Se você jogava Gran Turismo 2 nos anos 2000, certamente vai lembrar, com muita nostalgia e um pouco de raiva, da sétima etapa para conseguir a S-License (Super License) – aquela licença totalmente desnecessária para o progresso no jogo, visto que o nível mais alto exigido nos campeonatos era a IA-License (International A License), mas que por questão de honra você tinha de obter.
A pista era Laguna Seca Raceway, uma das favoritas dos gamers da época simplesmente por ser uma pista que existia de verdade. O carro era o Dodge Viper GTS-R Team Oreca ’99 – versão de competição do Viper que, naturalmente, também existiu de verdade – e, em parte, graças àquela licença quase impossível de tirar, tornou-se um dos ícone de uma geração.
Vamos dar uma atenção especial a ele no post especial de hoje.
O Dodge Viper, como você deve saber (especialmente se leu este post, e este aqui também) nasceu como uma afirmação da Chrysler: a fabricante queria mostrar que era capaz de fazer o melhor esportivo já produzido nos EUA sem invencionices – apenas com força bruta, uma bela carroceria e respeito às raízes. A primeira aparição pública do Dodge Viper aconteceu em 1989, como conceito no Salão de Detroit, e a versão de produção – a princípio, disponível apenas como roadster – foi apresentada em 1992.
Motor V10 naturalmente aspirado de oito litros com comando no bloco, 405 cv a 4.600 rpm e 63,9 mkgf de torque a 3.600 rpm, desenvolvido com a ajuda da Lamborghini (que pertencia à Chrysler na época). Câmbio manual de seis marchas. Nenhum tipo de assistência eletrônica. Interior minimalista, feito para o corpo e não para os olhos. Zero a 100 km/h em 4,5 segundos, velocidade máxima de 290 km/h.
Ainda assim em seus primeiros anos o Viper não estava vendendo tão bem – não era um desastre e não estava dando prejuízo, mas a demanda não era exatamente o que a Chrysler havia previsto. Foram vendidas 12.000 unidades do Viper em sua primeira fase, a chamada RT/10. O Chevrolet Corvette continuava sendo o esportivo norte-americano favorito dos entusiastas. Foram vendidas cerca de 12.000 unidades do Viper entre 1992 e 1995 – um bom desempenho, mas a Chrysler esperava mais.
O que fazer então? A gigante norte-americana optou pelo caminho mais entusiasta possível – uma solução antiga, mas que nunca vai ficar velha: transformar o Viper em um carro de corrida. Se deu certo? Claro que deu.
Para o ano-modelo de 1995 a Chrysler já estava preparando a primeira atualização do Viper. A maior mudança era a introdução da carroceria fechada, visto que nem todo mundo era fã de um superesportivo aberto. Havia uma razão prática, porém: um Viper cupê seria naturalmente mais rígido e, por consequência, mais apropriado para as pistas. E ainda havia outra questão – a Chrysler queria que o Dodge Viper também fizesse sucesso na Europa e, para isto, ele deveria estar à altura dos esportivos europeus.
Foi por esta razão que, para ajudá-la a transformar o Viper em um esportivo e carro de corrida de alto nível mundial, a Chrysler contratou a francesa Oreca Engineering. A equipe fundada em 1973 que já tinha um bom histórico nas pistas, incluindo 11 títulos de Fórmula 3 conquistados nas décadas de 1970 e 1980 por pilotos como Alain Prost, Jacques Lafitte, e Jean Alesi. Em 1991 a Oreca foi a responsável pela vitória do Mazda 787B nas 24 Horas de Le Mans de 1991 – ou seja, eram excelentes credenciais.
Ficou decidido que o carro de corrida utilizaria como base o Dodge Viper GTS – era este o nome da versão fechada, que ainda estava sob desenvolvimento. Era uma boa ideia, pois ao serem desenvolvidas juntas, as versões de corrida e de rua se ajudariam de forma mútua, compartilhando elementos entre si.
O Viper de competição foi batizado GTS-R, mas não utilizava a marca Dodge – ele era chamado oficialmente de Chrysler Viper GTS-R. Isto porque, no início do projeto, a Dodge ainda não estava atuando na Europa, mas a Chrysler sim.
A ideia era colocá-lo para correr na categoria GT1, dedicada a versões radicais de modelos vendidos nas ruas. A crueza natural Viper permitiu que diversos elementos da carroceria de fibra de vidro fossem mantidos, sendo que algumas partes foram substituídas por fibra de carbono. A dianteira ganhou novos faróis auxiliares centralizados, acima da grade no para-choque dianteiro, além de um novo splitter frontal.
Também foram instalados respiros no capô, um novo difusor traseiro e uma nada discreta asa sobre a tampa do porta-malas.
O interior recebeu o típico tratamento dos carros de competição na época, perdendo revestimentos e equipamentos desnecessários e recebendo bancos do tipo concha, sistema de comunicação e uma gaiola de proteção integral. O carro já não tinha airbags, nem qualquer tipo de assistência eletrônica – ou seja, tecnicamente o trabalho da Oreca foi até facilitado pela pegada old school do Viper.
