Em 2002 eu parei de assistir à TV. Ficamos sem grana, cortamos a TV a cabo e, sem nada interessante na TV aberta, acabei perdendo o hábito. Na época eu me interessava mais por guitarras e baixos e amplificadores valvulados. Então, quando estava entediado, eu ficava tocando, ou ligava o computador para procurar tablaturas ou trocar ideias sobre equipamento.
Apesar das guitarras dominarem meu tempo livre, nunca deixei de curtir os carros — eu só me interessei menos por eles naquela época. Eu havia assistido a “60 Segundos” e, como todo moleque de 18 anos fiquei loucão pela Eleanor. Entre downloads de músicas e conversas sobre captadores Filtertron, válvulas 6L6 e tentativas de decifrar o esquema elétrico do meu amplificador velho, eu dava uma olhada nos carros antigos em classificados online, fazendo planos ingênuos para o futuro.
Essa rotina semi-offline começou a mudar três ou quatro anos mais tarde. A conexão com a internet era mais rápida e uma novidade me “reconectou” à televisão: o YouTube. De repente era possível assistir aos vídeos da internet sem precisar de downloads demorados. Um clique, alguns segundos de espera e o vídeo estava lá, carregado por completo na sua tela.
No começo o conteúdo era escasso, havia pouca coisa realmente relevante. Mas aos poucos os usuários começaram a fazer uploads de documentários, programas antigos, atrações estrangeiras e novidades interessantes como este vídeo:
Fiquei louco com o texto e com a fotografia. Como assim, uma avaliação gravada na chuva? Com essas cores? Abusando do carro e falando todas aquelas coisas? Ao final do vídeo fiquei curioso para ver mais desse cara. Achei um vídeo chamado “Killing a Toyota Hilux”, que era dividido em duas ou três partes. Aquilo realmente me fisgou. Um programa de TV que colocou uma picape no topo de um prédio prestes a ser implodido só para ver se ela resiste à queda!? Quem são esses loucos desse tal Top Gear?
Comecei a procurar mais vídeos (que ainda não eram tantos) e fui gostando cada vez mais do que via. Descobri o site Final Gear — de onde vinham os clipes postados no YouTube — e baixei os episódios para assisti-los inteiros, mesmo com a dificuldade de entender as gírias, os contextos regionais e aquelas aceleradas que eles dão no meio das frases. Depois de cinco anos, voltei a assistir à televisão (ainda que pela internet) por causa de Top Gear.
Originalmente lançado em 1977, Top Gear tinha o formato tradicional de “revista televisiva”, com quadros curtos e dinâmicos, duração de apenas 30 minutos e deu projeção nacional a jornalistas como Tiff Needell, Quentin Willson, Vicki Butler-Henderson, Andy Wilman, James May e Jeremy Clarkson.
Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, contudo, os apresentadores mais carismáticos deixaram o programa e a audiência caiu à metade, passando de seis milhões de espectadores para “apenas” três milhões. No fim, Top Gear acabou cancelado em outubro de 2001.
Com o cancelamento de Top Gear, Tiff Needel, Quentin Willson e Vicki Butler-Henderson foram contratados pelo Channel 4 para um novo programa no mesmo formato de revista televisiva, porém com uma abordagem mais moderna. Diante da manobra do canal rival, a BBC decidiu retomar seu velho programa.
Foi quando Jeremy Clarkson e seu amigo de longa data Andy Wilman voltaram à cena com uma proposta completamente diferente do que já havia sido feito até então. Em vez de se concentrar em avaliações e notícias e recauchutar o formato do antigo programa, Wilman e Clarkson propuseram ir além, apresentando desafios de carros, corridas especiais, voltas cronometradas de supercarros e de convidados famosos e qualquer outra ideia que viesse à cabeça, com uma liberdade editorial que somente um canal não-comercial como a BBC poderia proporcionar. Além disso, ele seria apresentado por três pessoas ao mesmo tempo.
A primeira temporada estreou em 20 de outubro 2002. Wilman ficou atrás das câmeras conduzindo a produção do novo programa. Clarkson liderou a apresentação em estúdio, onde era acompanhado por Richard Hammond, um ex-radialista que havia migrado para a TV como apresentador do canal por assinatura Men and Motors; e Jason Dawe, colunista de automóveis do jornal Sunday Times, que foi chamado para substituir James May, que era a primeira opção para a vaga, mas recusou o convite inicial.
Para as voltas cronometradas, Wilman e Clarkson procuraram um piloto profissional que tivesse desenvoltura em frente às câmeras. Como nenhum dos candidatos agradou a dupla, eles decidiram criar um personagem enigmático que acabou interpretado por Perry McCarthy e deu origem ao Stig.
