Em 2013, depois do evento de lançamento do Toyota Rav4, um grupo de jornalistas perguntou pro pessoal da Toyota — meio despretensiosamente, mas tentando aproveitar a informalidade do momento para fisgar alguma informação — se eles tinham algum plano para o GT86 no Brasil. Não lembro exatamente a resposta, mas ela deixava claro que a marca tinha planos para o esportivo. Tanto que eles trouxeram um exemplar, que foi avaliado por quase todos os veículos de imprensa — incluindo o FlatOut.
Aceleramos o Toyota GT86: a experiência viciante de ver o mundo de lado
Passados sete anos, o GT86 acabou de ganhar uma nova geração, mas não há o menor sinal de que ele acabe, um dia, vendido oficialmente por aqui. Os modelos que você vê flagrados nas redes sociais são todos importados de forma independente, quase sempre o Subaru BRZ. O fato de o Toyota GT86 nunca ter vindo para o Brasil não deixa ninguém coçando a cabeça: é um carro de nicho, que concorreria com diversos outros tipos de esportivos, de uma marca que começava a construir sua imagem como fabricante de carros híbridos.
Mas… a partir de 2018 a Toyota decidiu apostar em uma pegada mais esportiva com aquela história da Gazzo Racing Masters of Nürburgring. Eles até lançaram uma Hilux decorada como a picape do Rally Dakar e colocaram um Toyota Corolla na stock car — e hoje você pode até comprar um Corolla com a grife GR Sport. Não é um esportivo propriamente dito, mas ele tem um visual mais invocado e suspensão mais firme que os demais Corolla. Já é um avanço, comparado ao que a Toyota sempre ofereceu no Brasil como “esportivo”.
Mas… se a intenção é dar uma esportivada na marca, por que não concretizar os planos de trazer o GT86, como fizeram na Argentina?
Eu sei que você está pronto para dizer que o GT86 saiu de linha no final de 2020, e que não seria uma boa ideia vender um carro destes em fim de carreira, porque isso seria um tiro no pé em termos de marketing. Mas você lembra daquele hot hatch fdpmente insano que a Toyota lançou em 2020, o GR Yaris? Pois é…
E antes que você pense em falar alguma coisa depreciativa sobre o público brasileiro, sobre o perfil do comprador de carros esportivos, sobre as dificuldades impostas pelo sistema tributário/fiscal/econômico local e como isso inviabiliza o lançamento do carro no Brasil e blábláblá, permita-me colocar na mesa alguns fatos:
Em fevereiro de 2021 a BMW anunciou a chegada do M2 CS ao Brasil. O carro teria pré-venda, mas o lote de 15 unidades foi totalmente vendido antes mesmo do anúncio, apenas pelos canais de relacionamento com clientes VIP. Foram só 15 unidades, mas a R$ 399.950 cada.
Dois meses depois, a Ford fez o mesmo: eles anunciaram o Mustang Mach 1 no Brasil. O lote de 80 unidades foi todo comprado em 24 horas por R$ 499.900. É claro que, novamente, não estamos falando de 80 pessoas que correram até a Ford em 24 horas para comprar o carro, mas de um trabalho de relacionamento com o cliente que deve ter começado com um bom tempo de antecedência e só teve o sinal depositado no dia do lançamento. Ainda assim, a Ford planejou trazer 80 carros, calculou o custo, fez a campanha, definiu o preço, encontrou 80 compradores, trouxe o lote e o vendeu.
No mês seguinte, em maio, foi a Audi quem fez algo semelhante: o elétrico RS e-tron GT foi trazido em um lote de 35 unidades, custando R$ 949.990 — por extenso para não ficar dúvida: novecentos e quarenta e nove mil, novecentos e noventa reais. Quase um milhão. Os 35 carros foram endereçados em 24 horas, certamente no mesmo esquema do relacionamento e negociação antecipada ao lançamento.
Saindo dos esportivos temos mais três exemplos: RAM 1500, Volkswagen Taos e Chevrolet Bolt — três carros de segmentos muito distintos entre si. A picape americana veio em um lote de 100 unidades e foi oferecida em sistema de pré-venda por R$ 420.000, com sinal de R$ 20.000. O lote durou 18 horas.
O Taos foi ainda mais impressionante: 300 unidades de R$ 154.000 esgotadas em sete minutos. De novo: é quase certo que foi negociado com antecedência, mas não dá para negociar um carro inédito com tanta antecedência assim. A Volkswagen encontrou 300 clientes para seu SUV inédito, 300 pessoas que sequer haviam dirigido o carro.
E agora, mais recentemente, a Chevrolet anunciou que esgotou o lote de 20 unidades do seu elétrico Bolt em apenas 24 horas. Cada um custando R$ 317.000.
Acho que ficou claro o que estou tentando dizer, não?
