Recentemente entraram em vigor várias mudanças no Código de Trânsito Brasileiro, e uma delas diz respeito ao prazo de validade da CNH. Antes, eram cinco anos para motoristas com idade até 65 anos, e três anos para motoristas mais velhos. Agora, são dez anos para motoristas com idade inferior a 50 anos; cinco anos para os que tem entre 50 e 70 anos de idade; e três anos para os motoristas com mais de 70 anos de idade. A mudança acompanha uma tendência já vista em países como Austrália, Reino Unido e EUA.
Ainda não é assinante do FlatOut? Considere fazê-lo: além de nos ajudar a manter o site e o nosso canal funcionando, você terá acesso a uma série de matérias exclusivas para assinantes – como , , e muito mais!
A mudança me fez lembrar do meu pai. Ele já tinha seus 40-e-poucos anos quando finalmente comprou seu primeiro carro – um Fusca 1979 com motor 1600 – e tirou a carteira de motorista. Há alguns dias ele completou 66 anos e, sinceramente, não mudou nada desde seu primeiro dia como motorista. O homem está bem conservado e é muito ativo – na verdade, ele deve estar em melhores condições físicas que eu, que sopro menos da metade das velinhas no bolo de aniversário. Talvez o fato de ele ter começado a dirigir relativamente tarde até seja uma das razões para isto: meu pai sempre caminhou e foi de bicicleta para todos os lugares, e mesmo hoje só pega o carro para trajetos mais longos e viagens. E exercícios ajudam o corpo a se manter jovem por mais tempo.
Nos últimos tempos ele tem falado bastante sobre como não tem mais muito tempo como motorista – e diz que seu próximo carro provavelmente será o último. Conhecendo meu pai, porém, consigo imaginá-lo perfeitamente bem para dirigir ainda por mais dez ou quinze anos. E agora, com a nova legislação, ele já não precisa mais renovar a carteira a cada três anos.
Mas o que diz a ciência sobre a relação entre idade avançada e capacidade de dirigir? Quando é que alguém se torna “velho demais” para dirigir?
É possível responder a esta pergunta de forma breve: não há uma idade pré-estabelecida para que se considere alguém velho demais para dirigir. Existem octagenários em sua plena capacidade mental, com boa visão e fisicamente fortes que simplesmente não apresentam nenhum declínio na habilidade de guiar um carro. Ao mesmo tempo, existem pessoas de 60 anos que podem não se sentir confiantes o bastante – em sua visão, em seus reflexos ou mesmo em sua disposição física – para dirigir.
Em última instância, podemos considerar uma escolha pessoal – uma escolha que passa por conceitos de liberdade e independência, mas que também deve levar em consideração questões fisiológicas.
O ato de dirigir envolve, invariavelmente, três funções do corpo humano: a função sensório-perceptiva, a função cognitiva e a função motora. A função sensório-perceptiva é a capacidade de perceber estímulos sensoriais – ao dirigir, falamos de estímulos visuais, auditivos e táteis. A função cognitiva é a capacidade de processar estes estímulos, compreendê-los e saber o que fazer com eles. Por fim, a função motora diz respeito às ações que temos diante destes estímulos.
Um exemplo simples: ver um sinal de trânsito – digamos, uma placa de “PARE” – é uma função cognitiva. Compreender o que aquele sinal em específico significa é uma função cognitiva. E colocar o pé no freio no momento certo, com a intensidade correta, é uma função motora. Qualquer comprometimento grave a uma destas funções pode impedir uma pessoa de dirigir completamente.
É evidente que existem diversos fatores que podem comprometer estas funções. A coordenação motora e a capacidade cognitiva, por exemplo, podem ser comprometidas por um acidente. A função sensório-perceptiva pode ser influenciada por medicamentos de uso controlado. E a idade, claro, pode ser um fator decisivo para qualquer uma destas funções.
Existe, porém, um consenso entre os gerontologistas de que, em grande parte das pessoas, até os 75 anos de idade não existe um declínio natural significativo nestas funções. Ou seja: em um indivíduo saudável, os 75 anos de idade podem ser considerados uma espécie de limite.
Isto não significa que você deve esconder a chave do carro de seu pai ou avô assim que ele fizer 75 anos. Contudo, significa que é bom prestar atenção em alguns sinais que podem indicar a hora de abandonar o volante. Se um idoso se perde com frequência enquanto dirige, começa a deixar de notar a sinalização de trânsito ou começa a ter dificuldades para manobras simples, como estacionar o carro ou guardá-lo na garagem, estes são alguns sinais de alerta. Um motorista idoso que não consegue mais dirigir com a mesma desenvoltura pode colocar a si mesmo e outras pessoas em risco.
Há, porém, outro ponto. Um estudo realizado em 2017 pelo Insurance Institute for Highway Safety (IIHS) nos Estados Unidos determinou que motoristas acima dos 85 anos de idade são os que mais sofrem acidentes fatais – ao lado de motoristas com idade entre 20 e 24 anos de idade. No primeiro grupo, porém, muitas vezes a fatalidade não tem relação com a gravidade do acidente, ou com o fato de o motorista simplesmente ser velho demais para dirigir.
É mais uma questão de fragilidade – pessoas mais idosas são mais frágeis e, consequentemente, mais sujeitas a ferimentos graves ou mesmo a óbito em um acidente de carro. Entre a população mais jovem, as fatalidades têm relação maior com inexperiência e maior predisposição a envolver-se em situações de risco, de acordo com o IIHS.
Estes dados adicionam complexidade à questão – especialmente porque, com carros cada vez mais seguros e cheios de assistências, mais idosos sentem-se à vontade para continuar guiando. Segundo projeções da National Highway Traffic Safety Association (NHTSA), em 2030 um a cada quatro motoristas nos EUA será uma pessoa com mais de 65 anos.
Com os avanços na medicina, tornou-se mais comum ver pessoas mantendo-se ativas, trabalhando e independentes por mais tempo – diz-se até que “os 70 são os novos 50”. As pessoas estão vivendo mais, e com mais qualidade de vida. E, assim, vão dirigir por mais tempo. Como em muitas situações, não se pode generalizar – vale aqui o bom senso.
A propósito: o senhor da imagem que abre este post é John, um entusiasta britânico que ainda dirige sua Ferrari F40 – um dos carros mais selvagens e viscerais já feitos em toda a história – quase diariamente. E não tem intenção alguma de parar.
Ele sequer é o caso mais impressionante. Aqui mesmo no FlatOut já falamos sobre Margaret Dunning, que morreu em maio de 2014 aos 104 anos de idade – e dirigiu regularmente até seus últimos dias. Ou Richard Overton, que nasceu em 1906 (dois anos antes do lançamento do Ford T) e morreu em 2018, com 112 anos de idade – quando ainda dirigia sua picape Ford quase todos os dias.
Na verdade, tudo indica que atividades cognitivas — como, isto mesmo, dirigir — retardam o envelhecimento do cérebro, e podem ajudar a evitar o aparecimento de demência e doenças degenerativas (como o mal de Alzheimer). Ou seja: há boas chances de que, quanto mais você dirige, por mais tempo você tenha condições de continuar dirigindo.