que o Cobra é um AC Ace com motor de caminhão Ford. O carro teve, afinal de contas, V8 big block também, usados em betoneiras e outros veículos que carregavam mais de 50 toneladas.
O que dá uma ideia do apelo da história toda: se algo foi desenhado para puxar 50 toneladas, imagine o que faria com menos de uma delas? Nem sempre tal coisa funciona assim, claro; os Diesel que puxam 50 toneladas frequentemente pesam sozinhos 1 tonelada, mas enfim… A ideias tem seu apelo, e aconteceu varias vezes na história do automóvel.
Mas, como disse, na maioria, em carros americanos. Um carro esporte europeu não escapa, normalmente, da sina de ser algo mais avançado, mais complexo, mais leve e girador e feito sob medida; o povo do velho mundo é assim mesmo, querendo sempre mostrar quão mais sofisticado, sábio e civilizado é do que você, seu índio daquela selva americana, que ainda ontem estava no caos da selvageria do mundo animal.
Ainda mais raro é um carro de corrida europeu que tenha se destacado em competições naquele continente, usando um motor de caminhão, claro. Os europeus chamam carros de corrida vitoriosos de “Puro Sangue”, um termo que vem das corridas de cavalo. Existe para significar longo e preciso desenvolvimento para carros de corrida dedicados à competição. Normalmente, denota exóticos motores DOHC de múltiplos cilindros, compressores, coisas assim. Um Puro-Sangue com motor de caminhão? Sacrebleu!
Mas assim é o famoso Delahaye 135 francês, vencedor de Le Mans e um dos últimos Grand routières francês. Um clássico da era Art-Deco que se estendeu até o pós-guerra, e deu luz a um sofisticadíssimo irmão V12 exclusivo. Mas morreu porque a França decidiu que carros da burguesia não tinham mais lugar naquele país; carros baratos eram o futuro. O que, visto de hoje, chega ser até engraçado.
O Delahaye 135
A empresa Delahaye foi fundada por um par de investidores entusiasmados, em 1898, para colocar a venda carros projetados pelo pioneiro engenheiro Emile Delahaye. Mas como muitos pioneiros de então, a empresa teve dificuldade de sobreviver e prosperar até os anos 1930.
O sucesso da empresa parisiense parecia persistir apenas com caminhões pesados, onde a qualidade de seus produtos se sobressaía na França. A ideia que tornaria a marca famosa nos anos 1930, diz a lenda, veio não da empresa em si, mas de um amigo, que em breve se tornaria um competidor: Ettore Bugatti.
Est lenda apócrifa diz que Charles Weiffenbach, o administrador da empresa em perenes problemas de se firmar em automóveis, se reuniu com seu amigo e concorrente num daqueles almoços parisienses que somente os franceses sabem fazer: que duram duas a três horas regados a muito vinho, e que são terminados com uma visita às amantes.
Ettore dá uma ideia genial: pare de se matar em mercado de carro barato; os grandes conglomerados vão te vencer nisso. Uma linha mais sofisticada, cara, mais esportiva e excitante, com maior potência e linhas atraentes era o caminho. Como fazia ele, na verdade.
Weiffenbach começa o desenvolvimento de um carro deste tipo. Na verdade, claro, um Chassi; a empresa só faria chassis para este carro, o encarroçamento ficando a cargo do cliente, sob encomenda de alguma das famosas casa francesas. Usava o motor de seis cilindros em linha OHV dos caminhões da marca, originalmente de 3 litros, mas aqui aumentado para 3,6 litros (80 x 107 mm, 3557 cm³) e um chassi largamente convencional, mas de qualidade.
Era um chassi-escada, com uma inovadora suspensão independente dianteira, onde um feixe de molas transversal fazia as vezes do braço inferior, com uma mola não muito dura (incomum então), amortecida por um amortecedor Houdaille de fricção, regulável em rigidez, por roda. Na traseira eram convencionais molas semi-elípticas e amortecedores reguláveis a fricção como na frente.
