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Automobilismo

Como a Ferrari voltou a vencer em Le Mans depois de 58 anos

Deu certo. A mudança no regulamento que inventou os Hypercars no endurance atingiu seu objetivo neste último final de semana, durante a 24 Horas de Le Mans. É claro que não estou dizendo que o objetivo do regulamento era fazer a Ferrari ganhar alguma coisa, mas trazer competitividade à principal categoria de Le Mans. Desde 2017, quando somente Porsche e Toyota sobraram no grid da antiga LMP1, os resultados começaram a ficar previsíveis e a competitividade despencou.

Naquele primeiro ano, por exemplo, houve a possibilidade real de um carro da LMP2 vencer a prova — o Oreca-Gibson da Jackie Chan DC Racing, que terminou a apenas uma volta do Porsche 919 da LMP1. Le Mans ficou a um incidente simples de ser vencida por um carro de categoria inferior. Depois disso, quando a Porsche abandonou a categoria, restou apenas a toda-poderosa Toyota contra equipes menores, independentes, sempre correndo com carros da LMP2 modificados para LMP1. Com desempenho superior, a Toyota só precisou ser cautelosa para garantir uma sequência de cinco vitórias entre 2018 e 2022.

Mas… a chegada dos novos Hypercars e a unificação com o regulamento da IMSA trouxe uma onda de fabricantes para o grid de 2023 — e teremos ainda mais em 2024, com a entrada da BMW, da Lamborghini e da Alpine na categoria. A pandemia — sempre ela — atrapalhou o cronograma das equipes e, por isso, 2023 foi a primeira edição com todas as “novatas”, caso da Ferrari, Cadillac, Porsche e Peugeot.

Apesar das novidades, a Toyota, claro, era a favorita. Afinal, ela venceu as cinco edições anteriores, correndo contra rivais mais fracos, é verdade, mas ela também havia vencido as três primeiras etapas do Mundial contra Ferrari, Cadillac, Porsche e Peugeot. E embora todas estas já tenham vencido provas de 24 Horas relevantes, a Toyota era a única a ter feito isso há menos de cinco anos e com um hipercarro de Le Mans (LMh).

Além da Toyota, a Porsche também era a favorita. Mesmo depois de cinco anos. Foi assim em 2014 — eles voltaram depois de mais de 10 anos fora de Le Mans e venceram de cara. Se existe uma fabricante que sabe como ganhar Le Mans, esta fabricante é a Porsche.

A Peugeot, apesar das piadas do público brasileiro sobre a confiabilidade dos carros, não ficava muito atrás no favoritismo. Eles foram a primeira equipe a quebrar a hegemonia da Audi em Le Mans (a outra foi a própria Porsche) e àquela altura já haviam vencido em 1992 e 1993 com o lendário 905.

A Cadillac e a Ferrari, por outro lado, eram imprevisíveis. A Cadillac dominou Daytona entre 2017 e 2020, mas desde então perdeu o reinado para a Honda/Acura. Além disso, ela nunca teve sorte nas poucas vezes em que foi a Le Mans. Já a Ferrari… bem…. o que dizer?

Ela não vencia uma edição de Le Mans desde 1965, no ano anterior à sequência de quatro vitórias que colocaram a Ford no topo do mundo na época — um feito tão impressionante que se tornou o melhor filme de automobilismo de todos os tempos, especialmente se você interpretá-lo do jeito certo. Como se não bastasse, a a Scuderia vai mal na Fórmula 1, com erros em série que já tiraram do sério até o introvertido e paciente Charles Leclerc. Qual a possibilidade de eles, de repente, vencerem Le Mans logo de cara?

A última Ferrari que havia vencido as 24 Horas de Le Mans antes da 499P

Bem… é importante observar melhor o contexto do negócio. Primeiro, a investida em Le Mans não foi executada pela Scuderia Ferrari como conhecemos, e sim por seu braço do endurance AF Corse, a equipe representante da Ferrari. Não pense que isso diminui o feito — em 1965 também não foi a Scuderia Ferrari quem venceu, mas a North American Racing Team, a lendária NART de Luigi Chinetti. A AF Corse já conquistou quatro vitórias de classe em Le Mans na GTE Pro e uma outra vez na GTE Am. Considerando o know how da turma de Amato Ferrari (o AF da equipe, sem relação com Enzo e sua família) e o momento da Scuderia na F1, evidentemente foi a melhor decisão colocar a 499P sob seus cuidados.

