Você conhece esse para-brisa e provavelmente sempre gostou dele. Mas também é provável que até agora não conhecesse sua origem e sua função, muito menos o seu nome. O para-brisa Brooklands é um dos equipamentos mais icônicos da era de ouro do automobilismo, presente em praticamente todos os carros de corrida dos anos 1920 ao final dos anos 1950, e nos esportivos de rua até meados dos anos 1960.
Batizado originalmente de aero screen, esse tipo de para-brisa foi o primeiro dispositivo a combinar proteção e efeito aerodinâmico na história do automobilismo, mas quando ele foi usado pela primeira vez em um carro de corridas é algo que permanece desconhecido até hoje.
Isso porque em um tempo em que o próprio automóvel era algo sem um padrão definido, praticamente não existem registros de um pedaço de vidro que foi instalado para melhorar a aerodinâmica do carro, mas todas as evidências apontam que o primeiro carro de corridas a usar um para-brisa aerodinâmico foi o Napier L48 Samson, de 1904.
Não foi um acontecimento aleatório: em 1903 surgiram os primeiros para-brisas para carros de passeio, que eram simplesmente uma lâmina plana, posicionada verticalmente em frente ao volante.
O para-brisa do Napier Samson era apenas uma miniatura destes para-brisas primitivos. Isso indica que ele servia apenas para proteção do piloto contra o vento, pedras e até pássaros e insetos. Era necessário, porque ele foi o primeiro carro britânico ao ultrapassar os 160 km/h, quando chegou aos 169 km/h em Daytona/EUA. Ele talvez tivesse função aerodinâmica, mas não parecia ser algo deliberado.
Na época a atenção à aerodinâmica se concentrava no formato da carroceria e ela se resumia à redução da área frontal. Era o primeiro passo e ele estava certo. Observando melhor o design do carro, você irá notar que ele tem uma carenagem com cantos arredondados e um sistema de arrefecimento composto por tubos de cobre longitudinais em vez de um radiador frontal, condizente com as noções de aerodinâmica da época, inspiradas nos torpedos e nos balões pontudos dos dirigíveis, que já eram relativamente comuns antes da invenção do avião. Se eles cortavam o ar no céu, também deveriam servir para voar baixo.
Apesar de ser um elemento inovador em um carro recordista, o para-brisa do Napier não foi imediatamente adotado pelos outros pilotos e carros de corrida. Na verdade, nem mesmo todos os exemplares do Napier Samson tinham um para-brisa desses.
A evolução da aerodinâmica automotiva andou em marcha lenta nas duas primeiras décadas do século 20, mas acelerou como um motor de 20 litros da época quando a Europa entrou em guerra. A Primeira Guerra Mundial foi o primeiro conflito bélico a usar aviões de combate e como os automobilistas sempre olharam para o alto na hora de desenvolver seus carros (basta lembrar dos “record cars” equipados com motores aeronáuticos), aquelas máquinas voadoras influenciaram o design automotivo das décadas seguintes. E um dos primeiros elementos que migraram dos aviões para os carros (se não o primeiro) foi justamente o para-brisa aerodinâmico.
O primeiro avião a usar um desses para-brisas foi o Avro 504, um biplano britânico lançado em 1913. Nessa época os aviões ainda usavam cockpits abertos — lembre-se: estamos falando da primeira geração de aviões produzidos em massa — e os pilotos ficavam sujeitos aos efeitos aerodinâmicos do fluxo de ar das hélices e do movimento do próprio avião. A solução da Avro para proteger o piloto desses efeitos foi instalar um defletor de vidro com ângulo ajustável.
Ele consistia de uma moldura aberta no topo, onde era encaixado um vidro laminado Triplex (a marca que inventou esse tipo de vidro), que ficava montada em uma base pivotante. O piloto soltava um parafuso de na lateral, ajustava o vidro no ângulo que desviava o fluxo de ar do cockpit, e então apertava o parafuso. Simples assim.
Nessa mesma época os carros de corrida ainda não usavam defletores. Os pequenos para-brisas que você encontrará nos carros de corrida de 1914 não tinham função aerodinâmica, e serviam apenas para proteger o rosto dos pilotos de pedriscos e até pássaros, como no Napier Samson. Dois carros que usavam esse tipo de proteção eram o Mercedes 115HP e o Opel GP1 “Rekordwagen”.
Apesar da invenção simples e prática da Avro, esse tipo de para-brisa não se tornou o padrão da indústria aeronáutica naquele primeiro momento. Havia dezenas de defletores diferentes e até proto-canopis, como o para-brisa do S.E.5, o mais famoso dos caças britânicos da Primeira Guerra. A popularização do para-brisa Avro aconteceu devido ao que chamamos hoje de experiência do usuário (ou user experience): os pilotos achavam os outros para-brisas umas porcarias — especialmente o meio-canopi do S.E.5 — porque eles distorciam a imagem. Então eles sacavam os para-brisas originais e no lugar instalavam o para-brisa da Avro ou os similares inspirados por ele.
Quando a Grande Guerra acabou, os pilotos e mecânicos com experiência aeronáutica levaram o conhecimento adquirido para os carros. Aliás, nessa idade antiga dos carros eles eram máquinas muito mais semelhantes aos aviões, como fica evidente pelo design dos cockpits dos carros de corrida, pelo formato das carrocerias e pelos motores (que também tinham pistões reciprocantes nos aviões). Na busca pelo carro mais rápido, a simplicidade do para-brisa aerodinâmico da Avro falou mais alto na hora de resolver o problema do fluxo de ar na cara do piloto.
Mas como foi que o para-brisa Avro se tornou o para-brisa Brooklands?
Bem… essa é uma resposta difícil de ser respondida com precisão, afinal, ninguém acha que está escrevendo a história na época em que a história está sendo escrita — e por isso nem sempre se preocupa em escrevê-la de verdade. Nós temos duas hipóteses.
A primeira é que, sendo um aeródromo além de um autódromo, Brooklands foi requisitado pelo Ministério de Guerra entre 1914 e 1919 e se tornou o principal centro de treinamento, testes, construção, reparos e fornecimento de componentes aeronáuticos do Reino Unido durante o conflito. É possível que as adaptações de para-brisas fossem feitas por lá, ou mesmo o estoque deles fosse em Brooklands, e assim eles se tornaram os “para-brisas de Brooklands”.
A outra hipótese é mais pneu no chão: Brooklands foi o primeiro circuito oval com curvas inclinadas do planeta. Recordes de velocidade foram perseguidos e quebrados sobre sua pista de concreto. É provável, portanto, que na busca por mais velocidade o para-brisa Avro tenha se popularizado nas garagens de Brooklands a ponto de se tornar conhecido como o “para-brisa de Brooklands”.
A partir dos anos 1930 eles se tornaram praticamente um padrão dos esportivos de rua e de pista, equipando até mesmo as Flechas de Prata alemãs do período entre guerras e os primeiros carros da nova Fórmula 1 nos anos 1950. Eles continuaram populares até o início dos anos 1960, quando os esportivos fechados se tornaram o novo padrão da indústria e a aerodinâmica voltou a evoluir em marcha alta.
MG PA dos anos 1930: para-brisa convencional para passear, aero screen para acelerar
Hoje eles são usados em restaurações e modificações em modelos clássicos (e até mesmo anteriores ao Avro 504) e carros com inspiração retrô como o Morgan 3-wheeler e os Caterham Seven.