Em 2018 o clássico Bullitt, um dos poucos filmes americanos cujo título em português é igual ao original, completa 50 anos. Os grandes astros do clássico são Steve McQueen, o ator mais cool da galáxia, e o Ford Mustang GT 1968 verde “Highland Green” de seu personagem, o detetive Frank Bullitt. E, claro, o Dodge Charger preto dos antagonistas.
Para celebrar a data, os organizadores do Goodwood Festival of Speed, no Reino Unido, promoveram um encontro épico na subida de colina do evento em 2018: colocaram um Ford Mustang e um Dodge Charger, ambos usados nas gravações de Bullitt, para encenar uma “perseguição” sobre o asfalto inglês. Em um ritmo bem mais tranquilo do que na alucinante sequência de dez minutos do filme de 1968, naturalmente, mas ainda assim há algo mágico em ver estes dois carros lado a lado mais uma vez. Ainda mais na Europa.
O pony car da Ford trocou as ladeiras de São Francisco pelas curvas de Goodwood como parte da campanha de divulgação do novo Mustang Bullitt, que foi apresentado há alguns meses como vimos por aqui e também será vendido na Europa (afinal, o Mustang de sexta geração é um carro global). Também há vídeos promocionais com o Bullitt original e a nova versão limitada lado a lado – excelentes para quem curte o ronco dos V8 americanos, diga-se.
A caracterização do novo Bullitt foi caprichada, com acabamento mais minimalista do lado de fora, emblemas especiais, rodas inspiradas nas clássicas Torq Thrust e carroceria verde “Dark Highland Green” (também é possível comprar um Mustang Bullitt preto, mas por que alguém faria isso?) – além de uma pequena dose de pimenta no motor para entregar cerca de 40 cv e 2,7 mkgf de torque a mais, chegando aos 481 cv e 58 mkgf. Mas o clássico de 1968.
Mas é por causa dos clássicos que estamos aqui, não? Como contamos neste post, a produtora de Steve McQueen comprou dois exemplares do Mustang GT 1968 com números de chassi sequenciais – 8R02S125558 e 8R02S125559. O carro de chassi final 8, que acreditava-se ter sido desmontado ou destruído, foi usado nas cenas mais difíceis, em alta velocidade, com manobras arriscadas, foi encontrado no México há pouco mais de um ano e em processo de restauração.
O carro que a Ford levou para Goodwood é o carro de chassi final 9, o hero car – foi usado nas cenas mais tranquilas, com o carro parado, em closes e cenas do interior, e passou quatro décadas não perdido, mas sim “bem guardado” por seu proprietário, Bob Kiernan.
Normalmente carros contemporâneos usados em produções de cinema não têm destino especial após as filmagens – eles são simplesmente destruídos ou vendidos como carros usados comuns. Foi o que aconteceu como hero car de Bullitt: logo depois que as gravações acabaram ele foi vendido a Robert Ross, um funcionário da Warner Bros, que em 1970 passou o Mustang a um detetive da polícia de Nova Jersey chamado Frank Marranca (a vida imita arte!). Em 1974, Marranca vendeu o Mustang a Bob Kiernan, que pagou US$ 6.000 (o equivalente a cerca de US$ 30.000, ou R$ 116.000, em valores atualizados).
Em 1977, três anos antes de morrer, o próprio Steve McQueen mandou uma carta aos Kiernan, oferecendo outro Mustang em troca do carro de Bullitt. Mas a oferta foi recusada, e o pony car permaneceu na família desde então. Em 2001, Bob e seu filho Sean Kiernan começaram a restaurar o carro. Sean é o proprietário do carro desde 2014, quando seu pai morreu, e a restauração nunca foi concluída.
Em 2017, Sean entrou em contato com a Ford para falar a respeito do carro, cujo histórico já estava bem documentado. Não ficou claro se a fabricante comprou o Mustang, mas qualquer forma a opção foi mantê-lo em suas condições estéticas originais. Apenas o conjunto mecânico foi recuperado para que o carro pudesse fazer exibições como a que aconteceu em Goodwood. Aliás, vale lembrar: originalmente o Mustang GT vinha de série com um V8 de 4,7 litros (289 pol³) que era dotado de componentes reforçados para entregar 315 cv brutos.
No entanto, o ano de 1968 trouxe consigo o auge da guerra da potência entre as fabricantes americanas, e por isso a Ford começou a oferecer o big block 390 (S-code), de 6,4 litros e 335 cv brutos – que era um motor fisicamente maior e exigiu mudanças significativas na estrutura do cofre do Mustang, que por sua vez levaram a um aumento de 6,5 cm na largura do carro. Os dois carros comprados pela Solar Productions para Bullitt tinham motor 390.
Agora, um bom herói precisa de um bom vilão. E o carro dos vilões de Bullitt não poderia ser outro 50 anos atrás: além dos dois Mustang, a produtora também comprou dois exemplares do Dodge Charger 1968. Exceto que nenhum dos dois era preto originalmente.
Um deles era um Charger básico azul, que foi usado como stunt car e acabou destruído durante a filmagem da cena da explosão do posto de gasolina:
Dá para ver o carro aterrissando atrás do posto, mas fica claro que o Charger não sobreviveu à manobra
Diferentemente do que aconteceu com os Mustang de Bullitt, os Charger não tiveram números de chassis e histórico arquivados pela Warner Bros. Não há, portanto, provas documentais de que o Dodge sobrevivente é, de fato, o carro do filme. Mas não faltam evidências circunstanciais bastante convincentes.
Trata-se de um Charger R/T com motor Magnum 440 (7,2 litros) de 375 cv que, com a carroceria amarela repintada em preto, foi usado como camera car e também nas tomadas mais próximas. Depois que as filmagens acabaram, o carro voltou a ostentar a cor amarela original e foi devolvido à concessionária, que o revendeu como um carro usado qualquer.
Conforme conta o Hemmings, o número de chassi indica que o Charger foi fabricado em em 15 de janeiro de 1968, apenas três meses antes do início das gravações; e que só foi vendido a seu primeiro dono registrado em outubro daquele ano, quando as filmagens já haviam terminado.
Não se sabe o que aconteceu com o carro entre o fim das gravações de Bullitt e a compra, em 2002, por um entusiasta norte-americano chamado Arnold Welch. No entanto, Welch começou a restaurar o carro logo depois da compra e, durante a desmontagem, descobriu antigos buracos feitos na carroceria para fixar suportes de câmera. Então, depois de muita pesquisa, ele chegou à conclusão de que seu Charger era, de fato, um dos dois usados em Bullitt.
A restauração foi concluída em 2013 e, desde então, o carro passou por alguns donos antes de ser vendido a uma loja na Alemanha chamada Chrome Cars, especializada em carros antigos raros. Atualmente o cupê está à venda, com preço sob consulta, e a aparição em Goodwood foi uma forma de divulgá-lo. Sorte de quem estava lá.