“Formação de condutores no Brasil é adestramento”. Essa frase foi dita pelo presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária em 2013, e ajuda a direcionar a busca de uma solução para as mortes no trânsito. Motoristas mal preparados, vias mal conservadas, carros inseguros, crimes de trânsito não punidos. Há uma série de fatores que colaboram para tornar o trânsito brasileiro um dos mais letais do planeta.
Contudo, desde 2013 a discussão sobre segurança no trânsito se concentrou em torno da ideia de que “reduzir os limites de velocidade salva vidas”. Aconteceu em várias cidades do Brasil, onde os radares se multiplicaram como nunca.
É difícil contra-argumentar a ideia de que a redução de velocidade salva vidas, afinal, ela foi afixada no imaginário coletivo através de um gatilho mental: “salvar vidas”. Quem em sã consciência pode se manifestar contra uma causa tão nobre? Com o povo sensibilizado pela causa, bastam algumas estatísticas convenientemente relacionadas, uma campanha publicitária intensiva e voilà: está criado o consenso desejado.
Por isso nas últimas semanas, a internet foi tomada por uma onda de chavões e argumentos falsos que supostamente “provam” uma relação direta entre a redução de limites de velocidade e o salvamento de vidas. Isso aconteceu especialmente em São Paulo, a vitrine nacional da ideia, que observou uma queda nas fatalidades após a redução dos limites de velocidade — e que por isso também será o foco de nossas análises.
Acontece que o trânsito é muito mais complexo que um slogan ou meia dúzia de memes ou estatísticas aleatórias. Por isso, decidimos dar uma olhada mais aprofundada nas certezas que vêm sendo repetidas incessantemente sobre os limites de velocidade.
1- “A redução de limites salvou vidas”
A adequação de limites é fundamental para garantir a segurança do ambiente viário. Contudo, nem sempre essa é a saída ideal. Em alguns casos, mesmo com reduções de limites, as mortes podem continuar ocorrendo. Mas nesse caso não é porque a redução foi insuficiente, mas porque o elemento de risco era outro, que continua lá apesar das velocidades mais baixas.
Dentre as 50 ruas mais letais de 2015, 22 tiveram um aumento no número de mortes em relação a 2014. Algumas registraram a maior marca dos últimos cinco anos. O que estas 22 ruas têm em comum? Todas tiveram reduções de velocidade em 2014 e/ou 2015. Algumas de 60 km/h para 50 km/h, outras de 50 km/h para 40 km/h. Veja a relação abaixo. :
O caso que mais chama a atenção é o da av. Washington Luís, onde três pessoas perderam a vida em 2009 e quatro em 2010. Em 2011 a prefeitura reduziu o limite de 70 km/h para 60 km/h e o número de mortes aumentou para cinco em 2011 e sete em 2012. Em 2013 foram apenas três mortes e em 2014 foram cinco. A prefeitura achou melhor reduzir para 50 km/h, mas o número de mortes chegou a oito, o maior desde 2008. Nessa via houve mais mortes com limites de 60 km/h e 50 km/h (28 mortes entre 2011 e 2015, média de 5,6 mortes por ano) do que com o antigo limite de 70 km/h (22 mortes entre 2007 e 2010, média de 4,4 mortes por ano).
Outro caso é o da Av. Cruzeiro do Sul, onde morreram seis pessoas em 2015 — a maior marca desde 2007. Apesar da velocidade reduzida de 60 km/h para 50 km/h, seis pedestres morreram atropelados na via. Você talvez pense que isso seja motivo para reduzir o limite de 50 km/h para 40 km/h, mas antes de repetir o mantra “velocidade mata”, saiba que a própria CET atribuiu os acidentes ao desrespeito dos pedestres à sinalização da travessia. O problema é que a Companhia não admite uma falha grave em seu planejamento no local: o semáforo de pedestres fica verde por apenas 25 segundos, tempo insuficiente para cruzar as pistas com segurança. Assim, a travessia precisa ser feita em dois tempos (os pedestres precisam esperar na ilha que divide as pistas). É quando o maior problema aparece: o semáforo de pedestres fica fechado por (está sentado?) 5 min e 25s. Não erramos a digitação: são cinco minutos e vinte e cinco segundos que os pedestres têm que esperar em uma ilha em meio aos carros para atravessar com segurança. Sem um contador regressivo, eles assumem que o semáforo está com defeito e arriscam a travessia com o semáforo aberto para os carros. Nesse caso o problema não era o limite da via (visto que o histórico de acidentes era inferior), mas sim uma série de fatores que nunca foram corrigidos pela prefeitura, como mostra 1.