O primeiro episódio ainda tinha muito do formato antigo, porém com mais liberdade e mais espontaneidade, além de elementos cômicos, como o hábito de destruir trailers sem motivo. O estúdio ainda era vazio, a iluminação era um tanto sombria e ainda havia muita informação jornalística com apenas algumas doses de humor. Mas deu certo: o primeiro episódio foi visto por 2,4 milhões de pessoas. O segundo atraiu mais 1,2 milhão e chegou a uma audiência de 3,6 milhões de espectadores somente no Reino Unido.
O programa pegou ritmo ao longo daquela primeira temporada, mantendo uma média de 3,4 milhões de espectadores até o último episódio. Os desafios foram tímidos, mas as entrevistas e os convidados tentando pilotar um carro popular eram divertidas, e as avaliações de Hammond e Clarkson se destacavam. Só Jason Dawe que parecia um pouco deslocado, talvez por ter uma personalidade diversa dos outros dois.
Com o sucesso da primeira temporada, James May reconsiderou o convite e disse que gostaria de entrar no programa. Inicialmente Top Gear ficaria com quatro apresentadores, mas no fim das contas, Dawe deixou o elenco e assim formou-se o trio que consagrou Top Gear. O jeitão geek e o humor ácido de May equilibraram a personalidade efusiva e hiperbólica de Clarkson e o sarcasmo sacana de Hammond. À medida em que os novos episódios eram produzidos, Top Gear ganhava mais a cara de seus apresentadores e se afastava da fórmula anacrônica do antigo programa.
Foi naquela segunda temporada que o trio começou a ousar no humor, apresentando segmentos que, mais tarde se tornariam virais, como o crash test com um piloto de verdade ao volante de um Renault Mégane, e a avaliação do Touareg V10 TDI, no qual Clarkson reboca uma árvore de 20 metros. Curiosamente a audiência foi sutilmente menor que a da primeira temporada: a média de espectadores foi de “apenas” 3,1 milhões.
Na terceira temporada o piloto Perry McCarthy revelou que era o Stig e acabou deixando o programa, sendo substituído por Ben Collins. A mudança de pilotos foi marcada pela troca da cor do macacão e capacete: em vez do traje preto, o novo Stig usava macacão, sapatilhas e capacete branco. Os desafios ainda alternavam entre o nonsense e o jornalismo irreverente até o quinto episódio. Foi quando eles tentaram verificar a crença de que a Toyota Hilux é indestrutível e foram às ruas tentar fazer o impossível para destruí-la. Foi o primeiro grande sucesso do novo Top Gear, que pela primeira vez atingiu a marca de cinco milhões de espectadores.
Nas temporadas seguintes Top Gear se manteve com audiência média variando entre 3,5 e 4 milhões de espectadores. Na quarta temporada, de 2004, eles fizeram a primeira corrida entre um carro e outros meios de transporte, na sexta temporada, já em 2005, eles inventaram o futebol com carros e colocaram suas próprias mães para avaliar carros de mamãe, na sétima temporada eles fizeram o desafio dos supercarros italianos dos anos 1970 e na oitava temporada, em 2006, fizeram mais um jogo de futebol, além do desafio dos carros anfíbios, no qual tentariam cruzar um reservatório de 3,5 km com carros convertidos por eles mesmos.
Após a oitava temporada, na virada de 2006 para 2007, os primeiros sucessos do Top Gear foram parar no recém-lançado YouTube. O site havia acabado de instituir o limite de 10 minutos para os novos vídeos, e esta era justamente a duração de cada bloco do programa na BBC. Foi um timing perfeito.
Embalado pelos downloads piratas do site Final Gear e pelo boom do YouTube, Top Gear se tornou um fenômeno global. Aqui a história se encontra com o terceiro parágrafo desta pensata. Com os vídeos publicados naquela nova e promissora plataforma de vídeos online, o programa ganhou projeção mundial e cativou uma audiência jamais vista em um programa sobre carros. A nona temporada — a primeira pós-YouTube — teve uma média de 7,45 milhões de espectadores.
Não poderia ser diferente: logo no segundo episódio eles colocaram James May ao volante do Bugatti Veyron na reta de Ehra-Lessien para descobrir a velocidade máxima do carro. Depois o trio foi aos EUA logo após o furacão Katrina para uma road trip épica a bordo de uma Dodge Ram, de um Cadillac Brougham e de um Camaro Z28 — todos caindo aos pedaços, claro. Na segunda metade da temporada eles ainda fizeram um desafio de tratores, no qual produziram biodiesel, e no episódio final vimos o desafio das limousines baseadas em carros comuns.
