Na primeira parte desta série, falamos sobre como games com gráficos e sons extremamente realistas, mas com sutis manipulações no engine de simulação – especialmente nos parâmetros de inércia – podem sem querer alimentar vícios perigosos a motoristas e até entusiastas desavisados. Drifting como técnica de velocidade no asfalto, pilotagem irregular no processo de frenagem e passo de curva, reduções de marchas impossíveis para o uso do freio-motor, ausência de volta de aquecimento e cooldown foram os temas que abordamos (leia a primeira parte aqui).
Agora vamos entrar no mundo dos simuladores, que envolve tanto os mais usados recentemente, como rFactor 2, iRacing e Assetto Corsa quanto alguns clássicos, como rFactor, a série GTR, Grand Prix Legends e afins. Esta segunda parte será bem mais sutil em termos críticos – está mais para “os pontos em que os sims ainda precisam melhorar”, ou seja, o título que usamos talvez tenha ficado inadequado, admito (sem hating, por favor). Os simuladores sofreram uma evolução espantosa nos últimos anos, cada vez mais são uma ferramenta poderosa no processo de aperfeiçoamento da pilotagem (leia esta nossa matéria a respeito) e algumas das limitações que mencionaremos são intrínsecas ao fato de eles serem uma representação da realidade.
A história de caras como Jann Mardenborough são um pequeno indício de onde os simuladores podem levar amadores com talento e determinação. Seu acidente em Nürburgring nada teve a ver com suas habilidades (confira a nossa explicação técnica aqui).
Mas todas essas qualidades não significam que os simuladores atingiram a perfeição em representação digital da física real e, acima disso, a transposição do real para o virtual acaba alimentando alguns vícios pouco saudáveis pelas suas próprias limitações. É sobre esses pontos que falaremos aqui.
1) A sujeira do simulador ainda é limpa demais para o mundo real
Como vocês sabem, o trilho de borracha é o melhor indicativo dos pontos de frenagem e do traçado ideal no asfalto seco. Ele é formado pela mescla do material dos próprios pneus à superfície do asfalto e aumenta muito a capacidade dos pneus de gerar aderência longitudinal e lateral. Mas quando você esfrega uma borracha escolar na mesa, por exemplo, duas coisas acontecem: a superfície que você esfregou fica emborrachada, mas há também um resíduo excedente solto – aquele que você assopra da mesa.
Se a parte emborrachada forma o trilho, o material excedente forma o que os pilotos gringos chamam de “marbles” (bolas de gude) e nós brasileiros, de “farofa”. Os apelidos são engraçados, mas são precisos: pistas muito abrasivas e com uso pesado de slicks macios juntam uma enorme quantidade de pedaços de borracha, boa parte com a metade do tamanho de um brigadeiro achatado. O sol resseca esse material, que fica duro. Dependendo do terreno onde está a pista, o vento traz terra e areia, pedaços de mato e pedriscos. O deslocamento aerodinâmico dos veículos tira essa sujeira do traçado, mas tanto as borrachinhas quanto a sujeira natural ficam depostas logo ao lado da racing line.
Quando um carro passa por cima desse material, três coisas acontecem: parte desse material é capturado pelos pneus, parte é catapultada pelos pneus contra o próprio carro (os estalos assustam os marinheiros de primeira viagem) e, principalmente, os pneus deslizam sobre a maior parte dessa farofa. É um fenômeno complexo, porque envolve a interação da área de contato dos pneus com partículas de diversos tamanhos e características. Mas o efeito é simples: o carro desliza. Não como se estivesse num asfalto virgem de emborrachamento (que os gringos chamam de “green”), mas como se passasse sobre bolas de gude.
Isso porque não falamos de outras sujeiras: a brita e a terra que o cara traz pro asfalto quando sai da pista. Fluido de radiador, de freio e óleo de motor, quando depostos sobre o trilho emborrachado, escorregam feito chão de banheiro em processo de limpeza.
O F1 Racing Simulator (1997), foi um dos primeiros a representar graficamente o trilho de borracha. Oito anos depois, o rFactor começou a flertar com a diferença de aderência dentro e fora do trilho, mas bem de leve. Apenas os principais simuladores mais recentes – iRacing, rFactor 2, Project Cars e Asseto Corsa – trabalham com a formação dinâmica deste trilho, que começa suave e vai se intensificando e ganhando aderência conforme as voltas passam. A representação da sujeira na parte gráfica até que está bacana, mas a simulação dela ainda não chegou lá: a sensação transmitida é mais de um trecho de menor aderência do que um local no qual a área de contato dos pneus vai deslizar sobre partículas, sejam arenosas ou de borracha. O modelo físico dos pneus do rFactor 2 inclui a coleta de sujeira, mas ainda precisa de aperfeiçoamentos e parece mais vinculado à saídas da pista do que dos marbles em si.
Tudo isso parece um detalhe. Mas esse detalhe muda radicalmente a relação dos olhos com a pista: no simulador você se sente à vontade para se deslocar para qualquer lado da pista, em qualquer lugar, até arriscando frenagens e ultrapassagens por fora em locais incomuns. Seus olhos ficam apenas focados nas bordas do asfalto e na racing line. No mundo real, você precisa olhar muito mais a superfície onde está navegando.