A mesma situação é observada nas Marginais de SP. Lá os pedestres são as maiores vítimas depois dos motociclistas (), mas o problema é que se trata de uma via rápida, onde não deveria haver trânsito de pedestres. Reduzir os limites para evitar atropelamentos, nesse caso, é uma decisão aleatória, que não ataca a real causa do problema. Afinal, se não há locais definidos para travessia, não há como identificar os pontos em que a redução é necessária para preservar pedestres. Reduzir os limites de uma via rápida também modifica a natureza da via, fazendo com que sua finalidade (que é justamente ser rápida) seja anulada. No caso das Marginais, a solução seria avaliar por qual razão os pedestres arriscam a travessia, onde são os pontos críticos e, a partir disso, definir se é necessário criar uma passarela ou qualquer outro recurso que a travessia seja realizada com segurança.
Foto: Flickr/P. Ripoll Cerezo
As famosas avenidas Ipiranga e São João, no centro da cidade, tiveram novos trechos incluídos na Área 40 (km/h), a partir de 15 de dezembro de 2014. Apesar da redução dos limites, as duas avenidas bateram o recorde de mortes em 2015: foram cinco mortes na São João e quatro mortes na Ipiranga — . Em 2014 não houve uma única morte na Av. São João e apenas uma na Av. Ipiranga. Esta última é, historicamente, uma avenida relativamente segura em relação às vizinhas. De 2007 até 2014 foram 7 mortes, sendo 1 em 2007, 3 em 2008, zero em 2009, 2010 e 2011, uma em 2012, uma em 2013 e uma em 2014. Na avenida São João uma das mortes foi causada por um motorista embriagado que 1) não teme as consequências legais e 2) não foi flagrado pois não há patrulhamento.
Em dez destas 22 vias, o ano de 2015 foi o mais letal desde 2007 — quando os limites eram maiores, o que pode indicar que os limites não eram o real problema, uma vez que sua redução não diminuiu o número de mortes. Logo, os números não provam que a redução de velocidade salva vidas. Ao menos não na cidade inteira. Ao menos não sozinha.
Caso você esteja se perguntando sobre as outras 28 vias nas quais houve reduções no número de mortes, em 11 delas o número de mortes foi o menor absoluto desde 2007:
Nas outras 17, o número de mortes foi menor em 2015 após as reduções, porém estas ruas tiveram um número igual ou menor de mortes em anos anteriores, com limites mais elevados:
Destacam-se as avenidas Águia de Haia, Brigadeiro Faria Lima, Dr. Gastão Vidigal e Sadamu Inoue, que tiveram ao menos cinco anos com menos mortes que 2015 no período avaliado pela CET.
Interlúdio: O diferencial de velocidade — ou quando a velocidade pode ser perigosa mesmo dentro dos limites
Nas Marginais a redução dos acidentes foi significativa, porém as principais vítimas continuam sendo os motociclistas. E nesse caso, o problema não é apenas o limite de velocidade, mas também o diferencial de velocidade. No Brasil não há leis que determinam o uso do “corredor” entre os carros. O que significa que em meio ao trânsito de, digamos 25 km/h, as motos podem circular no limite de velocidade. Mas nesse caso o risco de acidentes é muito maior do que um bloco de veículos andando uniformemente no limite.
O que explica isso é o estudo publicado por David Solomon em 1964 nos EUA (e válido até hoje), conhecido como “Crash Risk Curve”, que pesquisou a relação entre a velocidade média e os índices de colisões. Solomon observou mais de 10.000 carros e seus motoristas e como as condições de veículo, via e outros motoristas afetam as chances de acidentes. Ele descobriu que a probabilidade de se envolver em um acidente em relação à velocidade forma um gráfico em U, no qual as velocidades mais próximas do ponto médio (velocidade média) são aquelas onde há menos chances de acidentes. Quanto mais as velocidades se afastam deste ponto médio — seja para cima ou para baixo —, maior o risco de acidentes.
A velocidade dos carros é o ponto zero. Para cada 10 mph acima dela, o risco de acidentes aumenta.
