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Pensatas

Cara, cadê meu carro voador? Já estamos em 2020!

“Que fim levou os 50, futuro dos 40, e os 60, futuro dos 50, e como será 2000, futuro dos futuros, isto é, de todos os passados? É, não se faz mais futuros como antigamente.” – Millôr Fernandes

Em 1996 eu estava na sexta série. Meu quarto devia ter uns oito ou dez modelos em escala da série “Road Tough” e da Burago, o pôster da Ferrari 355 na parede e o álbum de figurinhas “Super Auto” em cima da escrivaninha. Ao lado da cama, uma pilha de revistas e anuários que eu acumulava de tempos em tempos.

Nas pouco mais de quatro horas que eu passava longe deste ambiente imersivo, como se diz hoje em dia, eu estudava assuntos menos interessantes como binômios e bissetrizes, savanas e tundras, Bismarck e Garibaldi, mitocôndrias e ribossomos. Entre uma aula e outra surgiu uma oportunidade de eu misturar as duas coisas — obrigação e interesses pessoais — pela primeira vez: naquele ano teríamos uma feira de ciências e eu decidi que teríamos um trabalho sobre os carros do futuro.

Quem viveu conscientemente nos anos 1990 (e antes dele) lembra muito bem: o ano 2000 era o marco inicial do futuro. Era o ano em que todas as tecnologias mágicas entrariam em nossas vidas. Teríamos vídeo-fones, computadores que fariam trabalhos de escola sem sairmos de casa, esteiras rolantes no lugar das calçadas, televisões gigantes capazes de gravar nossos programas favoritos enquanto estivéssemos trabalhando ou estudando, o Concorde ainda voava e nos fazia sonhar com o turismo espacial. E, claro, teríamos os supercarros de 400 km/h e seus sucessores, os carros voadores.

Este é o carro voador que queremos

A pesquisa para o trabalho foi a típica pesquisa da época: fomos à biblioteca local — que por acaso era a maior do Estado — encontramos dezenas de revistas e livros da época sobre o assunto, fizemos fotocópias e fomos para casa montar a apresentação.

Os detalhes são irrelevantes. O que reunimos de informação é o que interessa: os carros seriam elétricos — e o primeiro deles já estava no mercado: o Chevrolet EV1 —, eles poderiam ser autônomos porque as estradas teriam guias eletromagnéticas para orientá-los ao longo do caminho, alguns nem precisariam de volantes, como propunha a Mercedes-Benz com o F200 Imagination. Mas a previsão mais legal de todas era a do carro voador. Um carro capaz de voar como o dos Jetsons ou como a “hover conversion” feita pelo Dr. Emmett Brown em seu DeLorean durante sua primeira viagem ao ano 2015.

Por alguma razão não fomos aprovados para a feira de ciências, o trabalho acabou literalmente engavetado e eu só participaria da feira na edição de 1999 para não reprovar em biologia, apresentando um trabalho banal sobre a água, que teve “Planeta Água”, do Guilherme Arantes, como trilha sonora ao longo de oito horas seguidas.

No mês seguinte veio o ano 2000, aquele que prometia trazer o futuro para o presente, e tudo continuou exatamente como estava. Nem mesmo o temido bug do milênio aconteceu. Tudo ficou exatamente como estava.

É claro que ninguém esperava uma revolução na realidade enquanto os fogos iluminavam o céu na chegada do ano novo. Mas durante muito tempo o ano 2000 foi um lugar fantástico, a data de inauguração do futuro com o qual sonhávamos. De repente o ano 2000 deixou de ser futuro e se tornou presente. E, 366 dias depois, se tornou passado.

E, desde então, parece que passamos a ser mais cautelosos com nossos sonhos de futuro. Ninguém fala de 2100 ou 2050 como se falava do ano 2000. Já não se fazem mais futuros como antigamente mesmo, Millôr. Hoje as previsões são menos românticas e mais realistas, ainda que a revolução tecnológica esteja acontecendo diariamente debaixo do meu e do seu nariz.