Como mencionei anteriormente, a Toyota venceu as três primeiras etapas do Mundial, mas adivinhe quem estava ao lado deles no pódio em todas estas três etapas? Sim, a Ferrari/AF Corse. Na estreia da temporada, em Sebring, a Toyota fez uma dobradinha, mas a Ferrari pegou o último degrau. Depois, em Portimão, a Ferrari terminou em segundo, à frente da Porsche. Em Spa vimos outra dobradinha da Toyota, mas a Ferrari, novamente, se meteu na beirada do pódio e beliscou seus pontos.

Em Le Mans os italianos começaram na frente: fizeram os dois melhores tempos na classificação e largaram na frente. Mas… como dizem por aí, para terminar em primeiro, primeiro você tem que terminar.

 

A corrida

O desempenho equilibrado dos LMh somado às chuvas durante a corrida tornaram esta uma das edições mais agitadas e imprevisíveis dos últimos tempos. Toyota, Ferrari, Peugeot e Porsche lideraram a prova e todos os competidores da classe tiveram incidentes durante a corrida.

As duas Ferrari mantiveram a liderança após a largada, enquanto o Porsche 75 de Felipe Nasr se envolveu em um acidente com o Toyota 8 de Sébastien Buemi. Apesar da pancada, o francês conseguiu recuperar o tempo e passou a perseguir as Ferrari, chegando a ultrapassar a segunda colocada (51) para disputar a liderança com Nicklas Nielsen na Ferrari 50. Foi quando o safety car entrou em cena para se limpar a bagunça causada por um acidente da Cadillac na chicane Daytona (ah… a ironia).

Na relargada o clima continuou intensamente quente entre as duas Ferrari e o Toyota 7 que permitiu que o restante dos LMh se aproximassem dos ponteiros. As Ferrari acabaram passando o Toyota, que também acabou ultrapassado pelo Porsche 75 de Nasr. Por volta da terceira hora, dois acidentes com carros da LMP2 bagunçaram a pista novamente e, apesar da bandeira amarela, quando a começou a cair sobre o circuito, o safety car foi acionado mais uma vez. À medida em que a chuva abrandou, as equipes entraram para trocar os pneus e o Peugeot 9×8 94 de Gustavo Menezes assumiu a ponta, apresentando melhor desempenho sob o frio do início da noite francesa já na quarta hora da prova.

Pouco depois da relargada, o Porsche 38 passou Menezes para assumir a liderança e… bater nas curvas Porsche (ah… a ironia mais uma vez). DepoisCom o circuito todo sob bandeira amarela, a chuva voltou a cair em Le Mans e os carros entraram novamente para trocar os pneus. O Peugeot 94 acabou ultrapassado pela Ferrari 51, que recuperou a dianteira depois de quase cinco horas de prova. Em terceiro, vinha o Toyota 7. Ainda no início da noite, o Porsche 75 teve problemas mecânicos na Tertre Rouge e abandonou a corrida.

Parecia haver alguma maldição sobre os líderes parciais durante a prova. Pier Guidi, ao volante da Ferrari 51 também rodou na liderança e, apesar de não ter danificado o carro, ele acabou perdendo a posição para o Toyota 7 que vinha logo atrás. Ao assumir a ponta, o Toyota 7 — adivinhem só… — entrou de gaiato em um engavetamento: uma Ferrari 488 da GTE Am tocou o Toyota 7, que tocou o Graff de Giedo van der Garde (LMP2).

Nessa bagunça, o Alpine 35 acabou batendo no Toyota 7 que foi extensamente danificado, abandonando a prova. Com o acidente, o Peugeot 94 assumiu a dianteira de novo, e o safety car foi acionado pela terceira vez. Na relargada, o Toyota 8 deu o bote no Peugeot 94, que também acabou ultrapassado pela Ferrari 51.

