O que você está vendo aí em cima é a última grelha de câmbio manual da história da Lamborghini – o Gallardo LP560-2 50th Anniversary, espécie de despedida em grande estilo do modelo mais vendido da história da marca de Sant’Agata (mais de 14 mil unidades), que deu adeus em novembro de 2013 após dez anos de produção. Ele é um dos últimos puro-sangue de três pedais: a Ferrari não oferece câmbio manual desde a California de 2012, a Porsche monopolizou o PDK nos novos 911 GT3 e Turbo, neste ano a Aston Martin decidiu oferecer apenas o sistema de dupla embreagem no Vantage V12, a Jaguar só quer saber do automático ZF de oito marchas no F-Type e, bem, você já sabe o que está acontecendo nas divisões esportivas da BMW, Audi e Mercedes-Benz.
A lenta e agonizante morte do câmbio manual é uma dura realidade nos carros mais brabos do mercado – e é uma tendência que já se consolidou nos automóveis de luxo, que cresce entre os modelos médios e já mostrou sinais significativos de oferta e preferência do consumidor até mesmo no segmento de entrada, inclusive no Brasil.
Há poucos dias, Steve Sutcliffe, editor da revista inglesa Autocar, foi atrás de respostas com algumas das principais marcas de esportivos. Afinal, qual a justificativa para esta decisão? Veja o que elas declararam a Stucliffe:
Aston Martin
A marca tomou a dura decisão de aposentar o câmbio manual justamente em seu carro mais cru e sanguinário, o Vantage V12 – oferececendo nele agora apenas o automatizado de sete marchas Sportshift III. O diretor de desenvolvimento de produto, Ian Minards, explica: “além de um considerável alívio de peso – 20 kg mais leve que o manual -, esta transmissão não apenas deixa o Vantage S com mais apelo em mercados com pouco apetite pelos manuais, como também entrega uma performance derivada das pistas que ficaria fora do alcance de um câmbio convencional com alavanca”.
Vale observar: quando Minards fala em mercados de esportivos com pouco apetite pelos manuais, o Brasil é páreo duro com os EUA. Os compradores brasileiros de Mini Cooper JCW queriam tanto o câmbio automático nele que conseguiram – a ponto de a Mini não importar mais os modelos JCW manuais.
Mercedes-Benz AMG
Já faz muitos anos que os esportivos da Mercedes não oferecem o câmbio manual. O mais novo boss da AMG, Tobias Moers, explica: “no coração eu sou um tanto quanto tradicionalista e eu entendo a paixão do público pela caixa manual – mas as automáticas nos dão muito mais opções, tecnicamente. Elas podem lidar melhor com a crescente demanda de potência e torque, e no lado racional, são mais eficazes. As borboletas também são mais práticas quando você está na pista e o sistema é mais relaxante de usar quando você está tranquilo. Portanto, são mais abrangentes e abre-se mão de menos coisas.”
Porsche
Sem dúvida, a decisão mais polêmica e que mais precisou de justificativa para os fãs veio da casa de Stuttgart. Quando a Porsche anunciou que o GT3 da geração 991 não apenas teria o câmbio de dupla embreagem PDK como também estaria extinguindo a opção manual naquele modelo, os caras sabiam que teriam muitas explicações para dar.
Andreas Preuninger, chefe de desenvolvimento dos Porsche do topo da cadeia alimentar, explica. “Na Porsche, todos nós somos apaixonados por trocar marchas na alavanca, mas nós somos ainda mais apaixonados em ser mais rápidos. Por isso, o PDK foi mandatório. O Doppelkupplungsgetriebe de um GT3 também precisa ser divertido, envolvente, emotivo, esportivo. E também precisa trocar marchas mais rápido que qualquer outro. Para o dono, a sensação será mais de um câmbio de competição do que de um automatizado de rua.
Mesmo comparando com nossos outros PDK, o princípio de funcionamento do GT3 é diferente. Se o piloto optar pelo modo de trocas manuais, não há intervenções eletrônicas – não só nas trocas ascendentes, como também nas reduções: o carro faz trocas no corte de giro e aceita reduções mesmo nas velocidades mais altas”, declarou Preuninger. Ele conclui: “é também essencial lembrarmos que, de fato, nós construímos um 991 GT3 com câmbio manual e que este carro foi desenvolvido junto com os protótipos com PDK – e em todas as situações, empírico e emocionalmente, o PDK ficou por cima. E é por isso que nós fizemos o GT3 assim”.
Nota: você consegue imaginar o valor histórico destes protótipos 911 991 GT3 com câmbio manual?
Ferrari
É curioso como a casa de Maranello está associada aos dois extremos da história. A grelha cromada dos seus câmbios manuais, que teve o seu auge na épica Ferrari F40 mas é usada desde a década de 1950, está no imaginário popular até hoje – mas eles também são os maiores responsáveis pelo seu extermínio. Foi a Ferrari que introduziu as borboletas no câmbio semi-automático desenvolvido por John Barnard no fim da década de 1980, tecnologia que mudou a história da Fórmula 1 para sempre – e posteriormente, dos carros de rua. O stick shift já morreu há cinco anos na Ferrari – apenas duas unidades manuais da California foram vendidas em 2012. Serão colecionáveis de alto valor, não tenha dúvida.
