Muitos carros icônicos nasceram de uma mesma ideia: pegar um veículo com um propósito específico e modificá-lo para cumprir outras tarefas. Pegue, por exemplo, o Jeep civil e suas variações como a station wagon conhecida no Brasil como Willys Rural: nascido nos anos 40 como um veículo militar, após a Segunda Guerra ele foi adaptado como veículo civil para ser usado onde não há estradas, como construções, fazendas e afins. Foi um sucesso imediato que se seguiu da consagração, e hoje muita gente considera o Jeep mais do que um veículo, e sim todo um estilo de vida.
Outro exemplo? As Utes australianas – que, conforme contamos neste post, surgiram em 1934 depois que um casal de agricultores enviou uma carta para a Ford, dizendo que precisava de um veículo robusto o bastante para encarar o trabalho na fazenda, mas que fosse confortável o bastante para ir à igreja na cidade. Partindo de um carro de passeio, a Ford colocou nele uma caçamba e criou um segmento idolatrado na Austrália (e fora dela) até hoje.
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Mais ou menos na mesma época, em 1935, uma abordagem semelhante à das Utes foi adotada por uma fabricante de tratores norte-americana, porém no sentido oposto. Um trator modificado que fosse capaz de cumprir todas as funções de um trator comum durante a semana e, aos finais de semana, pudesse rodar normalmente em vias públicas rurais e urbanas.
A fabricante se chamava Minneapolis-Moline, que foi fundada em 1929 pela fusão de três empresas do ramo de máquinas agrícolas – a MSM (Minneapolis Steel & Machinery), a MTM (Minneapolis Threshing Machine) e a Moline Plow.
Até o fim dos anos 30 a Minneapolis-Moline fabricava tratores como todos os outros que existiam na época: veículos extremamente simples, a céu aberto, feitos puramente para o trabalho – rebocar equipamentos agrícolas, realizar serviços de terraplanagem, etc.
Um trator U Series da Minneapolis-Moline
Através de uma pesquisa com proprietários, porém, a fabricante percebeu que havia demanda entre os fazendeiros por um trator com cabine coberta, garantindo proteção e um mínimo de conforto durante o serviço.
A empresa achou, então, que fosse uma boa ideia levar o conceito além: por que simplesmente fazer um trator com cabine coberta? Eles poderiam transformar o trator em um veículo versátil que, além do trabalho na fazenda, pudesse também ser utilizado para ir à cidade, como qualquer carro de passeio. E assim foi feito.
O resultado foi o Minneapolis-Moline UDLX (de U-Deluxe), também conhecido como Comfortractor, feito com base na série U de tratores da fabricante. Como todos os outros tratores da família, o UDLX era movido por um quatro-cilindros a gasolina de 4,6 litros e 46 cv. O câmbio, porém, tinha cinco marchas em vez das quatro marchas dos outros modelos. A quinta marcha deveria ser usada apenas na estrada, e permitia que o trator chegasse aos 65 km/h – velocidade que, na época, era suficiente para torná-lo apropriado para uso em vias públicas.
O ponto mais interessante do Comfortractor, porém, era seu estilo. A Minneapolis-Moline projetou uma carroceria que incluía uma cobertura para o motor, para-lamas integrais e uma cabine fechada, com acesso por uma porta dupla na traseira. Havia faróis, uma luz de freio e para-choque dianteiro cromado.
O interior tinha espaço para duas pessoas (ou três, se todos ficassem meio espremidos), três para-brisas basculantes com limpadores, aquecedor e para-sol para o motorista. O painel de instrumentos era completo, havia um porta-luvas e o espelho retrovisor tinha um relógio embutido.
O estilo do UDLX não era muito diferente do que se via em um carro familiar da época, embora tivesse as proporções de qualquer outro trator. Embora não seja uma visão usual, o Comfortractor era bonito para um trator e foi bem recebido pelos cerca de 12.000 fazendeiros que foram convidados para a apresentação oficial, em 1938.
Acontece que o Comfortractor não foi o sucesso que a Minneapolis-Moline previa – bem o contrário, na verdade. A carroceria e a cabine fechada eram montados sobre um trator U-Series como qualquer outro, o que significa que ele não tinha nenhum tipo de suspensão – chamar o rodar de “confortável” era certo exagero. Além disso, o motor criado para uso em baixas rotações, priorizando o torque, vibrava muito em quinta marcha – e ainda fazia muito barulho. Sem falar que a cabine, montada em posição relativamente baixa, sofria com falta de espaço por conta do câmbio e do eixo traseiro, que invadiam seu interior. Por fim, os freios eram a tambor, com 40 cm de diâmetro, apenas nas rodas traseiras – pouco eficientes na hora de parar um trator de 2.900 kg a mais de 60 km/h.
O outro pecado do UDLX Comfortractor era o preço. Há 80 anos um dos tratores básicos da Minneapolis-Moline custava US$ 1.000 (cerca de US$ 17.000 em valores atualizados), enquanto o Comfortractor custava quase o dobro – US$ 1.900 (US$ 34.000 em 2018). Naquela época um carro de passeio básico, como o Ford Tudor Model A ou um Chevrolet Standard – carros de verdade, com quatro lugares, suspensão, rádio e espaço para bagagem – custavam cerca de US$ 750 (por volta de US$ 13.000 hoje em dia). É só fazer as contas: comprando um trator normal e um carro, economizava-se uns US$ 150 (o equivalente a cerca de US$ 1.800 em 2018) por dois veículos, sem as desvantagens inerentes ao projeto do Comfortractor.
Como resultado, o Minneapolis-Moline UDLX foi um fracasso – foram fabricados entre 125 e 150 exemplares de maio a novembro de 1938 (algumas fontes afirmam que a produção foi até 1941), com apenas 100 deles vendidos. Os exemplares restantes foram convertidos e colocados à venda como tratores comuns da Série U. Estima-se que sobraram 80 exemplares espalhados pelos EUA, sendo que menos de 30 deles estão em boas condições, restaurados ou funcionando.
Como começamos dizendo neste post, eis um caso de adaptação que sofreu com a execução e com o momento. Quando mencionamos os Estados Unidos nos anos 1930, estamos falando de um país ainda se recuperando de uma das mais graves recessões de sua história – não era o cenário ideal para vender um trator “de luxo” custando o dobro de um trator comum.
Por outro lado, décadas depois, os tratores com cabines fechadas e itens como ar-condicionado e rádio começaram a surgir – hoje eles são a regra do mercado, e não a exceção. O Comfortractor veio na hora errada e com a proposta errada.
Contudo, seu reconhecimento veio – oito décadas depois. Hoje em dia os exemplares que restaram são altamente cobiçados por colecionadores do ramo, que chegam a pagar mais de US$ 200.000 em leilões.