Olhando para trás nos meus quase 30 anos trabalhando como engenheiro automobilístico, posso ver claramente onde está meu melhor momento. Não foi uma promoção, aumento de salário, nem nenhum prêmio. Esses existiram claro, mas não significam nada hoje. Bem como estagnação, isolamento, e exílio profissional que também aconteceram; todo mundo que só conta seus sucessos está omitindo alguma coisa. Normalmente, muita coisa.
Não, um engenheiro se orgulha não por sucesso financeiro ou hierárquico. Engenheiro se motiva por ter criado algo a partir do nada, e, se tiver sorte, algo pelo que se possa orgulhar. A maioria das coisas que criei não valem o espaço em disco rígido que ocupam, não tenho pudor nenhum em dizer. Mas eu sinceramente me orgulho de um projeto de caminhão leve que participei no meio dos anos 2000. Era responsável por toda cabine e acabamento, de cabo a rabo, de painel de instrumentos e bancos até cabine bruta e pintura. Um trabalho hercúleo, imenso, desgastante, frustrante, mas um dos poucos de que me orgulho como um todo. E sei exatamente porque: meus chefes me deixaram livre para fazê-lo, com muito pouca supervisão. Errei um bocado e acertei um bocado; mas todos os dois por minha culpa apenas. Não há melhor maneira de se trabalhar. Tenho orgulho em tudo naquele caminhãozinho, o que ficou bom e o que ficou ruim, porque fui eu que fiz, sem desculpas. Sempre que vejo um nas ruas rodando, me lembro do projeto com carinho.
Ao acabar o projeto, a empresa descobre que todos os seus produtos, sem exceção, têm custo muito alto. Custo de peça mesmo, do que vai no carro. Você pensaria “ué, mas como assim descobriu? não sabia antes?” Esteja certo que nós fizemos isso… Mas enfim, como sempre a liderança é dramática: chama toda a administração da empresa num auditório e diz que tudo para até resolvermos isso. Uma clausura, todo mundo trancado para resolver isso! “Clausura” era algum método da moda para resolver problemas então.
Eu trabalhava com chassi de ônibus então, e fui designado a representar a engenharia num dos grupos de trabalho, referente a um modelo específico de ônibus. Mas claro que não demora para ser chamado ao grupo do tal caminhãozinho, para explicar cada escolha minha naquele projeto. Uma delícia, vocês podem imaginar. “Engenheiro de obra pronta” não é ficção, e é uma raça deveras irritante.
Mas conto tudo isso para chegar num item específico: o para-choque. Quando o chefe daquele grupo de redução de custo me chama, quer saber todos os requisitos que aquele para-choque tem que atender. Era caro e complexo demais como estava, e com carta branca dos chefes, ia reprojetar tudo. Tinha feito um enorme quadro onde as funções do para-choque estavam listadas, e as várias maneiras de atender ditas funções em seguida. Queria que ajudasse a revisar. Olhei a grande tabela projetada na tela e aquele monte de gente na mesa revendo desenhos e números e disse: fácil, não há nenhuma função. Só aparência: foi desenhado assim, e tem que estar sempre alinhado à cabine, constantemente, na produção. Só isso.
Podem imaginar o bafafá que se seguiu… mas era a mais pura verdade. Sim, precisava ter uma certa altura máxima do solo, mas era algo impossível de não se atender, mesmo em pesados altos. Nem uma norma sequer, nem teste simples de impacto. Um para-choque que não foi projetado para parar choque algum.
Claro que eu e meu estagiário testamos batidas de leve (e algumas não tão de leve), mas somente porque queríamos ver como se comportava em uso normal, e estávamos interessados em fazer um bom trabalho. Mas, se não existe norma para se atender, estes meus testes oficialmente não existem, nem podem ser considerados. Debaixo dos panos mesmo, sem registro. Pecado até. Porque a regra é: se você conhece um problema tem que resolvê-lo; melhor não saber deles se você não precisa saber. Não teste nada fora do requisito oficial. Horrível, sim, mas é assim que a banda toca.
