O Gol foi uma jabuticaba eminentemente brasileira que existiu para tentar modernizar uma VW que passara décadas antes dele propagandeando as vantagens do Fusca. Depois de anos e anos dizendo que o certo era refrigeração a ar, motor traseiro, e uma carroceria imutável, a empresa ficou literalmente presa numa gaiola que ela mesmo construiu. Como sair dela?
No Gol, foi colocando o motor do Fusca na frente do carro, em uma moderna plataforma de tração dianteira. Não deu muito certo, como sabemos, e o Gol logo recebeu motores mais avançados, refrigerados por líquido. Mas quase uma década antes, a VW do Brasil fez uma tentativa de modernizar o Fusca de muito mais sucesso: o Brasília.
O início dos anos 1970 eram de mudança na VW mundial; na Alemanha o Passat e o Golf mostravam o futuro, de carrocerias práticas hatchback, e motores e tração na dianteira do carro. A linguagem de design da empresa, antes ligada ao Fusca, foi abandonada completamente em favor de uma nova, criada por Giorgetto Giugiaro. Poucas vezes na história da indústria se viu uma mudança tão radical, mas seu sucesso mostrou que tradições longas podem sim ser quebradas, se é tecnicamente para o melhor.
Mas certamente no início dos anos 1970 a situação do Brasil era diferente da Europa. Aqui, era uma questão diferente: o Fusca era excepcionalmente bem adaptado para estradas sem asfalto que ainda eram a norma Brasil afora. Junte a isso as dimensões gigantescas do país, e a simplicidade do besouro era algo útil demais para ser jogada fora. Pelo menos, até ali.
A filial brasileira então resolve criar um novo e moderno carro para os anos 1970, mas mantendo a mecânica VW Fusca tradicional, apenas melhorada onde necessário. A ideia veio inicialmente do departamento de estilo, onde uma proposta de José Vicente Martins e Márcio Piancastelli acabou sendo a definitiva.
Um carro ainda pequeno, mas usando as novas técnicas da indústria, bem mais espaçoso, envidraçado e bem aproveitado em espaço que o Fusca. É mais uma demonstração de que para grande espaço interno é só usar laterais retas nas dimensões máximas do carro. No idioma moderno, o novo VW era um hatchback quadrado, com linhas bem cuidadas para serem agradáveis aos olhos mesmo sendo, ao frigir dos ovos, um caixote.
Era praticamente um Golf, mas realizado em cima de um Fusca, em espírito, se não em aparência e detalhe. A nossa ideia tupiniquim de como o VW moderno devia ser. No mesmo entre-eixos do Fusca de 2400 mm, e um comprimento quase que igual (na verdade, coisa de 15 mm mais curto), o novo VW era muito mais espaçoso. E mais importante: com uma aparência muito mais moderna.
Lançado praticamente ao mesmo tempo que o moderno Chevette da GM em 1973, o novo VW recebeu o nome de nossa então ainda jovem capital planejada no centro do país: Brasília. O Fusca então tinha motor 1300 cm³ (ou 1500 cm³ no “Fuscão”), mas o Brasília já vinha exclusivamente com o maior motor da VW então: o 1600 cm³. Inicialmente de carburação simples Solex 30, mas a partir de 1976, dupla Solex 32, com 65 cv brutos; um motor de grande sucesso entre os amantes dos VW refrigerados a ar.
Foi um tremendo sucesso, por todo tempo que esteve a venda. A sua morte aconteceu em 1982 não por decadência de vendas, mas pelo carro não fazer parte dos planos da empresa então: o Gol e seus derivados tomariam o seu lugar. Foi exportado para a América Latina (famosamente inclusive para o México do Sr. Barriga), Filipinas, Nigéria e Portugal. No total, pouco mais de um milhão de Brasílias foram produzidas, 90% delas vendidas aqui no Brasil, onde faz parte da memória da maioria das famílias; é raro um brasileiro que não tenha algum contato com elas.
A Dacon
Enquanto isso, nos anos 1970, uma concessionária VW em São Paulo estava acima de todas as outras do Brasil em fama: a Dacon.
A empresa de Paulo de Aguiar Goulart ganhou fama durante os anos 1960, quando começou fazendo vinte cupês Karmann-Ghia com mecânica Porsche 356 importada. O carro N° 19 foi inscrito por Chico Landi nas 1.000 Milhas da Guanabara, prova realizada em julho de 64 e vencida pelo grande piloto.