Por outro lado, apesar de ser elevado, o número de acidentes de motos reduziu em relação a 2014. Mesmo assim não dá para atribuir apenas às reduções de velocidade. Em 2015 a prefeitura também renovou o contrato com os equipamentos de fiscalização eletrônica de motos, que são proibidas de circular nas pistas expressas da Marginal Tietê desde 2011, porém a infração não era fiscalizada desde 2012. O excesso de velocidade das motos também não era fiscalizado pois os radares fotografam de frente. Com o início da fiscalização de motocicletas, o número de mortes de motociclistas diminuiu de 18 para 15 na Marginal Tietê, e de 12 para 8 na Marginal Pinheiros. Nesse caso, qual foi o fator decisivo para a redução de mortes: a fiscalização ou os novos limites?
2- “Os novos limites são recomendados pela OMS”
O Brasil já adota os limites “recomendados” pela OMS desde 1998, quando o atual Código de Trânsito entrou em vigor. Embora ele não estabeleça um método padronizado para definir os limites de velocidade, eles são, via de regra, baseados nos limites previstos pelo código para vias sem sinalização de limite. São os seguintes:
Art. 61. A velocidade máxima permitida para a via será indicada por meio de sinalização, obedecidas suas características técnicas e as condições de trânsito.
§ 1º Onde não existir sinalização regulamentadora, a velocidade máxima será de:
I – nas vias urbanas:
a) oitenta quilômetros por hora, nas vias de trânsito rápido:
b) sessenta quilômetros por hora, nas vias arteriais;
c) quarenta quilômetros por hora, nas vias coletoras;
d) trinta quilômetros por hora, nas vias locais;II – nas vias rurais:
a) nas rodovias:
1) 110 (cento e dez) quilômetros por hora para automóveis, camionetas e motocicletas;
2) noventa quilômetros por hora, para ônibus e microônibus;
3) oitenta quilômetros por hora, para os demais veículos;b) nas estradas, sessenta quilômetros por hora.
Sim, o Brasil sempre praticou a recomendação de 50 km/h para a maioria das vias urbanas, salvo as grandes avenidas que geralmente adotam o limite de 60 km/h — a menos que atravessem áreas com alta densidade de pedestres. E eles sempre foram baseados em estudos anteriores sobre sobrevivência de pedestres. Limites acima de 60 km/h, são adotados geralmente apenas em vias expressas (vias rápidas), onde é possível adotar limites de 70, 80 e até 90 km/h com segurança devido à restrição do fluxo de pedestres e veículos não motorizados, travessia em nível e interseções.
3- “As grandes metrópoles mundiais também estão reduzindo para 40 km/h ou até 30 km/h”
Não é bem assim. O que está acontecendo em algumas cidades é a adequação dos limites a alguns trechos que passaram por mudanças no fluxo de pessoas e ciclistas recentemente. Em Nova York o tal limite de 25 mph (40 km/h), que vem sido divulgado como “novo limite urbano da cidade”, foi aplicado apenas nas áreas com maior concentração de pedestres e ou ciclistas. Os limites nas áreas urbanas da cidade variam de 20 mph a 50 mph (32 km/h a 80 km/h). O . Basta clicar nas imagens abaixo para ver que todos eles têm vias com limites superiores a 25 mph.
Em Paris os limites variam entre 50 km/h nos principais corredores viários da capital francesa e 30 km/h nas ruas mais estreitas e de mão única e/ou pista simples. Há um projeto discutido desde 2014 para adotar o limite de 30 km/h em metade das ruas da capital, porém ainda não há data definida. O motivo? Estão discutindo os impactos da redução dos limites. Vale observar que o limite de 30 km/h está sendo proposto também para reduzir a poluição na cidade.
Em Roma os limites são semelhantes aos adotados por aqui: 30 km/h a 40 km/h em áreas com alta concentração de pessoas, 50 e 60 em avenidas e vias rápidas. Porém há uma diferença fundamental: as punições são mais severas. Se você for flagrado a 60 km/h em uma via com limite de 40 km/h, a multa chega a mais de € 500 e você terá sua habilitação suspensa.
Londres é outra capital que supostamente “reduziu o limite de importantes corredores para 25 mph”. Depende o que se considera “importantes corredores”. Observando (o departamento de transportes local) você verá limites variando de 25 mph a 40 mph na região central, e de até 60 mph (100 km/h) em zonas mais afastadas.
