Hoje de manhã, procurando inspiração para o post de hoje, alguma coisa me levou a abrir o YouTube e revisitar alguns vídeos clássicos e emblemáticos para os entusiastas. O primeiro foi Climb Dance, o curta-metragem dirigido por Jean Louis Mourney que retrata de forma artística a subida de Ari Vatanen em Pikes Peak, na época em que o percurso era quase todo de chão batido.
Só um carro, uma lenda dos ralis ao volante e o ronco do motor, com algumas tomadas incríveis feitas onboard e com helicópteros.
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Depois, quase automaticamente, revi C’était Un Rendezvous que foi gravado nas ruas de Paris em 1976 usando uma câmera no para-choque de um Mercedes-Benz 450SEL 6.9, com o ronco de uma Ferrari 275 V12 (que pertencia ao diretor, Claude Lelouch) no lugar do som do V8 alemão.
Embora fique óbvia em alguns momentos a disparidade entre o que se vê e o que se ouve, C’était Un Rendezvous é um verdadeiro clássico do cinema vérité (algo como “cinema verdade” em francês) estilo de produção que busca documentar a realidade de forma artística sem abrir mão da espontaneidade e da autenticidade. São cenas quase cruas, praticamente sem diálogo ou narração. E o mesmo vale para Climb Dance, que é ainda mais autêntico – porque é real, afinal de contas.
Uma coisa bacana do YouTube é seu algorítimo para a barra de vídeos relacionados, que sempre sugere coisas interessantes. É sempre uma boa opção para descobrir novas bandas e músicas, mas hoje me serviu para outra coisa. Como eu havia assistido Climb Dance e C’était Un Rendezvous, o YouTube achou que eu gostaria de assistir à cena de perseguição principal de um filme chamado “Os Ladrões”, que foi lançado em 1971.
O que eu posso dizer? Bem, que o YouTube estava certo:
Dirigido pelo francês Henri Verneuil e estrelado por Jean-Paul Belmondo e Omar Sharif, “Os Ladrões” conta a história de um bando de, bem… ladrões que são perseguidos por um policial corrupto na Grécia – com a curiosidade de ter sido gravado na íntegra duas vezes, uma em francês e outra em inglês, pelos mesmos atores. O filme, contudo, é mais conhecido exatamente por sua espetacular cena de perseguição de quase dez minutos, na qual um Fiat 124 Special T é perseguido por um Opel Rekord nas ruas de Atenas.
Ao contrário do que costumamos ver em cenas de perseguição, que muitas vezes deixam transparecer todo o trabalho de coreografia necessário para que tudo ocorra conforme o planejado, a sequência de “Os Ladrões” é cheia de pequenas falhas intencionais que dão veracidade ao que se vê na tela. O Fiat de Jean-Paul Belmondo acerta o muro, perde o controle, entra em ruas sem saída, desce escadas e derruba barris de combustível enquanto é perseguido de perto pelo Opel, embora jamais seja alcançado. Em sua relativa simplicidade e na escolha de carros comuns, quase mundanos, a sequência é brilhante. Na verdade, “Os Ladrões” é mais conhecido por sua perseguição do que por qualquer outra coisa.
O que é justo, pois estamos falando de uma perseguição planejada e coordenada por Rémy Julienne. Você pode até conhecê-lo pelo nome, mas certamente já apreciou seu trabalho.
Rémy Julienne nasceu na França em 1930 e desde muito jovem tinha gosto pela velocidade. Tanto que, em 1956, foi o campeão francês de motocross – com apenas 26 anos de idade. Não demorou muito, porém, para que ele decidisse seguir outra carreira: a de piloto-dublê. Era comum, na verdade, que aqueles que disputavam corridas de carro e de moto acabassem se aventurando na arte de fazer manobras em frente a uma câmera, arriscando-se onde os atores não podiam se arriscar.
O primeiro filme bem-sucedido do qual Rémy participou como piloto-dublê foi o clássico “A Grande Escapada” (La Grande Vadrouille), que foi lançado em 1966. Trata-se uma comédia de ação sobre um grupo de prisioneiros franceses que tenta escapar de um cativeiro nazista na fronteira com a Suíça – e, acredite, até hoje permanece como o terceiro filme mais visto nas salas de cinema francesas em todos os tempos.
Três anos depois Rémy foi chamado para ser não apenas piloto-dublê, mas também o coordenador das cenas com veículos, em um clássico ainda maior: “Um Golpe à Italiana” (The Italian Job), que foi lançado em 1969 e tornou-se um dos favoritos dos entusiastas pelo destaque que deu ao Mini Cooper em sua trama. The Italian Job é o que se chama, em inglês, de caper film – um gênero da ficção criminal cujo foco principal no enredo são justamente os crimes perpetrados pelos personagens principais, sempre com uma boa dose de audácia, habilidade e humor.