“O custo do carro ficaria inviável”, “seria pouco competitivo”. Será mesmo que não dá para trazer um pequeno lote do novo GR86 e encontrar compradores para ele? Ou do GR Yaris? Será possível não haver 300 brasileiros dispostos a pagar R$ 300.000 por um dos carros mais especiais lançados nos últimos tempos? Em último caso há o Supra — pode ser o 2.0, para ter uma alíquota menor de IPI e ficar mais barato. A BMW vende o Z4 no Brasil regularmente, sem lotes, sem limitação, tanto com o motor 2.0 quanto com o motor seis-cilindros.
E antes que o pessoal da Toyota pense que esta é uma crítica a eles, eu preciso mencionar a Chevrolet, a Renault e a Nissan, marcas que investiram nos esportivos, mas agora parecem desinteressadas — ainda que tenham colhido frutos saborosos deste investimento em termos de imagem de marca.
A Chevrolet, hoje, parece manter o Camaro apenas para manter posição diante da oferta do Mustang, mas ela tem o Corvette, um carro que tem uma legião de fãs no Brasil, mas nunca foi trazido oficialmente. Um pequeno lote de Corvette é realmente inviável? Não teria seu valor nem mesmo como algo para agregar valor aos demais carros da marca — incluindo o próprio Bolt?
A Nissan ofereceu o 350Z e, mais tarde, o GT-R — talvez o modelo mais radical de uma fabricante “popular” já oferecido no Brasil. Foi uma decisão um tanto surpreendente, já que ele chegou somente em 2016, quando o hype do carro já havia passado e as ruas estavam cheias de GT-R trazidos por importadoras independentes. Agora, eles têm o novo Z (ou 400Z, se preferir), que é um carro que deverá custar US$ 40.000 — praticamente o mesmo que um Nissan Leaf. Ainda que o Leaf seja isento de IPI pelo governo federal e o novo Z se enquadre na alíquota mais elevada do imposto, a Nissan consegue viabilizar a operação de um carro de baixíssima demanda como o Leaf. O Z é tão inviável assim?
E pra ficar ali na Aliança, temos a Renault, que está encerrando o ciclo de um dos carros mais espetaculares da história dos esportivos no Brasil, mas ainda produz (lá fora, claro) o belíssimo e desejável Alpine A110 — que tem uma ligação histórica com os esportivos brasileiros, aliás. O carro é mais barato que o Porsche 718 lá fora — e o 718 chega por R$ 450.000 ao Brasil. Não precisa muitos, Renault. Alpine, carro de rua da equipe de Fórmula 1, não é?
Todos estes carros certamente certão trazidos por importadores independentes (o Alpine já foi, aliás). E talvez seja isso o que as fabricantes levem em consideração. “Quem quer um desse não precisa da gente”, imagino que seria um raciocínio hipotético dos responsáveis. Mas vamos lá, pessoal… os carros não estão exatamente em alta no momento. Essa história de “vender serviços de mobilidade” não está colando em lugar nenhum do mundo porque não faz sentido. Se você fabrica carros, você vende carros. As pessoas querem carros. E as pessoas querem carros que sejam incríveis.
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E elas querem carros incríveis porque estamos vivendo a era da imagem . E um Leaf, um Bolt e um Zoe não são incríveis. Eles são entediantes. Influencers querem carros f8das, e seus seguidores admiram esses carros com esta qualidade. Quer ver? A hashtag #renaultzoe foi usada em 45.300 publicações no Instagram. Sabe quantas postagens têm #alpineA110? 73.200. Com a Nissan acontece o mesmo: 127.700 publicações com #nissanleaf; 200.000 com #nissanz — duzentas mil sobre um carro que foi lançado há menos de 48 horas! Chevrolet Bolt tem 12.200 publicações com sua hashtag #chevybolt — #chevroletbolt tem menos de 1.000. O Corvette C8 tem 105.000 somente com o #corvettec8 e mais 113.000 com #c8corvette — 222.000 no total.
Isso não significa nada nestes tempos de métricas, curtidas, influenciadores, imagem etc?
Será demais entregar ao público um produto pelo qual ele esteja interessado? Temos fatos aos montes — e eles incluem “dinheiro saindo do bolso dos compradores para as contas das fabricantes”. Vamos continuar fingindo que o conceito postiço criado na agência de marketing é mais valioso que um carro que fascina as pessoas e seus seguidores?
Além disso, não estamos pedindo muito. Não estamos falando para matar os SUV e lançar somente carros esportivos de alto desempenho com dinâmica incomparável. O que estamos perguntando (e não pedindo) é se não é possível considerar um pequeno lote com algumas dezenas de exemplares. Ou será melhor reduzir a compra do carro a uma equação racional como a escolha de um micro-ondas, o tipo de coisa em que a marca fica em segundo plano? Haverá futuro para os carros se isso acontecer?