Se há algo que você deve ter em mente quando se fala de carros e mecânica é que nem tudo é o que parece Swap de motores, por exemplo, é algo que parece simples: você tira o motor original, procura um motor novo que sirva no câmbio — ou um câmbio que sirva no carro e no motor novo, junta os dois, adapta os suportes e pronto. Então eu te pergunto: e os cabos/varões do câmbio? As semi-árvores de transmissão? A ponta do eixo piloto? Tudo é compatível?
Outro exemplo: a BMW usa o mesmo motor 2.0 turbo para o 320i e para o 328i da geração passada. Para muitos, basta reprogramar a ECU para modificar a pressão de trabalho do turbo, controlada por uma válvula eletrônica. Até funciona, mas quando você consulta a ficha técnica e o manual técnico dos dois carros repara que há pequenas diferenças entre os dois motores.
O inferno está nos detalhes: mesmo motores aparentemente idênticos como o Zetec Rocam 1.6 do Fiesta e o Zetec Rocam 1.6 da Courier têm suas diferenças que podem complicar seu trabalho ou mesmo inviabilizar aquele reparo rápido que você queria fazer no sábado de manhã.
Quando a Porsche lançou as versões de topo da linha 718 — o Boxster Spyder e o Cayman GT4 — muita gente imaginou que aquele 4.0 aspirado se tratava de uma versão amansada do 4.0 oferecido no 911 GT3 e no 911 T. A Porsche fez questão de salientar que não era isso. Ela nem poderia, na verdade.
O Cayman GT4, ainda que seja um modelo de topo, é o modelo de topo de uma linha inferior à do 911. Dar a ele o motor do GT3, ainda que amansado, reduziria o valor agregado do 911 GT3 e seus derivados, o GT3 Touring e o 911 T. A questão é literalmente esta: “Por que pagar mais caro pelo 911 se você pode ter o mesmo motor e a mesma relação peso/potência no Cayman por menos dinheiro?”
É bem provável que o flat-4 de 2,5 litros do 718 GTS tivesse alguma margem de desenvolvimento para produzir os mesmos 400 cv do flat-6 de quatro litros — a preparadora alemã Techart fez isso com o quatro-cilindros. O problema é que o modelo anterior usava uma derivação do flat-6 da Porsche GT, e instalar um flat-4 bombado teria cara, cheiro e, principalmente, ronco de downgrade.
Diante deste impasse, a Porsche usou a boa e velha criatividade: pegou o 3.0 biturbo do 911 Carrera, tirou os turbos, aumentou o deslocamento e resolveu a questão.
Mas… como disse lá no começo do texto, as cosias não foram assim tão simples.
O motor flat-6 3.0 turbo foi desenvolvido para produzir entre 370 e 500 cv e atender os níveis de emissões e as metas de consumo exigidas pelas legislações mundo afora. E ele substituiu um flat-6 de 3,8 litros justamente porque o 3.8 aspirado não atendia os padrões de consumo e emissões desta nova década. A conversão em um motor aspirado foi um pouco mais extensa, portanto.
O primeiro passo foi adotar um sistema de desativação de cilindros em rotações mais baixas, entre 1.600 rpm 3.000 rpm, ou quando a demanda de torque é inferior a 10 kgfm, cada bancada de cilindros é desativada alternadamente a cada 20 segundos. Isso mantém os catalisadores aquecidos, algo crucial para reduzir o nível de emissões.
Depois, o flat-6 do 718 não usa válvulas injetoras operadas por solenóides como em sua versão biturbo do 911. Em vez disso a atuação dos bicos é piezoelétrica. No caso dos solenóides, a atuação é feita por um pulso elétrico que gera um campo magnético que abre e fecha a válvula injetora (vou usar o jargão “bico” daqui em diante, ok?). Os bicos piezoelétricos substituem os solenóides por uma pilha de cristais que se expandem quando estimulados por uma corrente elétrica.
Eles são significativamente mais caros que os bicos solenóides, mas têm uma resposta mais rápida aos pulsos elétricos, permitindo que o tempo de injeção seja controlado com mais precisão. Com isso, em vez de controlar apenas o momento do pulso e o tempo de abertura de cada válvula, ele é capaz de fazer até cinco “micro-injeções” em cada ciclo de combustão para obter a proporção ideal da mistura ar-combustível — o que afeta diretamente o nível de emissões, além do consumo.
Além disso, a Porsche buscou nos motores diesel uma solução para reduzir as partículas finas típicas dos motores de injeção direta, e instalou um filtro de partículas em cada lado do sistema de escape deste 4.0.
Somente depois disto é que veio a parte fácil da conversão: novos cabeçotes e válvulas para otimizar o fluxo induzido pela pressão atmosférica, novos pistões para aumentar a taxa de compressão de 10:1 para 12,5:1 e também para aumentar o diâmetro dos cilindros de 91 mm para 102 mm e novas bielas e virabrequim para aumentar o curso de 76 mm para 81,5 mm.
O resultado foi um novo flat-6 aspirado, capaz de girar 8.000 rpm para produzir 420 cv e 42,8 kgfm, mas, acima de tudo, capaz de fazer um Porsche GT roncar como ele deve.