O carro que dirige sozinho, sobre o qual eu li em 1996, ainda era um sonho distante em 2000, mas começou a se aproximar em 2010 e agora, em 2020, se tornou uma certeza para os próximos anos. Como ele será utilizado ainda é uma incógnita — apesar de já termos uma breve noção —, mas é certo que ele vai acontecer. Aliás, já está acontecendo.

Isto é um carro voador segundo 1999

Da mesma forma o carro elétrico. O EV1 foi um fracasso. Mas no ano seguinte, em 1997, a Toyota colocou no mercado um carro chamado Prius, que tinha um motor elétrico como o EV1, sem deixar de lado o motor a combustão, o que fez dele um automóvel mais convencional, que poderia ser abastecido em um posto de combustível. E assim ele trouxe no porta-malas a noção de que a mobilidade eletrificada era viável e, acima de tudo, desejável — já que rodava mais de 20 km/l.

Não era bonito, mas era um carro com quatro portas, cinco lugares e porta-malas, que “recarregava” em cinco minutos no posto de gasolina

E ainda que não fosse um elétrico, ele dependia de baterias que precisaram ser cada vez mais eficientes. Isso ajudou o desenvolvimento de carros 100% elétricos capazes de ir tão longe quanto um carro com o tanque cheio. E não parou por aí: as fabricantes de carros esportivos descobriram um jeito de usar a eletricidade para empolgar e assim nasceram carros como os Audi e-tron de Le Mans, os hipercarros LaFerrari, Porsche 918 Spyder e McLaren P1, além de modelos mais sóbrios como o Porsche Taycan e o Aston Martin Rapide E.

Aos poucos, todos os nossos sonhos do futuro do passado começaram a se concretizar: a TV que “grava enquanto trabalhamos”, as esteiras, os “vídeo-fones”, os computadores que nos permitem trabalhar sem sair de casa, os 400 km/h, o turismo espacial.

Mas o carro voador não. Este ficou para trás. O mundo girou, os computadores encolheram, se conectaram, foram para o bolso, entraram nos eletrodomésticos e nos carros, fomos a Marte, voltamos à Lua, mas o carro voador continua um sonho distante.

E, provavelmente, continuará assim para sempre.

O carro voador é um conceito antigo. Fala-se nesse tipo de veículo desde que os carros foram inventados. Nem mesmo a invenção do avião demoveu da humanidade a ideia de voar com um carro. Protótipos foram construídos, dinheiro foi desperdiçado, mas tudo o que foi criado até hoje foram aviões mais pesados que se transformavam em carros desajeitados e impraticáveis.

Os anos 2000 ficaram para trás. Os anos 2010 também. Chegamos a 2020 e o carro voador ainda continua um sonho que algumas empresas como a Terrafugia e, mais recentemente, a Hyundai e a Uber, juram que estão realizando. Mas, se não tem rodas, não tem um volante, não dirige na cidade e na estrada, não é realmente um carro, é?

Isto é um carro voador segundo a Terrafugia

O problema é que um automóvel e um avião são máquinas fundamentalmente diferentes. O que um carro precisa para funcionar é exatamente o oposto que um avião precisa para funcionar. Fora o fato de transportarem pessoas e seus objetos e de terem autopropulsão, eles são máquinas diferentes. É mais ou menos como fazer um forno-geladeira.

Na verdade, isso seria mais simples.

Um carro voador não seria eficiente como automóvel, nem como aeronave. Lembre-se dos carros anfíbios: é fácil fazer um carro entrar na água, navegar até a outra margem e sair rodando pela terra firme. Nós já fizemos isso diversas vezes. Schwimmwagen e Amphicar mandam lembranças do passado de onde vieram e onde ficaram. Por quê? Porque não precisamos realmente de um carro que navega, da mesma forma que não precisamos de um carro que voa.