Conto essa história para provar que normas e regras não são necessárias para se fazer um carro. Antes não existiam, e ainda assim tinha para-choque, bancos, freios eficientes, volante no lugar certo, motor legal. Existe vida além de regras governamentais; não saímos nos matando uns aos outros, só porque o governo não criou legislação no assunto.
No fim aquele pessoal infelizmente não conseguiu mudar meu para-choque, apesar de ser caríssimo, e de gastarem muito tempo e esforço naquilo: o suporte tubular parrudo que fiz fazia parte do método de alinhá-lo à cabine, e o diretor de qualidade impediu que mudassem. Era o primeiro para-choque que não pedia ajuste de montagem naquela fábrica, montava já alinhadinho. Claro que secretamente fiquei feliz com o fracasso deles: caro ou não era um trabalho bem feito.
Funcionava bem porque eu me importei que ficasse bom, e tive liberdade para fazê-lo. Sem norma ou lei a atender. Coisa que infelizmente não existe mais. Ninguém mais confia em ninguém: gente pensante foi substituída por métodos e regras.
Projetando conforme a lei
Nos primeiros setenta anos da história do automóvel, praticamente não existia legislação para eles. No começo nem lado onde colocar a direção era normalizado; carros com direção à direita ou esquerda conviviam. Claro que rapidamente uma série de normas básicas apareceram, e cada país escolheu um lado do carro para por a direção, por exemplo.
Apareceu muito cedo outra coisa que influenciaria sobremaneira o automóvel: imposto. Os governos, claro, não perderam tempo em taxar a novidade de todas as formas possíveis, e criar registros, licenças para conduzir, e mais um sem fim de papéis e burocracia que aumentam seu tamanho, poder e dinheiro, e criam uma sensação de controle e regra para a parcela da população que não pode viver sem ela.
Um exemplo inicial de influência estatal no automóvel está na potência fiscal inglesa. Criado pelo Royal Automobile Club a pedido do governo inglês em 1910, para dar um parâmetro crescente de imposto para carros mais potentes. Determinava que um carro de 7CV fiscais pagasse £7,00 por ano, e assim por diante. Mas a fórmula para calcular a tal potência fiscal era incrivelmente idiota vista de hoje: levava apenas em conta o diâmetro dos pistões e o número de cilindros. Por décadas, carros ingleses tiveram curso de pistão exagerado para compensar o diâmetro baixo necessário para baixa taxa anual. Por causa disso, e carro estrangeiros mais bem-projetados, com o diâmetro maior de pistões, não vendiam bem na ilha. E exportar era difícil.
Os franceses também usavam potência fiscal, mas sua fórmula era um pouco mais inteligente e levava em conta, inicialmente, diâmetro e curso, número de cilindros e rotação máxima. Ambos duraram bastante e influenciaram decisivamente o desenho dos motores e carros de seus países: Inglaterra até 1947, e França até 1998.
Parece idiota e é. Mas o que dizer do arbitrário controle de deslocamento? Mesmo aqui e hoje existem motores 1.0 turbo mais caros que um 2.0 aspirado de potência semelhante, sua existência justificada por legislação que cobra menos imposto. Este tipo de legislação baseado em deslocamento é extremamente comum, apesar de tão arbitrário e ultrapassado quanto as tais potências fiscais eram no passado.
Em muitos lugares é substituído, hoje em dia, por normas de emissão e consumo: faz mais sentido, mas são terríveis para validar, fazendo processos caríssimos, com centenas de protótipos e testes, e um custo exorbitante. Mais ainda depois da Sra. Volks Wagen fazer o favor de roubar nos resultados declarados, criando uma crise de confiança que exige cada vez mais testes testemunhados. Como sempre, não importa que você sempre tenha sido honesto: outro cara não foi então você pagará também. Como consequência, menos variedade de carros diferentes, e carros mais caros. E câmbio automático: hoje é o melhor jeito de acertar objetivos de emissão e consumo.
Já parou para reparar como todos os V8 biturbo alemães modernos todos deslocam 4 litros? Como quase todo quatro-cilindros turbo deles é de dois litros? Sem alguma regra para fixar isso, imagina-se que alguma variação aconteceria. Porque não 4.1 litros por exemplo? Os fabricantes modernos nos dizem que essa invasão turbinada foi criada para atender níveis de emissões cada vez mais restritivos na Europa. Pode ser verdade, claro. Mas é difícil de imaginar que um mercado como o europeu ditasse esse tipo de coisa para vendas no resto do mundo.