A maior referência de um trânsito seguro talvez seja a Suécia, o país mais bem-sucedido com o programa Vision Zero, que visa zerar as mortes no trânsito. Lá os critérios para definição de limites de velocidade são os seguintes: em lugares onde há a possibilidade de conflitos entre carros e pedestres ou ciclistas, a velocidade máxima é 30 km/h. Onde há interseções em nível e pode haver colisões laterais (as colisões em T), a velocidade máxima é 50 km/h. Em lugares com a possibilidade de impactos frontais entre carros, a velocidade máxima é 70 km/h. Em lugares onde não há a possibilidade de impactos frontais ou laterais entre carros, a velocidade pode variar entre 100 km/h e 120 km/h.
4- “Os números provam que houve reduções nas mortes”
A redução das mortes é inegável. Porém os números menores não são suficientes para provar que foram as reduções de limites que provocaram a queda na mortalidade. Afinal, os números também mostram que houve um aumento do número de mortes em algumas ruas, e também mostram que as fatalidades vinham caindo gradualmente desde 2007, antes das primeiras reduções de limites, que começaram em 2011.
De acordo com os dados publicados pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, entre 2007 e 2013, houve uma redução média de 4,4% ao ano. Porém em 2014 a queda foi interrompida por um aumento de 8,4%. Os motivos do aumento foram atribuídos à velocidade, apesar de os limites serem os mesmos dos anos anteriores.
Os números também não relacionam o número de mortes ao número de veículos circulantes no município. Não mostram se houve redução no volume de tráfego, na distância média das viagens e inúmeras outras variáveis que impactam diretamente o trânsito. Em 2014, por exemplo, São Paulo recebeu 15 milhões de turistas para a Copa do Mundo. Destes, quatro milhões chegaram e permaneceram na cidade em junho e julho. Não foram divulgados o número de veículos que chegaram à cidade no período da Copa.
Além disso, desde 2007 houve uma evolução significativa na segurança passiva dos carros, inclusive na proteção de pedestres. Os institutos de testes de segurança, como o NCAP, começaram a fazer testes de proteção a pedestre em 2010. A partir de 2008 a frota brasileira foi renovada e, em 2012, chegou a uma idade média de oito anos. Esses fatores também devem ser considerados quando se estuda os fatores que tornaram o trânsito mais seguro.
E, por último, é preciso considerar até mesmo as campanhas educativas promovidas pelas autoridades de trânsito. Pedestre mais conscientes são capazes de evitar acidentes — diferentemente da crença popular de que somente veículos podem evitá-los por serem, via de regra, a maior parte dos causadores de acidentes.
Por isso, comparar simplesmente a queda no número de mortes com a redução de limites de velocidade não é suficiente para atestar que as reduções de limites salvaram vidas.
5- “A redução de limites de velocidade melhorou a velocidade média e reduziu os congestionamentos”
Esta é mais uma afirmação sem correlação direta entre fatos. A velocidade média inclui a velocidade dos ônibus que trafegam pelo corredor? Houve redução do número de veículos transitando na cidade?
O ano de 2015 é comparado diretamente com 2014. Porém, como dito mais acima, em 2014 São Paulo foi uma das cidades-sede da Copa do Mundo e recebeu mais de quatro milhões de turistas entre junho e julho e outros 11 milhões no restante do ano, segundo a SP Turis.
As Marginais de São Paulo (que também tiveram uma redução significativa no número de mortes em 2015), eram até 2014 a principal ligação entre as rodovias Castelo Branco, Raposo Tavares, Régis Bittencourt, Anchieta e Imigrantes às rodovias Ayrton Senna e Dutra. (em azul na imagem abaixo), permitindo a comunicação entre estas rodovias sem a necessidade de passar pelas Marginais e/ou outras avenidas de acesso ao Rodoanel, como a Jacu-Pêssego (onde também houve redução de acidentes). A SPMar, responsável pelo novo trecho, , e outros 45.000 veículos em 2015, desafogando as Marginais. Subtraindo 45.000 de 33.200, temos uma redução de 11.800 veículos por dia de 2014 para 2015, ou uma redução de 4,3 milhões de veículos.