Update (15/9/2015): a atualização “Dynamic Tracks” do simulador iRacing lançada no dia 3 de setembro dá um grande passo no sentido de aprimorar esta questão. Ela acrescenta uma série de parâmetros variáveis em toda a superfície do asfalto, como temperatura (tanto pela passagem dos veículos no traçado quanto pela posição do sol) e deposição de borracha no asfalto – estamos falando tanto de emborrachamento dinâmico no traçado quanto dos marbles citados neste tópico. Parabéns, iRacing!
2) A simulação no molhado ainda é limitada
Já que estamos falando sobre olhar para a superfície onde estamos andando, eis a principal limitação que nem mesmo os simuladores atuais conseguem cobrir: iRacing e Assetto Corsa deram as costas para a chuva e não quiseram se molhar na briga. O rFactor 2 (acima) fez uma das mais nobres tentativas já realizadas no mundo do sim racing em termos de física e o Project Cars (abaixo) fez o mesmo, mas na parte gráfica. Contudo, no molhado nenhum deles oferece o mesmo nível de realismo em relação ao que trazem na pista seca.
É compreensível – a chuva traz um universo de novas variáveis, pois não se trata só de uma superfície mais fria e com menos aderência (como muitos simuladores por muito tempo a trataram). Uma garoa fina ainda faz compensar ao piloto seguir pelo traçado de pista seca, mas o limite de aderência cai e ultrapassá-lo traz um decaimento de grip muito mais acentuado do que passar do ponto no seco – vira o fio da navalha. A partir de certo ponto de umidade, a racing line e as zebras emborrachadas reagem com a água e formam um verdadeiro sabão. É o ponto no qual os pilotos começam a fazer um traçado paralelo, freando com os quatro pneus fora do trilho e, nas curvas, mantendo os pneus de apoio para fora da linha emborrachada.
E daí a chuva engrossa. A água começa a se acumular em alguns lugares. Em outros há pequenos riachinhos atravessando a pista. Com chuva pesada, há um filme d’água sobre o asfalto – e essa interação entre os pneus e o filme de fluido é extremamente complexa. Em determinadas situações as moléculas do pneu ainda interagem com os poros do asfalto. Em outras, ele interage e desliza. E em situações críticas, esquia apenas sobre o espelho d’água: aquaplanagem.
A bagunça é tão grande que a regra do traçado molhado não envolve teoria fixa: é literalmente “find the grip”, encontre a aderência. Duas curvas iguais na mesma pista podem exigir traçados inacreditavelmente diferentes, por motivos múltiplos como a capacidade de escoamento e a deposição de borracha. É caos demais para um engine de simulador.
O GP de Interlagos de 2003 demonstra bem as limitações dos simuladores com chuva. Observe bem a superfície do asfalto e note a dinâmica agressiva dos descontroles. O rFactor 2, talvez o único simulador que realmente está tentando evoluir neste quesito, já traz a presença de vários fatores: diferentes níveis de umidade, formação de poças, transições do seco para o molhado incluindo trechos parciais do circuito, etc. Mas a forma como a dinâmica no molhado está sendo representada ainda transmite um filtro artificial de asfalto com menor aderência.
De forma geral, nos simuladores é possível fazer o traçado de pista seca sem grandes prejuízos. No mundo real, fazer isso se traduz rapidamente em ver a pista pela contramão: descobrir a racing line no molhado e conseguir se adaptar às diferentes nuances (porque a superfície nunca está igual de uma volta para a outra) é uma das grandes artes da pilotagem.
3) A simulação dos pneus
Por muitos anos a fio, os simuladores principais do mercado usavam um derivado da chamada “fórmula mágica dos pneus” Pacejka, criada pelo holandês Hans B. Pacejka há mais de duas décadas. Trata-se de um modelo empírico, baseado na aproximação entre uma fórmula e uma série de dados coletados (como forças laterais, longitudinais e o torque auto-alinhante) de vários tipos de pneus. Ele funciona muito bem até certo ponto, mas apresenta algumas limitações, especialmente no que se refere ao comportamento dos pneus em velocidades mais baixas e no fornecimento de dados de variações dinâmicas mais sensíveis, como a interação molecular entre o composto do pneu e a porosidade da superfície, a torção dos blocos da banda de rodagem e a flexão da carcaça do pneu – essenciais para a simulação da comunicabilidade do volante.
Os simuladores mais recentes partiram para modelos próprios de física dos pneus, conjugando vários mini-engines de simulação: flexão e vibração da carcaça dos pneus, torção e comportamento da banda de rodagem (slicks e blocos dos modelos sulcados), dinâmica e adesão da área de contato, transferência de calor e alteração de propriedades elásticas e de adesão com a temperatura são alguns dos parâmetros aferidos e simuladores separadamente, e em alguns casos, ainda são complementados por equações, gráficos e variantes do modelo de Pacejka.
