Por alguma razão a palavra cultura se tornou muito associada a manifestações artísticas na última década, quase sempre usada como um sinônimo para englobar os diversos tipos de arte. Fala-se em cultura, imediatamente o que se imagina é o cinema, a literatura, o teatro, a pintura, a escultura, a dança e a música. É uma relação tão forte que até soa estranho colocá-la como objeto de análise. Afinal, as manifestações artísticas são, em sua essência, manifestações culturais.
Meu questionamento sobre esta associação se deve a um simples motivo: a cultura não é a forma da manifestação, mas seu conteúdo. Não é o meio pelo qual nos manifestamos, mas qual a mensagem que estamos transmitindo. Porque a motivação para a manifestação cultural está em uma série de valores sociais que adquirimos ao longo do tempo. Eles podem ser elementos práticos como o idioma, a escrita e a arquitetura, ou abstratos, como conceitos de moral e ética, que fundamentam as leis e hábitos da sociedade.
Não quero me alongar porque sei que o assunto é tedioso, mas, em resumo, a cultura é um conjunto de valores adquiridos que são transmitidos entre a sociedade para seu próprio benefício. Sem a cultura, sem essa transmissão de valores, teríamos que reaprender tudo a cada geração. Quando há uma ruptura cultural — como acontece nas revoluções — a sociedade se aproxima do caos. Os valores sobre os quais ela se fundamenta são rompidos, e sua estrutura é fragilizada como a de um prédio com alicerces em colapso.
É claro que esse conceito de cultura não se aplica apenas à sociedade em geral, mas também a pequenos grupos e segmentos da sociedade. Uma determinada área de ciência também têm sua cultura — ou não poderíamos ter avanços científicos, afinal, eles são sempre baseados nas experiências anteriores.
E isso nos traz aos motores de combustão interna.
Quando o automóvel surgiu, há quase 140 anos, não havia um padrão em sua forma de propulsão. Havia os carros movidos por motores a vapor, os carros movidos por motores de combustão interna e os carros movidos por motores elétricos. E havia até mesmo combinações destes sistemas, como nos mostrou o Lohner-Porsche de 1901, que tinha motores elétricos nas rodas e um motor de combustão na traseira para gerar energia elétrica.
No fim das contas o motor a combustão ganhou esta corrida não-disputada porque resolvia o problema da locomoção automóvel da forma mais prática e barata. O motor a vapor desapareceu e os elétricos foram relegados a uns poucos veículos de serviço — como os carros de entrega de leite da França e Reino Unido, que eram elétricos para serem silenciosos durante a noite, quando as entregas eram feitas.
Então, a partir da década de 1910, mais especificamente quando Henry Ford adaptou o conceito de linha de produção à construção do Ford T, o número de veículos a combustão nas ruas começou a disparar. Em 1920 já havia mais de 2 milhões de automóveis rodando sobre a litosfera. Em 1960 já havia mais de 120.000.000 de veículos em todo o mundo. Em 1970 a frota já havia duplicado e atingido a marca de 240.000.000 de veículos. Em 1990 dobrou: 580.000.000. Mais 20 anos e a frota dobrou mais uma vez: 1.000.000.000 de veículos. Um bilhão, praticamente todos queimando algum combustível para ir do ponto A ao ponto B.
Então chegamos a um ponto em que os níveis de emissões de todos estes veículos aparentemente se tornaram um problema ambiental sério e, de repente, o carro elétrico foi trazido do passado diretamente para o futuro como uma aposta em mobilidade limpa, enquanto o motor a combustão desponta para um passado promissor.
Mas há uma questão que raramente entra nas discussões sobre esta mudança na matriz, e ela nos leva de volta àquele papo sobre a cultura.
Veja bem: o motor a combustão nos automóveis está por aí há quase 140 anos, sem nunca ter regredido um único dia em seu desenvolvimento. Nos últimos 140 anos, todos os dias, ao longo de mais de 50.000 dias o motor de combustão foi desenvolvido de alguma forma por algum engenheiro, enquanto o ritmo de desenvolvimento dos motores elétricos e, principalmente, das baterias necessárias para alimentá-los, era bem mais lento.
É por isso que nestes 140 anos a eficiência dos motores de combustão interna saiu de menos de 5% para quase 40% (ou mais, no caso dos motores da Fórmula 1), enquanto os motores elétricos ainda patinam na questão da eficiência das baterias, em seu peso e em sua capacidade de recarga. Entre 2008 e 2015, a adoção dos sistemas de injeção direta elevou a eficiência dos motores de combustão interna de 20% para 35%. Em 2014 a Toyota anunciou um motor com 38% de eficiência. Uma evolução muito rápida, e que só foi possibilitada porque os motores de combustão interna foram utilizados e aperfeiçoados ao longo do último século.
Eu sei que neste momento você deve estar pensando que os motores elétricos têm 490.000% de eficiência e que é por isso que eles são melhores que os motores de combustão interna. E você está certo sobre este aspecto. Mas o principal empecilho dos motores elétricos, atualmente, não é sua eficiência, mas a eficiência de suas baterias. O problema são elas. A tecnologia de baterias só começou a evoluir em um ritmo mais acelerado nos últimos 30 anos, quando a revolução digital resultou em dispositivos móveis que exigem baterias cada vez mais eficientes. Só que baterias de telefones e computadores ainda são diferentes de baterias de automóveis — não somente pela recarga, mas também pelo consumo da carga —, então seu desenvolvimento não é concentrado. Por isso, eles ainda são uma aposta.