Acho mais fácil olhar mais para o oriente. O maior mercado do mundo hoje é a China, e lá existe uma tabela crescente de imposto para carros novos baseado em deslocamento, começando com 16,7% para os motores até um litro, e daí em diante em faixas até 1.5, 2.0, 2.5, 3.0, 4.0 e por fim acima de quatro litros. Assim, um V8 de quatro litros paga 38,1%, mas um de 4,1 litro paga 51,1% de imposto embutido no preço de venda, na China. Explica muita coisa.
E se pensarmos bem, chineses sempre preferiram sedãs às peruas, e gostam muito de SUV e grades enormes cromadas. Também são um país que coletivamente não sabe usar câmbio manual, e tem raiva de quem sabe. O imposto para carros elétricos lá? Zero porcento. Não acredito em coincidência aqui: parece que estão nos empurrando o que o maior mercado mundial quer, e se você não gostou… que se lasque.
Quero sobreviver, sempre
Antes de 1968 aproximadamente, existiam pouquíssimas normas externas, impostas por governos, que regiam como um carro deveria ser. Nos anos 1970 vieram de repente, principalmente nos EUA, então de longe o maior mercado mundial. Carros esporte ingleses como o MGB viraram uma caricatura, primeiro com para-choques pretos de plástico gigantes e horríveis, e com suspensão mais alta: os faróis tinham agora que ter certa altura do solo, e impossibilitados de alterar a carroceria, os ingleses simplesmente subiram o carro todo… Ao fim dos anos 1970 a maioria das marcas europeias desistia do mercado americano.
Até aquele ponto, ninguém realmente achava alguma legislação necessária, mesmo com os apavorantes números de morte no trânsito de então, proporcionalmente à quilometragem total da população. É uma diferença basicamente de atitude: antigamente se achava que se alguém morria num acidente, ou era um infortúnio do acaso inevitável, ou alguém tinha feito algo errado. Nunca o carro era culpado de nada. Lógico: carro faz somente o que mandamos ele fazer.
Culpar pessoas quando existe uma corporação sem face envolvida, mesmo que tangencialmente, hoje é um absurdo! Obviamente a corporação, com seus milhões, sua ganância e falta de coração, podia ter feito mais! E assim, num espaço de apenas alguns anos, a culpa muda de lugar. O automóvel deve proteger seus ocupantes completamente, mesmo que o motorista não tenha habilidade suficiente para conduzir um trenzinho de brinquedo, quiçá um leviatã de duas toneladas a mais de 100 km/h.
Se me achou cínico demais nesta afirmação, me desculpe. Legislações e pressões externas para aumento de segurança passiva serviram seu propósito no passado, e ajudaram muito a diminuir as mortes no trânsito. Elas em si não são maléficas. São ótimas, como já disse algumas vezes. Maléfica é a cultura litigiosa moderna, que fez aparecer estas legislações, e entidades que continuam a agir hoje como se o carro de 2020 tivesse algo a ver com o de 1970 em termos de segurança passiva. E que acredita ir além: em direção autônoma, em tirar realmente qualquer responsabilidade do piloto, e jogá-la nas corporações. Porque, de novo, desculpe o cinismo aqui, há mais dinheiro assim.
Dinheiro para entidades independentes de testes, dinheiro para burocratas e pesquisadores governamentais, dinheiro para pesquisa em autonomia, dinheiro para os advogados. Ah, os advogados. Já ouvi um advogado de litígio americano falando sobre autônomos: não vejo a hora de chegar. Todo acidente é culpa de uma corporação, e uma corporação é bem mais fácil ser separada de seus milhões que um cidadão normal. Se essa cultura cria carros mais burocráticos, mais chatos, mais caros, é culpa deles de novo. Mas na verdade adivinha quem está pagando esta conta… Achou o carro moderno muito caro? Pois é.