O que está sendo desenvolvido com o nome fetichista de “carro voador” são aeronaves compactas. Veículos inspirados em drones, com motores pequenos, que geram sustentação por hélices como helicópteros. É exatamente isso o que a Hyundai e a Uber anunciaram neste início de 2020: um drone com lugar para cinco pessoas. Ele poderia rodar nas ruas? Provavelmente não, porque suas asas são imensas. Não imagino como passar com esse negócio no drive-thru ou pelas colunas da garagem de um edifício.

Isto é um carro, segundo a Hyundai e a Uber

A tecnologia de hoje certamente já possibilitaria fazer um carro drone, da mesma forma que as diversas hover-bikes que volta e meia aparecem em vídeos nas redes sociais. Mas a questão fundamental é: precisamos deles?

O que há de errado em usarmos nossos carros ultra-eficientes para chegar ao aeroporto, onde embarcaremos em aviões que têm seus custos operacionais altíssimos divididos entre centenas de passageiros? O que nos faz pensar que um carro voador teria um custo operacional baixo? Sem contar o custo de produção: aviões não são caros porque as fábricas querem. Mas… este nem seria um problema tão grande, afinal, é provável que a economia de escala desse conta de resolvê-lo com a popularização do carro voador.

Contudo, este carro voador precisaria ser seguro, confiável — mais que um carro convencional. Precisaria ter controles simples para ser popularizado, o que exigiria que ele pudesse ser conduzido sem a necessidade de um piloto qualificado como os aviões. Sem isso, ele jamais teria a economia de escala necessária para reduzir os custos.

Isto é um carro voador segundo Mark Webber

Só que a popularização dos carros voadores conduzidos por pessoas com treinamento básico traria outro risco: colisões aéreas, que resultariam em quedas ou pousos forçados — situações que trazem riscos a quem está aqui embaixo.

Os acidentes, aliás, são outro empecilho, mas no modo automóvel: aeronaves não precisam resistir a impactos em velocidade e precisam ser leves para ser eficientes. Automóveis não: eles precisam lidar com impactos de veículos mais pesados que eles e, ainda que a tecnologia de ligas metálicas ultra-leves esteja bem desenvolvida, inevitavelmente o peso seria maior que o de uma aeronave.

Como o carro voador está sendo planejado para o ambiente urbano, seu sistema de propulsão precisaria ser, acima de tudo, silencioso e isolado — imagine um rotor tocando uma árvore no centro da cidade, ou uma linha de alta tensão —, além de ser limpo. O que nos leva a outro problema: ele precisa ser compacto e, ao mesmo tempo, potente. E como motores aeronáuticos são mais eficientes em altitudes nas quais os carros voadores não atingiriam — por uma simples questão de controle de tráfego aéreo — eles tendem a ser menos eficientes que aviões e, evidentemente, carros comuns.

Isto é um congestionamento de carros voadores segundo Dr. Who

Por último, ainda temos a questão das aterrissagens e decolagens. Como isso seria controlado? Teríamos locais próprios para estas manobras? Isso não causaria congestionamentos devido à demanda? São questões que ainda não foram resolvidas — e talvez nem sejam .

Porque o carro voador era um sonho do passado em que carros não viajavam a 400 km/h, não dirigiam sozinhos, de um tempo nos quais viagens aéreas eram caríssimas e as estradas precárias e perigosas. Do passado em que não tínhamos a maior parte do conhecimento humano em uma tela minúscula enfiada no bolso. Do passado em que uma ligação para o outro lado do mundo custava mais que o salário mensal de um operário chinês. De uma época em que o dinheiro não era eletrônico, em que certificações não eram digitais, em que o trabalho não era remoto.

O ano 2000 virou passado. Não inventamos o carro voador e nem o inventaremos. Não por incapacidade, mas por que, enquanto sonhávamos com ele, resolvemos, de outro jeito, todos os problemas que achamos que ele iria resolver.