A transmissão era uma Cotal pré-seletiva; a embreagem servia para sair da imobilidade, e depois disso se selecionava a próxima marcha num seletor elétrico, e ela era acionada com o pedal de embreagem; funcionava tanto para subir marchas como para reduzir. Numa época em que os câmbios requeriam extrema habilidade para serem operados, e não existiam automáticos, era uma revelação, e muito bom nas ruas ou nas pistas. Só era limitado em uso por três motivos: além de extremamente complexo e caro, era enorme, e pesado.
O Delaheys 135, como foi chamado, era um Grand Routière. Um carro de luxo veloz, para estradas. Era pesado e grande, mas andava muito bem: o seis em linha de caminhão era modificado com três carburadores Solex horizontais, e taxa de 8,2:1, alta para a época; dava nada menos que 160 cv a 4200 rpm, e muito torque em toda rotação.
Mesmo sendo criado para as ruas e não as pistas, acabou sendo adaptado para competição, onde, surpresa, foi o vencedor das 24 horas de Le Mans em 1938. Um puro-sangue, obtido com DNA de burro de carga, praticamente.
O carro de corrida era o 135 CS, que era extremamente aliviado em peso: o menor entr-eixos, de 2946 mm, com carroceria simples e leve, enormes freios a tambor que ocupavam todas as rodas de 17 polegadas, e paralamas separados. Pesava 1270 kg, fazia o 0-100 km/h em 8,5 segundos, e chegava a mais de 200 km/h. Um desempenho invejável em 1938.
Mas o maior sucesso foi realmente como grandes carros GT de dois lugares. Eram os nos 1930, o auge da Art Déco, e o ápice dos parisienses como Franay, Figoni et Falaschi, Chapron e Binder. No 135, Figoni et Falaschi criaram obras extremamente espalhafatosas, com paralamas fechados gigantescos. Se aproveitavam do fato que podiam fazer um carro pesado; o torcudo motor do Delahaye, acostumado a ser besta de carga, puxava o carro sem muito esforço.
O 145: o lendário Delahaye V12
Um dos mais raros e quase místicos automóveis que já apareceram nesta terra certamente foram os elusivos Delahaye V12. Na época em que os 135 estavam em seu ápice, e com carrocerias cada vez mais loucas se tornavam um mito de luxo e opulência francês, impulsionados por vitórias em pista, um desafio aparece para a indústria francesa. O Million!
Explico: depois de 1936, ficou progressivamente cada vez mais impossível vencer os alemães em Grand Prix, o percussor da F1. Os Mercedes-Benz e Auto-Union patrocinados pelo governo de Hitler se tornariam praticamente invencíveis até a guerra estourar. Nem mesmo os italianos, com seus Maserati e Alfa Romeo, conseguiam sucesso. Os franceses então ficavam cada vez mais para trás, e a Bugatti, sua maior esperança, também totalmente incapaz frente à flechas de prata.
O Automobile Club de France entrou em ação. Tomou a iniciativa de arrecadar dinheiro por meio de assinaturas públicas e doações. O povo francês pagou sua parte claro: o governo entrou na brincadeira aumentando o imposto sobre as novas carteiras de motorista em 10 francos cada, parte disso para o “Le Million du Fonds de Course”. O projeto teve tanto sucesso que 1.480.000 francos foram arrecadados, para serem divididos em dois prêmios separados.
A meta era superar o melhor desempenho feito no GP da França em Montlhery, recorde detido pelo francês Louis Chiron, dirigindo um Alfa Romeo 8c2900 no evento de 1934. O recorde de Chiron significava uma média de velocidade de 143,636 km/h nos primeiros 200 km da corrida de 500 km. Este valor foi então aumentado em 2% para 146,508 km/h, que deveria ser alcançada a partir de uma partida parada, em 16 voltas do circuito, totalizando 200 km.