O filme todo parece uma grande perseguição, e o mais bacana é justamente a forma quase surreal com a qual os Mini correm pela cidade italiana de Turim, entram em áreas de comércio e restaurantes, sobem e descem escadas e vão parar nos telhados dos prédios. A questão é que, apesar da improbabilidade e do exagero na destruição do cenário, as cenas não eram exatamente implausíveis – eram do tipo que fazia o público pensar “caramba, isso poderia acontecer mesmo“. É improvável, mas não implausível. Esta característica marcou todo o trabalho de Rémy como coordenador ao longo das décadas.
Durante a produção, Rémy foi o dublê de Michael Caine, que interpretou o gângster protagonista da película. Apesar do belo trabalho, porém, ele não teve seu nome incluído nos créditos do filme. Ainda assim, foi com The Italian Job que Rémy chegou ao início do auge de sua carreira como piloto-dublê e coordenador de manobras no cinema, o que lhe abriu espaço para produções como “Os Ladrões” e, entre 1981 e 1995, seis filmes de James Bond – sendo que o último deles foi “007 contra GoldenEye” com Pierce Brosnan, considerado um dos melhores filmes de 007 na era moderna. O filme já começa com uma perseguição eletrizante entre James Bond, no icônico Aston Martin DB5, e a vilã Xenia Ontaopp em uma Ferrari F355. O cenário? As estradas nas montanhas de Côte d’Azur, no litoral sol da França.
No ano seguinte, Rémy foi o coordenador das acrobacias de “Risco Máximo” (Maximum Risk, 1996), que trazia Jean-Claude Van Damme no papel de um veterano do exército francês que encontra o corpo de um irmão gêmeo que ele nem sabia que tinha – e assim, sai no encalço dos assassinos para descobrir a verdade sobre seu passado. O carro que ele usa para fazer isto é um Renault 9 1962. A certa altura ele se envolve em uma perseguição com um Renault 5.
Temos aqui uma demonstração de outra característica das perseguições de Rémy Julienne: ele gostava de carros mundanos, comuns. Primeiro pelo fator “surpresa” de colocar em primeiro plano um automóvel que geralmente é figurante em perseguições. Segundo, porque era mais fácil e barato encontrar carros do mesmo modelo e da mesma cor para as gravações. Uma exceção notável foi o já citado Aston Martin DB5 em “007 Contra GoldenEye”, mas via de regra o elenco automotivo era bastante real world. O que acabou levando fabricantes como a Renault e a PSA e a Fiat a contratarem mais de uma vez os serviços de Rémy para trabalhar nas perseguições de seus comerciais. E mais: a perseguição de “Feliz Páscoa” (Joyeuses Pâques), de 1983, com um Fiat Uno, não deixa de ser uma ação promocional – o modelo havia sido lançado no ano anterior em um evento no Cabo Canaveral, e mostrar o Uno sofrendo todo tipo de abuso nas telonas do cinema, aguentando bravamente, era uma excelente forma de propaganda.
Em 1999, contudo, a carreira de Rémy sofreu um baque. Durante as gravações de “Táxi 2”, um Peugeot 406 que deveria aterrissar em uma montanha de papelão após um salto desviou-se da rota e acertou vários membros da equipe. Um dos operadores de câmera quebrou as duas pernas, e outro acabou por morrer dias depois, em decorrência dos ferimentos. O produtor e roteirista, Luc Besson, acusou Rémy de negligência na hora de avaliar a periculosidade da manobra. O coordenador de acrobacias rebateu, dizendo que havia alertado a produtora para certas medidas que eram necessárias, e que se tais medidas tivessem sido tomadas, o acidente poderia ter sido evitado. O vídeo do acidente pode ser visto (alguns podem ficar desconfortáveis, e por isto optei por não incorporá-lo à página).
A sentença saiu em 2007. Inicialmente, Rémy foi condenado a passar um mês na prisão e a pagar uma multa de € 13.000 à família do cameraman. Em 2009, contudo, após um novo julgamento ficou decidido que os responsáveis pelo acidente eram Luc Besson e sua produtora, a EuroCorp.
O último filme que teve as manobras de carro coordenadas por Rémy Julienne e sua equipe foi “O Código Da Vinci” (The Da Vinci Code), de 2006 – quando ele tinha 77 anos de idade.