Já faz 17 anos que a Ferrari lançou a 355 F1 (foto acima), primeiro modelo de rua com as borboletas para trocas de marcha. Suas trocas em 350 ms parecem uma eternidade perto dos 60 milissegundos da 430 Scuderia, o consumo de embreagem era relativamente alto e o sistema não era dos mais suaves, mas não é assim com toda tecnologia nova?
Roberto Fedeli, chefe de engenharia da Ferrari, fez da pergunta de Stucliffe mais uma oportunidade para fazer propaganda da marca, então vamos cortar 80% da cera e ir direto ao ponto: “com a introdução do sistema do sistema de dupla embreagem na Ferrari California, em 2008 (…) a aceleração se tornou sempre positiva nas trocas de marcha – em vez daquela interrupção seca de torque e reaceleração abrupta típica dos câmbios manuais. Ela também nos permitiu uma integração muito mais sofisticada com os outros sistemas eletrônicos do carro, como o E-diff, F1-Trac, o ABS e os amortecedores magnetorreológicos.”
Opinião FlatOut: disco de vinil
Em resumo, o câmbio manual está sucumbindo por uma série de razões técnicas: ele não consegue ser tão veloz, eficiente ou suave quanto os sistemas automáticos modernos e de dupla embreagem, a diferença de peso para os DSG ficou mínima, os automatizados e automáticos atuais se integram muito melhor com os assistentes eletrônicos embarcados e são, sem dúvida nenhuma, mais seguros. Em um sistema sequencial, não dá para “engatar” a terceira no lugar da quinta, não é necessário fazer punta-tacco para sincronizar os giros do motor com a transmissão nas reduções (se você erra em um tração dianteira, pouca coisa acontece. Num tração traseira, os pneus posteriores bloqueiam e você pode rodar) e, em frenagens ou desvios emergenciais, o motorista fica sempre com as duas mãos no volante e só precisa se focar em um pedal.
Outro diferencial é o conforto, especialmente com a rampa astronômica de potência e torque destes novos motores esportivos com turbos e compressores. Para suportar tamanha patada, um câmbio manual precisa ser robusto como o de um caminhão (literalmente), e você sente o superdimensionamento dos componentes no pulso. As trocas ficam bem duras e o pedal de embreagem vira um aparelho de ginástica, mesmo com servoassistência – que também não pode ser exagerada, ou você iria deixar o carro morrer toda hora por falta de feedback no pé esquerdo.
Para as fábricas, os sistemas automáticos e de dupla embreagem também trazem contenção de custos e melhor controle da garantia em médio prazo. Não há dúvidas de que estes sistemas são mais caros de ser fabricados, mas como eles são controlados eletronicamente, todo o powertrain sofre muito menos e fica blindado a circunstâncias ou manobras suicidas – por exemplo, uma redução forçada que leve o motor para além de sua redline. Com isso, alguns componentes não precisam ser ultradimensionados – algo que acontece em esportivos manuais, como forma de se prevenir babacas ao volante. Que, convenhamos, não faltam.
Mas e a experiência? Bem, eu não tenho a menor dúvida de que o PDK da Porsche, ou mesmo o DSG de um singelo Golf 1.4 é mais veloz na pista do que a transmissão manual. Ora, até mesmo um com um profissional ao volante – imagine com um amador? Mas a contrapartida vem temperada pela mesma dose de certeza: na hora do vamos ver, não tem a mesma graça e muito da conexão mecânica do motorista com o automóvel é perdida.
A questão é: cada vez menos pessoas se importam com isso. O automóvel é cada vez menos carro e cada vez mais gadget para os consumidores – menos máquina industrial, mais eletrodoméstico. Não falo só de conectividade com o seu smartphone ou da presença de GPS: a gadgetização aparece nas entrelinhas de conveniências muito bacanas, como o sistema keyless e botão start, abertura de vidros com um toque, ar-condicionado com quatro zonas e temperatura regulável em frações de meio grau, na alavanca de abertura do capô escondida, no motor com uma gigantesca capa plástica. Frente a tanto conforto e estética, pisar num pedal duro e ficar trocando de marcha em congestionamento parece coisa do tempo das diligências. Essa domesticação do automóvel acontece em todas as categorias, de compradores de Gol a Porsche – eu, particularmente, acho que tanta conveniência e assistentes combinados a desempenho de carro de corrida estão inspirando excesso de confiança em muitos “pilotos” por aí. Mas isso é assunto para outro dia.
Nós, que usamos fragrância de WD40 e adoramos abrir a janela nos postos de gasolina, não nos importamos em trocas marchas no pulso – pelo contrário, somos apaixonados pelo clank-clunc, pelo tranco no pescoço em trocas secas, pelo sorriso de canto que aparece automaticamente nos nossos rostos quando acertamos uma frenagem feita no limite com punta-taco perfeito. O câmbio manual tem o diferencial de nivelar a coisa por cima – borboletas deixam a vida mais fácil e escondem pilotos medíocres. Mas nós, apaixonados, somos a minoria absoluta com esta opinião. Somos um nicho – e é exatamente este o destino do câmbio manual: ser uma espécie de disco de vinil automotivo.