Essa talvez tenha sido a principal evolução dos principais simuladores da atualidade em relação a tudo o que veio antes. Quando você usa um simulador mais antigo, como a série GTR ou o rFactor 1, embora a progressão e decaimento do limite de aderência façam sentido, a forma como isso se desenvolve dinamicamente parece mais artificial e dura. A dinâmica dos pneus era um dos grandes responsáveis por tanta diferença entre o mundo real e o simulado – o carro não parecia estar sobre pneus flexíveis, mas sim sobre blocos duros aderentes, e isso criou alguns vícios de pilotagem na transposição do virtual para o real, especialmente nas entradas de curva. Mas essa fronteira está cada vez menor.
Hoje, o grande desafio está no estudo e desenvolvimento do comportamento dos pneus no que o genial desenvolvedor David Kaemmer (responsável por alguns dos maiores títulos da história, como Indianapolis 500, Indycar Racing, a série Nascar Racing e o épico Grand Prix Legends, além do profissional iRacing) chama de “scary zone” da curva do ângulo de deriva, que seria algo entre o pico verde e a linha vermelha do gráfico abaixo. É o momento no qual o pneu começa a deslizar. Ao contrário do modelo empírico de Pacejka, que seria uma espécie de engenharia reversa, Kaemmer está atrás de uma fórmula teórica que possa representar o comportamento do pneu diretamente.
Entre a comunidade dos sim racers não há muito consenso sobre qual o melhor modelo de simulação de pneus: do Assetto Corsa, iRacing ou rFactor 2 – até porque estes dois últimos não estão em suas versões finais. De forma geral, o Assetto Corsa parece o sistema mais comunicativo, junto ao do rFactor 2, ainda que este talvez apresente flexão dos pneus dramática em alguns casos. O iRacing é bastante intolerante no limite de aderência, que é estreito e apresenta um decaimento brusco, mas vale lembrar que esta é uma característica dos slicks de competição.
4) O equipamento virtual é linear demais
Os bólidos do iRacing são veículos de competição homologados. Freios AP Racing, amortecedores Penske, fluidos Motul e radiadores para o câmbio e para o diferencial, motores preparados pela NASA, enfim. Quando você bota o seu preparado de rua num track day – ou mesmo aquele carro de corrida do campeonato regional –, estamos falando de arranjos bem mais humildes. Que podem até ser mais rápidos que o carro de entrada do iRacing, mas que sofrerão de um fenômeno que pega muita gente de calças curtas: decaimento.
O decaimento é uma questão que muitos simuladores ignoram ou o tratam de forma suavizada demais: com exceção dos pneus, no Assetto Corsa, rFactor 2 e Project Cars, por exemplo, os carros de rua ficam praticamente iguais ao longo da sessão, mesmo que você pilote cem voltas seguidas em tocada de treino de classificação.
O mais óbvio é a perda de eficácia dos freios, o famoso fading. Com o excesso de temperatura nos freios, o fluido superaquece e tem a sua viscosidade reduzida, os flexíveis se dilatam, o pedal fica mole e borrachudo e, em casos críticos, desce até o assoalho devido à perda de pressão na linha. As pastilhas também podem sofrer fading e vitrificar, perdendo enormemente seu coeficiente de fricção. O fading geralmente não ocorre de forma linear: em alguns casos, a dianteira perde mais ação, deixando os freios traseiros forte demais por alguns instantes. Nestes casos é comum o piloto perder a traseira e rodar no começo da curva, especialmente em carros de entre-eixos curtos.
Mas há muitas outras coisas que os simuladores não conseguem cobrir: por exemplo, o deslocamento da pastilha (acontece muito nos sistemas flutuantes) após a vibração de uma zebra faz o freio ficar estranho, com pedal mais baixo, dando um falso indício de fading. É por isso que muitos pilotos de turismo dão aquele leve toque nos freios com o pé esquerdo na reta, algumas centenas de metros antes da freada real. Assim a pastilha volta a ficar paralela com o disco e a mordida da pinça fica eficaz. Aliás, a simulação do pedal de freio, do pedal da embreagem e da alavanca de câmbio ainda são os grandes calcanhares de aquiles nos controles dos simuladores, mesmo os mais caros.
O fluido dos amortecedores também superaquece e há redução de viscosidade. Com isso eles perdem carga tanto na compressão quanto no retorno. O óleo do diferencial também pode superaquecer, levando à perda momentânea da capacidade do sistema autoblocante funcionar apropriadamente. Isso sem falar no motor.
O resultado de tudo isso é que, no mundo real, você precisa sempre ficar atento a um monte de coisas, porque o carro está sempre mudando bastante. Especialmente no caso de veículos antigos, sejam eles de rua ou de pista. Aliás, este é outro problema inerente aos simuladores: carros antigos possuem comandos super duros, ergonomicamente são desajeitados e apresentam folgas – principalmente no volante – que os sims não atendem tão bem, ao menos por enquanto.
Bem, é isso, caros amigos. Esta foi uma pequena pincelada nos pontos em que o universo dos simuladores ainda precisam evoluir. Considerando a rampa de progresso em que eles estão seguindo, é bem provável que boa parte deste artigo perca a validade em alguns meses ou anos. Se tem mais alguma coisa que você acha que eles estão devendo, não deixe de escrever na área de comentários!