Paralelamente a isso, há ainda a possibilidade de uma mudança cultural da sociedade em geral. A pandemia de 2020 pode ter impactos permanentes na forma como nos deslocamos e como vivemos. Ela mostrou que centenas, talvez milhares, de atividades poderiam ser realizadas remotamente, sem a necessidade de cuspir fumaça de combustão por aí.
Os carros elétricos talvez sejam realmente o futuro da mobilidade, mas não espere que isso aconteça nos próximos 30, 40 ou 50 anos. Porque, além do que já foi citado sobre os elétricos, os fabricantes continuam desenvolvendo tecnologias para tornar o motor de combustão ainda mais eficiente e estima-se que o auge da eficiência chegará por volta de 2050 — temos 30 anos pela frente, ainda.
Depois dos sistemas de injeção direta, da injeção estratificada, dos motores turbo downsized, ciclos Miller e Atkinson e das propostas de taxa de compressão variável, do comando de válvulas eletro-pneumático e até mesmo de variação de ciclos, os fabricantes e fornecedores estão desenvolvendo novas formas de ignição para as próximas gerações de motores.
Micro-ondas
Uma das propostas mais interessantes e promissoras é a da ignição por micro-ondas. A ideia é usar múltiplas fontes de formação de chama, em vez de usar apenas uma ou duas velas. Usando radiação de micro-ondas, esse tipo de ignição pode acelerar a formação e a propagação da chama na câmara de combustão. A vantagem é que o ponto de ignição se aproxima mais do ponto ideal de combustão (mais próximo do ponto de vantagem mecânica) e permitirá também adotar uma mistura mais pobre, pois o risco de detonação será menor devido à velocidade da queima. Além disso, a transferência de calor para a câmara de combustão será menor devido ao melhor aproveitamento de energia, reduzindo o consumo e as emissões.
Este sistema, contudo, ainda está a alguns anos de chegar ao mercado — é preciso fazer testes de validação antes de começar a oferecê-lo aos fabricantes e, considerando que a próxima geração já está em desenvolvimento, não deveremos vê-la antes de 2030.
Enquanto isso, outras duas propostas mais práticas e facilmente adaptáveis já estão prontas para entrar em uso.
Pré-câmara de combustão
A primeira delas é o sistema de câmara auxiliar da Ferrari, que usa um arranjo de câmaras de combustão semelhante ao do sistema CVCC da Honda nos anos 1970, com uma pré-câmara lateral e a câmara de combustão principal.
Neste motor, a pré-câmara tem uma vela de ignição própria, enquanto a câmara de combustão tem a vela principal. Como praticamente todos os motores de injeção direta modernos, a ECU atrasa a injeção de combustível até o final da compressão. Nesse instante o combustível é injetado no ar comprimido e quente, misturando-se a ele antes do disparo da centelha. Isso permite uma mistura mais pobre com o motor aquecido, resultando em mais economia de combustível sem comprometer a produção de potência.
Com a pré-câmara de combustão, há uma segunda centelha para acelerar a queima — o que, evidentemente, acelera o fluxo de gases, algo desejável em um motor esportivo que gira 8.000 vezes por minuto. A frente de chama da pré-câmara será complementar à centelha da vela principal, algo como nos motores Twin Spark. Isso também ajuda a obter a queima completa, reduzindo a emissão de hidrocarbonetos.
Além disso, a variação do ponto de ignição e do tempo de injeção permitirá o controle da temperatura da queima, que poderá ser sutilmente elevado na fase fria para aquecer o catalisador mais rapidamente, otimizando o controle de emissões. Esse sistema já é usado no atual V6 Nettuno da Maserati, e também será adotado pela próxima geração do V12 da Ferrari.
Jet Ignition
Agora, mais recentemente, a Mahle apresentou uma nova ignição que combina um pouco de cada uma destas duas propostas já citadas: os múltiplos pontos de formação de chama e o sistema de pré-câmara.
Batizado Mahle Jet Ignition, o sistema coloca a vela e um válvula injetora de combustível em uma pré-câmara com pequenos orifícios, enquanto há outra válvula injetora para a câmara de combustão.
O combustível é injetado nesta pré-câmara, a centelha é disparada em seguida e os gases e parte da chama ali contidos escapam pelos orifícios, formando pequenos “jatos” de gases extremamente quentes que inflamando a mistura na câmara principal em diversos pontos, o que acelera a formação e a propagação da chama.
Segundo a Mahle, este sistema pode operar de forma ativa, com o combustível também injetado na pré-câmara, ou passiva, com o combustível injetado apenas na câmara principal. A principal vantagem deste sistema em relação aos outros dois é que ele exige poucas alterações na fundição do cabeçote, e utiliza apenas uma vela convencional.
A Mahle ainda diz que, aplicado ao ciclo Miller, este sistema de ignição atingiu uma eficiência de 41% e que será possível chegar a mais de 45% de eficiência. Além disso, o sistema reduz em até 95% as emissões de óxidos de nitrogênio — que são os mais nocivos e mais preocupantes — e reduz o consumo de combustível em 10%. E assim como o sistema da Ferrari, ele já está pronto para ser fornecido aos fabricantes que o desejarem, o que significa que deveremos ver esse tipo de ignição no mercado até a metade desta década.
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