São ao menos 12,1 milhões de veículos por ano que não precisam mais entrar na capital paulista. A av. Jacu-Pêssego é outra via que teve o número de mortes reduzido e que, até 2014, recebia o tráfego que passou a ser desviado para o Rodoanel. Portanto, é necessário considerar a possibilidade de redução do fluxo devido a estas obras.
Em 2010 a frota paulistana era de 6,95 milhões de veículos e em 2015 chegou aos oito milhões, um aumento de 15%. Contudo, em 2011 — o ponto mínimo de congestionamentos em toda a cidade, com 164 km de média — Em 2015, a média na cidade toda foi de 241 km . O aumento da frota nesse período foi de 14,3%, porém o aumento dos congestionamentos foi de 30%.
Tudo isso no campo das possibilidades. Agora os fatos: segundo o Relatório Anual de Volumes e Velocidades da CET, a parcela de automóveis na frota circulante da cidade caiu de 80,2% para 78,9%, com quedas significativas no volume de automóveis e caminhões nas duas marginais. O relatório de 2015 pode ser acessado , e o de 2014
Depois há o o argumento de que a velocidade média aumenta com a redução dos limites de velocidade. Ele é baseado em duas premisas equivocadas. A primeira delas é baseada no físico alemão Martin Treiber. Treiber dedica seu trabalho acadêmico à física do trânsito e criou uma série de simuladores para explicar ao mundo um pouco de sua ciência.
Seu simulador é irretocável e explica perfeitamente a dinâmica do trânsito em diversas situações. A única situação que ele não reproduz é a suposta melhoria dos congestionamentos devido à redução dos limites de velocidade. Nas instruções de simulação, Treiber explica cada uma das situações que podem ser simuladas, e em momento algum o físico sugere que a redução do limite de velocidade reduz os congestionamentos. Veja só o que ele diz sobre os “congestionamentos fantasma” (aqueles que parecem se formar sem motivo algum):
“A dinâmica depende essencialmente da densidade média de veículos, que é o principal parâmetro de controle nos sistemas fechados. Considere que um carro freia um pouco (perturbação inicial). Como consequência, o motorista do carro de trás precisa frear também para manter a distância segura. Como a desaceleração é finita, o espaço entre os dois veículos se torna baixa demais e o motorista de trás precisa frear ainda mais para recuperar a distância segura. Como consequência, um terceiro motorista, atrás dos dois primeiros, precisa frear ainda mais e assim por diante. Apesar deste mecanismo de desestabilização, a redução até certa velocidade de equilíbrio dependente do espaço entre os carros, acaba atuando como um mecanismo estabilizador. Para densidades suficientemente baixas (ou muito elevadas), este efeito é dominante e as perturbações são eliminadas”
O que Treiber quer dizer com isso é que as ondas de congestionamento dependem da densidade dos veículos e que, depois de formadas, elas só voltarão ao normal quando houver um equilíbrio ideal entre velocidade e espaço entre os carros. Esse conceito é onde as pessoas acabam confusas: se a solução é o equilíbrio entre velocidade e espaço, bastaria limitar a velocidade máxima (o espaço seria consequência da distância segura média tomada naturalmente pelos motoristas). Contudo, isso não considera o fator essencial citado por Treiber em primeiro lugar: a densidade média de veículos. Como as ruas não estão em um sistema fechado, a densidade varia de acordo com o número de carros que entra e sai da pista principal.
A solução para este caso, no entanto, não está na redução de velocidade (que também reduz o “gap” entre os carros), mas sim no controle de fluxo/acesso. Esse controle já foi adotado nos EUA em diversas freeways, e é conhecido como “ramp metering”, ou “medição das rampas” (de acesso às freeways).
A ideia é a seguinte: usando contadores de carros nas freeways e nas rampas de acesso a elas, o sistema eletrônico é capaz de detectar o ponto de saturação do sistema. Quando isso está prestes a acontecer, ele fecha os semáforos inteligentes nas rampas de acesso ao trecho crítico, impedindo que a densidade aumente e acabe causando o colapso do sistema. Quando os contadores detectam o volume razoável na pista principal, os semáforos se abrem e o acesso volta a ser liberado.
Logicamente os americanos ficaram furiosos no início, mas um sujeito chamado Doug MacDonald criou um experimento simples para demonstrar como o controle de acesso é benéfico e reduz os gargalos causados pelas rampas de acesso.