A suspensão era basicamente a mesma do carro de corrida, com braços triangulares sobrepostos, molas helicoidais e amortecedores ajustáveis do tipo coilover – a diferença era que, no Viper de rua, os amortecedores ajustáveis eram opcionais. Além disso, o Viper de competição recebia barras estabilizadoras de fibra de carbono na dianteira, enquanto na traseira elas eram de aço.
A grande sacada do Viper era o deslocamento do motor, de 7.998 cm³ – o limite da categoria era exatamente de 8.000 cm³. Assim, não foi preciso realizar tantas modificações assim para o modelo de pista. Obviamente superdimensionado, o motor V10 recebeu uma nova central eletrônica, coletores de admissão e escape retrabalhados, componentes internos mais resistentes e reforços estruturais. A potência ficava entre 650 e 750 cv, dependendo do acerto, enquanto o torque chegava a impressionantes 95,4 mkgf de torque. Toda a força era levada para as rodas traseiras pela mesma transmissão manual de seis marchas do modelo de rua, com relações retrabalhadas para as pistas.
Entre 1996 e 2005 foram construídos 57 exemplares do Viper GTS-R, já contando com cinco protótipos de testes. O carro começou a correr na temporada de 1996 – pela Team Oreca na Europa, começando pelas 24 Horas de Le Mans naquele ano e competindo em outras etapas selecionadas do campeonato BPR Global GT. Nos EUA a equipe Canaska Southwind ficaria responsável por correr com o Viper no IMSA GT Championship, mas também faria uma participação nas 24 Horas de Le Mans – que, afinal, eram a corrida mais importante do ano, e com maior visibilidade.
Não foi exatamente um sucesso: um dos carros da Team Oreca abandonou a prova na 96ª volta e o melhor colocado, da equipe Canaska, ficou com a décima posição. Os outros dois carros terminaram a corrida em 21º e 23º. Depois disto a Canaska decidiu encerrar seu envolvimento com a Chrysler, deixando a Oreca como única equipe de fábrica a correr com o Viper.
Para 1997 a Oreca decidiu migrar da categoria GT1 para a GT2, temendo não conseguir acompanhar rivais como a Porsche, que estreava naquele ano o 911 GT1; e a Mercedes-Benz, que começaria a correr com o CLK GTR – ambos, em essência, protótipos do Grupo C com nome e visual de carros de turismo. Foi uma decisão sábia, na verdade – o Viper GTS-R finalmente mostrou a que veio, vencendo seis das 11 corridas que disputou no FIA GT e levando para casa o caneco em sua categoria. Em 1998 seu desempenho foi ainda melhor: nove das dez corridas do calendário foram vencidas pelos Viper da Team Oreca, que foi bicampeã. E mais: nas 24 Horas de Le Mans daquele ano um dos Viper foi o vencedor na categoria GT2 – se tivesse sido inscrito na GT1, ele certamente não seria páreo para o Porsche 911 GT1. Sábia decisão. Em 1999, exatamente a mesma coisa: das dez provas, a Oreca só não venceu uma, e sagrou-se tricampeã com o Viper.
Paralelamente, em 1998 a Chrysler ordenou à Dodge que construísse uma série especial de 100 exemplares do Dodge Viper, chamada Viper GTS-R GT2 Championship Edition, a fim de homologar o carro para correr na categoria GT2. Cada um dos 100 carros recebeu uma pintura especial, branca com faixas azuis, e interior com revestimento preto e azul.
Os exemplares também recebiam um kit aerodinâmico inspirado pelos carros de corrida e uma leve preparação mecânica, que elevava a potência do motro V10 de oito litros de 405 cv para 465 cv.
Entre 1999 e 2003, o Chrysler Viper GTS-R ainda venceu outros campeonatos e corridas importantes, não apenas com a Team Oreca mas também com outras equipes. Com a Zakspeed, por exemplo, o Viper venceu as 24 Horas de Nürburgring de 1999, 2001 e 2002.
Em 2001 e 2002 a também francesa Larbre Competition assumiu o posto de campeã com o Viper no FIA GT. Houve, ainda outras conquistas expressivas na primeira metade dos anos 2000. O Viper venceu na categoria GT2 dos 1.000 Km de Fuji, no Japão, em 2001; das Mil Milhas Brasileiras de 2004, em Interlagos; e das 24 Horas de Nürburgring entre 2005 e 2007. Foi campeão da American Le Mans Series em 1999 e 2000, na categoria GTS, vencendo corridas em Road Atlanta e, claro, Laguna Seca. E também venceu o Campeonato Belga de Turismo cinco vezes (2001, 2002, 2003, 2004 e 2009); e o Campeonato Italiano de Turismo em 2003 e 2004. Vitórias gerais vieram em 2000 nas 24 Horas de Daytona; e em 2001 e 2002 nas 24 Horas de Spa.
Em 2003, pouco depois da primeira grande reestilização do Viper, a Chrysler decidiu encerrar seus esforços de fábrica, passando a fornecer suporte a equipes independentes – ainda através da Team Oreca. Sem dúvida o desempenho do Viper GTS-R nas corridas ajudou a sacramentar a imagem do esportivo diante do público. A versão de corrida se tornou uma espécie de clássico cult – e um dos carros favoritos do público em eventos de corrida históricos, dos quais começou a participar já em 2007.