Foi decidido oferecer 400.000 francos ao fabricante francês cujo carro pudesse atingir essa meta até a meia-noite de 15 de abril de 1937 e, com uma tolerância de deslocamento do motor de 10% sobre a fórmula da FIA. Obviamente, isso foi direcionado à Bugatti, cujo Type 59 de 3,3 litros superalimentado e bem desenvolvido seria então elegível. Em 12 de abril, Jean-Pierre Wimille obteve o prêmio de 400 mil francos com uma média de 146,654 km/h num Bugatti Type 59. No entanto, o “Le Million”, o prêmio cobiçado de um milhão de francos, só poderia ser ganho com um carro que aderisse estritamente à fórmula da FIA: 3,0 litros com compressor ou 4,5 litros aspirado.
Weiffenbach viu uma oportunidade. Considerou prudentemente que um 4,5 litros forte, mas leve e bem aerodinâmico, mas menor estressado com alta rotações como o Bugatti, poderia fazer a prova com menos abastecimentos e mais velocidade. Seu engenheiro Jean François esboça as suas ideias para o magnífico motor V-12 Delahaye de 4,5 litros nos guardanapos do restaurante Duplantin perto do Palace Perièr em Paris, em mais um daqueles almoços franceses longos e etílicos. Nascia um carro que seria tão raro e mítico como um carro podia ser.
Acredita-se que os três chassis Tipo 145 que seriam feitos foram montados no outono de 1936, e que pelo menos um estava pronto para testes em Montlhéry no mês de julho seguinte.O rsto é história conhecida: o carro, depenado e simples como o 135 CS de competição, consegue vencer Le Million.
O motor é um desenho parcido com os Talbot-Lago seis em linha de Walter Becchia (depois, engenheiro da Citroën): um OHV, mas com válvulas dispostas opostas e inclinadas, como um Chrysler Hemi. Mas o Hemi V8 tem um comando só: o V12 Delahaye tem três: um no vale do V a 60°, os outros dois nos dois lados externos do bloco.
Essencialmente um motor de competição, tem balancins varetas e válvulas leves, tuchos mecânicos, virabrequim usinado a partir de um tarugo sólido de aço e totalmente balanceado, e tripla carburação. Com taxa de 9,4:1 (altíssima para 1936-1938), e medindo 75 x 84,7 mm (4495 cm³), o V12 dava 240 cv e 31 mkgf. O chassi era o mesmo dos 135 CS, e o carro pesava perto de 1300 kg.
Mas o mais incrível foi que Henri Chapron comprou dois dos chassi que não chegaram a competir, visando a criar o maior supercarro de rua dos anos 1930. Uma guerra interveio, e Chapron só conseguiu termina-los em 1946. Mas até hoje existem, na Nethrcutt Collection americana, e são simplesmente magníficos.
São carros baixos, longos, com cabine recuada e capô longuíssimo; estilisticamente os paralamas são mais altos que a carroceria, dando um ar de carro de corrida baixíssimo ao cupê de rua de luxo. Dois lugares, uma enorme direção perto do peito, pernas esticadas, busanfa baixinha, é magnificamente belo, e convidativo. Pensa-se imediatamente de sentar-se ali e acelerar o bravo V12 de corrida, apontando o longo nariz para o horizonte e trocando-se marchas pré-selecionadas. O desempenho, certamente é impressionante até hoje; fala-se em coisa de 7,5 segundos no 0-100 km/h, e certamente muito mais de 200 km/h de final.
Emoldurados pela mais esportiva, longa e evocativa carroceria que já existiu, e um pedigree de competição inimitável. Um carro realmente de sonho, inimitável. Já passou da hora de alguém fazer uma réplica, esteticamente idêntica, mas com um V12 moderno. Mas como está é um sonho magnífico, uma joia inatingível, mas que aquece nossos coraçõezinhos ao som de um V12.