Infelizmente, no Brasil esse experimento foi divulgado amplamente como uma “prova” de que a redução de velocidade reduz os gargalos. Segundo os utilizadores deste argumento, os grãos de arroz colocados mais lentamente no funil provam que reduzir a velocidade diminui gargalos. Esta é a outra premissa equivocada: despejar os grãos de forma mais lenta não significa que você está reduzindo a velocidade dos grãos de arroz, mas sim o volume de grãos no sistema. A menos que você mude a aceleração da gravidade, eles sempre caem à mesma velocidade. Não é mesmo, Galileu?
E as outras ações?
Quando a CET fala que as reduções de velocidade foram as responsáveis pela redução das mortes, ela também minimiza ações positivas realizadas na capital ao mesmo tempo que omite pontos críticos da segurança do trânsito paulistano.
Vale lembrar ainda que as maiores vítimas de acidentes fatais ainda são os pedestres e os motociclistas. Em 2015 foram mortos 419 pedestres (em 407 atropelamentos) e 370 motociclistas. Isso não se deve apenas à sua maior vulnerabilidade por estar com o corpo exposto — lembre-se: os acidentes são resultado de uma série de fatores.
Segundo estudos de segurança no trânsito utilizados pela CET (feitos por Ashton em 1982, quando os para-choques dos carros ainda não visavam minimizar as lesões a pedestres), há 85% de chance de sobreviver a um atropelamento a 45 km/h, 55% a 50 km/h e 30% a 60 km/h. Se 6.076 pessoas sobreviveram a atropelamentos, podemos concluir que a maioria deles não foi causada por velocidade excessiva. Uma pesquisa nos dados dos relatórios anteriores de acidentes fatais da CET mostra que os atropelamentos aconteceram, em sua maioria, entre 18h e 6h, quando está escuro e há menos pedestres nas ruas — ou seja: quando os motoristas estão com a visibilidade limitada pela natureza ou pela ausência de iluminação pública. , e o número de atropelamentos caiu para 407 — uma redução de 107 mortes em dois anos. A maioria dos atropelamentos, contudo, continua acontecendo durante a madrugada.
Apesar do investimento nas faixas,
Também há um tipo de acidente muito comum, que é o atropelamento por motos que ultrapassam carros aguardando a travessia de pedestres na faixa. E a fiscalização dessa infração só pode ser feita por agentes. — e a maioria delas se refere estacionamento irregular.
Aliás, a fiscalização dos agentes é concentrada em infrações leves e médias, que não colocam vidas em risco — ao menos não diretamente. Em 2015, apenas seis motoristas foram multados por circular com os faróis apagados à noite, infração que pode causar atropelamentos ou acidentes graves. Será que estamos falando dos motoristas mais atentos do país?
No caso dos motociclistas, um perigo pouco percebido está no diferencial de velocidade entre o “corredor” e os carros parados. Ainda que um motociclista esteja dentro do limite de velocidade, se sua velocidade for muito maior que a dos carros que formam o corredor, o risco de acidentes aumenta exponencialmente — o que é explicado pela curva de Solomon, lá de cima.
Nesse caso, a solução não são os limites menores, mas uma revisão na lei que permite os motociclistas no corredor ou uma modificação na formação dos condutores de motocicleta, .
Outro ponto: o número de km de ciclovias aumentou. Em 2012 havia 70 km de ciclovias, hoje há 415 km. As mortes de ciclistas diminuíram porque os carros estão mais lentos ou porque os ciclistas têm um local seguro?
“Não existe indústria da multa”
A fiscalização eletrônica aumentou enquanto a manual diminuiu. Atualmente apenas 21,5% da fiscalização na cidade é manual 78,5% é eletrônica. A fiscalização eletrônica consegue flagrar apenas veículos que não respeitam o rodízio e limites de velocidade — além de semáforos vermelhos. Todas as demais infrações graves ou gravíssimas precisam ser fiscalizadas por humanos, que concentram sua fiscalização em infrações médias ou leves, Isso resulta em dois problemas sérios para o trânsito: o primeiro é que, longe de um radar, o mau motorista se sente seguro para fazer o que bem entender.