O sucesso nesta corrida, mais a revenda VW, fizeram com que em 1966 fosse criada a Escuderia Dacon. Ela correria com os quatro lendários Karmann-Ghia / Porsche de corrida preparados pela empresa. Dois deles com motor 1.6 de 120 cv e dois com 2.0 de 200 cv, todos de quatro cilindros; parte da carroceria foi substituída por componentes de fibra-de-vidro, mantendo o estilo original do carro. A equipe Dacon foi um grande, ainda que efêmero, sucesso: venceu metade das dez competições das quais participou no ano e meio de sua existência. Serviu para colocar a Dacon num patamar de fama e respeito do qual nunca mais desceria. O ganho comercial foi importante também: se tornou a representação oficial da Porsche para o Brasil.
Nos anos 1970, além de vender VW e Porsche, a empresa continua a realizar atividades ligadas a criação de carros exclusivos com a sua marca. A personalização, comum na época, foi transformada numa arte pela Dacon. Uma vantagem dela era o acesso à compra de peças Porsche importadas para reposição; eram montados instrumentos, rodas, volantes e outros detalhes Porsche nos carros da VW. Fuscas, Brasílias e Passats recebiam o tratamento Dacon. A empresa inclusive aceitava em certo ponto encomendas para colocar motores de Passat na traseira dos SP2, criando o que ela chamava de Dacon SP3. Como a VW abandonou este projeto, a Dacon o retomou. Mas o alto preço da conversão fez a empresa abandonar o modelo.
Como sabemos , a empresa criou uma série de conversões e modelos especiais em cima dos Passat e da família Gol durante os anos 1980, e depois, tornada PAG (depois da concordata em parte provocada pela construção do suntuoso prédio-sede na esquina da avenida 9 de Julho com Brigadeiro Faria Lima) criou o mais uma série de microcarros interessantes. A PAG acaba definitivamente em 2001.
Águas de Lindóia 2022
Vocês sabem como são carros personalizados antigos. Na maioria das vezes vão sendo alterado por novos donos continuamente até se perderem completamente, sem nenhum vestígio de como foram no passado. São normalmente mais raros que os originais sem modificação.
Então imagine a nossa surpresa ao ver no gramado do encontro de Águas de Lindóia 2022 nada menos que esta Brasília Dacon preta que ilustra a matéria. O fato de ser preta logo chama a atenção: a VW nunca as vendeu nesta cor. E o mais impressionante é que não é uma reprodução: é uma Brasília realmente personalizada pela Dacon na época.
A raridade dessas customizações começam no fato de que eram caríssimas, e por isso mesmo, poucas delas foram feitas. A Dacon fazia um serviço de primeira linha, com pintura de qualidade (aqui um profundo preto sólido), e peças e mão de obra especiais, para a elite de uma época onde importação era proibida.
Nesta Brasília 1976/77, vemos por exemplo o detalhe dos aros de faróis também na cor do carro, e a iluminação auxiliar debaixo do para-choque, que também é exclusivo. Na traseira, grelha inferior preto-fosco e luz extra de neblina. Também exclusivo na traseira são o desembaçador elétrico no vidro, e o limpador de vidro traseiro. Muitos cromados de moldura de vidro foram tornados pretos. Por dentro, um monte de componentes Porsche. Vidros elétricos e luzes de leitura, volante e painel tirados de 914.
As Brasílias Dacon recebiam no mínimo carburação dupla, parte de um catálogo grande de modificações de motor que chegavam a 2.100 cm³ com Webers, e rodas aro 14 com pneus 185/70. E garanto que, se seu bolso permitisse, a empresa colocaria um motor Porsche ali. Este carro das fotos não foi personalizado quando zero km; teve rapidamente vários donos nos anos 1970 e personalizada em 1986. Seu proprietário nos contou que o carro tem pouco mais de 20.000 km originais: rodou 16 mil Km como Brasília, e os 11.369 km marcados no velocímetro Porsche, como Brasília Dacon.
A saber, as rodas agora são réplicas de rodas de Porsche 914. O carro tem ar-condicionado, e um teto solar de lona de qualidade. Também o trambulador é da Empi, e o motor, um 1700 cm³ com dupla carburação.
É um carro lindíssimo e único, uma daquelas coisas que nos pega de surpresa (sério que estou achando uma Brasília legal?) e que só encontramos mesmo nos gramados do encontro de Águas de Lindóia.