Pouco depois, Menezes perdeu o controle do Peugeot e bateu nas barreiras de proteção. Apesar de conseguir levar o carro até os boxes, não havia mais chance de brigar pela vitória — ele terminou a prova 30 voltas atrás dos líderes.

À medida em que a madrugada avançava, estava claro que a briga pela vitória ficaria entre a Ferrari 51 e o Toyota 8, uma vez que a Ferrari 50 e o Porsche 5 perderam tempo demais em reparos nos boxes. O Toyota mantinha a liderança, mas com a Ferrari em sua cola. Ao entrar para troca de pneus, o Toyota perdeu a liderança para a Ferrari, que amanheceu na dianteira.

Por volta da 18ª hora de corrida é que o negócio ficou quente de verdade: Ferrari e Toyota entraram juntos nos boxes, mas a Ferrari (pra variar…) teve problemas ao parar o carro e o Toyota com Buemi saiu na frente para recuperar a posição. Pier Guidi, na Ferrari conseguiu alcançá-lo e, na entrada da chicane Michelin, passou o francês. Enquanto isso, o Cadillac número 2 se mantinha em uma surpreendente terceira posição.

Já durante a manhã Buemi entregou a direção a Ryo Hirakawa, enquanto Pier Guidi entregou o carro a Antonio Giovinazzi. Precisando manter-se próximo à Ferrari, Hirakawa apertou o ritmo e, sob pressão, acabou rodando e saindo da pista, danificando o carro. Os reparos fizeram o Toyota ficar três minutos atrás da Ferrari, mas… a corrida só acaba quando termina, como já diz a sabedoria popular.

Tanto que, na última troca de pilotos, o pessoal da AF Corse novamente se atrapalhou e assustou a torcida. Apesar da demora, a Ferrari 51 conseguiu voltar na dianteira para receber a bandeira quadriculada pela primeira vez em 58 anos. A Toyota acabou diminuindo a diferença de três minutos para 1:21,8, enquanto o Cadillac número 2 cruzou a linha de chegada com uma volta de diferença, ao lado do Cadillac número 3 (+2 voltas) e do 311 (+18 voltas).

 

 

O carro

Para as 24 Horas de Le Mans, o Automobile Club de l’Ouest adicionou lastros aos LMh, uma medida que surpreendeu as equipes pois havia um compromisso público de não se mexer no Balanço de Performance (BoP) nas quatro primeiras corridas do Mundial de Endurance (WEC). Com isso, as Ferrari usaram lastros de 27 kg, enquanto os Toyota tiveram o peso aumentado em 37 kg, os Porsche em 11 kg e os Cadillac em 3 kg a fim de equilibrar o desempenho dos carros.

A Toyota foi a equipe que se mostrou mais incomodada durante os treinos e a classificação. Nas entrevistas, os pilotos declararam que precisaram “trabalhar muito para alcançar Ferrari e Porsche” e que as duas equipes tinham “muita velocidade”. O desempenho dos Toyota durante a prova e a troca de líderes, contudo, mostrou que o BoP foi acertado pois trouxe o desejado equilíbrio proposto pelo nome (sabe-se lá por que “Balance of Performance” foi traduzido como “Balanço de Performance” e não “Equilíbrio de Desempenho”).

Quanto aos aspectos técnicos dos carros, a Ferrari 499P usa um motor V6 surpreendentemente mundano. Como o regulamento dos hypercars visa reduzir o orçamento para tornar a categoria mais atraente às fabricantes, a potência é limitada a 500 kW (670 cv). A Ferrari usou como base para o powertrain híbrido do seu protótipo, o motor F163, que é o V6 de 120 graus e três litros usado na Ferrari 296 GTB/GTS — sim, um motor de rua.

A diferença aqui é que ele foi modificado para o uso em Le Mans, claro, e também para se tornar um componente estrutural do carro, em vez de ser instalado em um subchassi, como nas 296. O sistema elétrico, contudo, é completamente diferente, pois a 499P é o primeiro carro de corrida da Ferrari a usar tração nas quatro rodas, visto que as rodas dianteiras são movidas também por um motor elétrico que, nas frenagens, atua como gerador/recuperador de energia, e é capaz de fornecer até 272 cv acima de 120 km/h— seguindo o regulamento dos LMh.