O segundo, é que uma fiscalização concentrada em cerca de cinco a dez infrações (uso do celular, cinto, capacete, estacionamento irregular e regulamentado, conversão proibida, rodízio, limites de velocidade e semáforo vermelho), faz com que os motoristas se preocupem apenas em não cometer estas infrações. Como resultado, temos motoristas que respeitam limites de velocidade, mas estacionam sobre ciclofaixas, fazem conversões sem sinalizar (o que é perigoso para pedestres, motociclistas e ciclistas), ultrapassam veículos parados para a travessia de pedestres entre outras infrações que podem causar graves acidentes. Já falamos sobre como essa ação do poder público banaliza as demais infrações tão perigosas quanto dirigir rápido demais neste post.
Assim, se o interesse da fiscalização é, de fato, salvar vidas, porque há um foco evidente da fiscalização manual em infrações leves? A resposta pode ter a ver com a suposta meta de multas,
Mais além, temos as reduções de 60 km/h para 50 km/h e as reduções de 50 km/h para 40 km/h. Aqui é preciso relembrar um conceito da engenharia de tráfego chamado , que é a velocidade abaixo da qual 85% dos motoristas de uma via trafegam sem que haja elementos como radares, lombadas etc. Se a velocidade operacional observada em tal rodovia for 60 km/h e for adotado o limite de 60 km/h, a maioria dos motoristas irá dirigir abaixo desta velocidade.
Contudo, quando você impõe um limite de 50 km/h em uma via com velocidade operacional de 60 km/h sem estabelecer elementos viários que condicionem a redução de velocidade, a maioria dos motoristas continuará trafegando na velocidade operacional, não por mau comportamento, mas porque eles não perceberão a necessidade de reduzir a velocidade. Esse comportamento foi observado .
Assim, o motorista que trafegava próximo ao limite de 60 km/h, será um novo infrator se for flagrado por um radar circulando entre 57 km/h e 60 km/h. Note que ele estará no limite considerado seguro anteriormente, porém cometerá a infração de exceder o limite de velocidade em até 20%.
Se a velocidade operacional da via requer uma redução devido a algum elemento do entorno (uma escola, uma igreja, uma praça, um bar), é preciso adotar elementos de sinalização além de placas com os novos limites de velocidade para que o motorista perceba que a velocidade deve ser menor que a operacional. Dessa forma se garante que os motoristas reduzam, de fato, sua velocidade, garantindo a segurança no local. Sem isso, a velocidade continuará elevada, as multas irão aumentar e a segurança desejada não se concretizará.
O resultado disso se observa com o número de infrações: . Quando em 2015 os limites foram reduzidos, transformando parte da velocidade operacional antiga em infração, . Um aumento de 65%. Significa realmente que, de um ano para o outro 1.716.445 motoristas se tornaram imprudentes?
Pior: o aumento do número de infrações foi usado como estatística para relacionar infratores aos acidentes fatais. . Mas você acha realmente que uma pessoa multada por desrespeitar o rodízio de placas é um risco à segurança no trânsito? Alguém que estaciona sem cartão de Zona Azul é uma potencial vítima de acidentes fatais?
Por último, se os limites caem e o número de multas aumenta, como aconteceu em 2015, significa que os limites não estão sendo respeitados — se estivessem não gerariam multas. Se não estão sendo respeitados, significa que o ambiente viário continua com velocidades supostamente perigosas. Nesse caso, como um limite de velocidade não respeitado pode salvar vidas?
Sério demais para ser um slogan
Para encerrar: o objetivo deste post, novamente, não é apresentar provas de que a redução de limites de velocidade não funcionam. O que pretendemos é mostrar que a discussão sobre as causas de mortes no trânsito não pode ser resumida à um slogan. Há uma centena de fatores a ser considerados quando se fala em segurança no trânsito — as Dez Medidas Para Salvar Vidas No Trânsito, publicadas pelo Observatório Nacional de Segurança Viária deixam isso muito claro e propõem mudanças eficazes para reduzir a mortalidade no trânsito.
Os limites de velocidade são apenas uma das ferramentas disponíveis para resolver o problema das mortes no trânsito. Contudo, devem ser aplicados de forma extremamente criteriosa e puramente técnica, sem servir de discurso político de situação e oposição, como vem sendo em todo o país.
O trânsito é um sistema puramente humano, composto por vidas, para usar o termo do momento. E vidas humanas são uma coisa séria demais para ser usada como campanha política.