Este movimento não nasceu com a ideia de diminuir morte no trânsito, apesar de declarar isso. Se tivesse nascido, veria que há muito conseguiu o objetivo, e que pedir mais é gastar esforço demais para ganhar muito pouco no final. Quando se obriga usar cinto, mortes caem pela metade; hoje fazer normas extremamente mais exigentes do que as atuais, vai ter ganho pífio.
Não, este movimento de direito dos consumidores americanos nasceu com advogados e pessoas que queriam maneiras novas e criativas de distribuir a renda do mundo. Eles têm, eu não. Serviu seu propósito pelo menos, melhorando a segurança veicular, mas agora devia sumir. Mas institucionalizada como está, é uma coisa difícil de acontecer.
O resultado todos sabemos. Num mesmo dia de novembro do ano passado, eu e três amigos andamos metade do dia numa BMW 325i 1995, e a outra metade num 320i zero-km. Atrás o carro mais novo tinha um pouco mais de espaço para as pernas, mas no geral, eram dois carros equivalentes em espaço interno. Mas o carro novo era muito maior, parecendo algo de categoria superior, um Série 5 talvez.
A tendência de aumento “para-fora” é clara e vem desde os anos 1990, quando apareceram os primeiros carros realmente seguros em acidentes. Mantém-se o pacote interno, mas as soleiras, as colunas, o carro inteiro cresce para fora, para dar mais espaço para proteção em caso de acidente. Para atender normas modernas de segurança passiva, como por exemplo impacto lateral em poste, é necessário criar mais espaço entre o ocupante e o poste, o que faz o carro crescer de novo. A cada par de anos, algo novo aparece para jogar-nos cada vez mais para o centro do carro.
Reparou como também os capôs parecem mais altos em relação a abertura de roda? Alguns carros dos anos 1990 ainda tinham para-lamas que acabavam praticamente na parte mais alta das rodas dianteiras, e eram elegantes, baixos, lindos. Hoje esqueça; a única maneira de atender algumas legislações de proteção à pedestre é mantendo uma distância grande entre o flexível capô e o rígido e mortal motor lá embaixo. A ideia é que o capô absorva a energia da cabeça do atropelado, protegendo-o da morte. É um pouco por isso que os fabricantes e designers preferem fazer SUV: fica mais proporcional com capô alto, e rodas grandes mascaram o capô exageradamente alto, contendo apenas vento, com o motor lá embaixo.
Me permitam um inevitável pensamento mórbido: observando a dinâmica do movimento deste atropelamento, é fácil ver que a pancada na cabeça será protegida, ok, e o coitado sobreviverá. Mas não seus joelhos, com certeza, e talvez a coluna também. Isso se depois não cair no chão em frente a um ônibus dirigido por um sonâmbulo. A ideia da proteção completa pode ser atraente para muitos, mas infelizmente é uma coisa que não existe.
Vivemos num mundo hoje onde as pessoas adoram regras, acham muita coisa “um absurdo”, e raramente aceitam os reveses da vida com resignação. Todos são litigiosos, brigam, não querem sair por baixo nunca. Eu dirijo bem, mas os outros, os outros! Tem que ter uma forma de controlá-los! Temos que ser protegidos desses maníacos!
Ninguém confia em ninguém, e pede cada vez mais norma e burocracia para tudo. As duas últimas duas vezes que vendi meus carros, os compradores estranhavam como os tratei. Como pessoas honestas que nunca tentariam me enganar; segundo eles não é o normal.
Um mundo onde ninguém confia em ninguém, ninguém enfrenta possibilidade real de morte ou revés financeiro com coragem e resignação, e todos clamam por mais regra, governo e burocracia para impedir que qualquer coisa de errado aconteça consigo, não pode ser um mundo bom de se viver. Se nada acontecer contigo, bem… NADA vai acontecer contigo.
Eu prefiro confiar nas pessoas, e estou feliz em dizer que elas nunca me decepcionaram. Se proteger demais só gera mais desconfiança e mais loucura, numa bola de neve que nunca atinge seus objetivos finais. Pense nisso na próxima vez que reclamar que agora só existem paquidérmicos SUV automáticos para comprar. Carros desenhados por burocratas e políticos são horríveis mesmo, gente. E pode ser que a gente, sem maldade ou intenção, tenha contribuído para que eles se tornassem assim.