Como se não bastasse, eles ainda aprontaram o Especial Polar, uma expedição organizada em parceria com a Toyota para levá-los de carro ao Polo Norte magnético. A expedição foi apresentada em forma de corrida, com Clarkson e May a bordo de uma Toyota Hilux modificada para encarar o oceano de neve e gelo, e Hammond percorrendo o roteiro em um trenó puxado por cachorros. Apesar de terem declarado a chegada ao Polo Norte magnético, eles encerraram a expedição a cerca de 500 km do ponto exato devido às condições severas do roteiro.
A partir daquela temporada, Top Gear passou a ousar cada vez mais em seus desafios e viagens, a surpreender os espectadores a cada temporada e a envolver mesmo os não-entusiastas na cultura automobilística. A audiência se manteve na casa dos 6 milhões de espectadores por episódio — somente no Reino Unido — e Top Gear se tornou o programa de TV realista mais popular do planeta, sendo exibido em 214 países e/ou territórios em todo o mundo, atingindo cerca de 350 milhões de pessoas.
Além disso, o programa se tornou a atração mais lucrativa da história da BBC, com receita de mais de 150 milhões de libras esterlinas somente com o licenciamento da marca. Estamos falando de quase R$ 1,1 bilhão — o que explica a capacidade de execução de todas aquelas ideias insanas para desafios e corridas.
Mas aí começaram as polêmicas causadas irreverência dos apresentadores. Pessoas, instituições e até países se sentiram ofendidos por declarações ditas durante os programas — a maioria vinda de Clarkson. Para piorar a situação do apresentador, em 2014 ele ainda perdeu a mãe, achou que tinha um câncer e se divorciou da mãe de seus filhos. Estressado, acabou agredindo gratuitamente um colega de trabalho, o produtor Oisin Tymon, e acabou justamente demitido da BBC.
A Grande Viagem
Com a demissão de Clarkson, James May, Andy Wilman e Richard Hammond terminaram os episódios restantes da 22ª temporada e pediram demissão da BBC. Juntos, eles criaram um novo programa e o venderam ao Prime Video, o serviço de streaming de séries e filmes da Amazon.
Apesar da equipe entrosada, The Grand Tour precisou de tempo para embalar e acertar a fórmula. As principais atrações continuaram sendo as viagens e desafios, sempre intercaladas por sequências em estúdio que remetiam ao Top Gear. O novo programa jamais foi ruim ou entediante, mas já estava claro que seu fim se aproximava.
Um pedaço da pré-história do FlatOut
Certo, eu falei mais acima que Top Gear me fisgou no final dos anos 2000. Naquela época eu ainda estava na faculdade de Comunicação Social, perdido entre estágios como redator e freelances como analista de pesquisa de mercado júnior. O primeiro, porque eu conseguia colocar no papel, de forma clara, o que me vinha à mente. O segundo, aconteceu porque eu gostava de carros e entendia um pouco sobre eles.
Na faculdade, ainda meio durango, eu queria muito participar da Semana da Comunicação, que era uma série de palestras e workshops com gente grande do mercado. O tipo de coisa que te abre a cabeça e te coloca em contato com as pessoas que fazem o mercado.
O problema é que eu estava sem grana para pagar a inscrição — era algo em torno de R$ 200-250 em dinheiro de 2023. Por sorte, eu fazia estágio com uma das organizadoras e perguntei se não tinha uma vaga na equipe, para fazer qualquer coisa, o que garantiria minha participação no evento sem desembolsar um único real. Eles precisavam de alguém para escrever o blog do evento. Foi ali que assinei uma matéria na internet pela primeira vez.
Mas o que importa mesmo foi o que aconteceu durante as palestras. A Semana tratava de uma revolução que estava em curso na publicidade, motivada pelas redes sociais e pelas novidades tecnológicas do momento – lembre-se: em 2008 o iPhone tinha um ano de mercado e o YouTube tinha só três anos. Sites, blogs, canais, comunidades, grupos, Instagram. Tudo estava só começando.
Eu saí daquelas palestras mudado. As agências de publicidade locais me pagariam um salário, mas para fazer algo relevante, que atingiria milhões de pessoas, aquele era o caminho. Dentro das minhas limitações, eu fiz um pequeno blog para treinar técnicas de SEO. E o tema do blog era o próprio Top Gear, minha nova obsessão.
Não havia nada relacionado ao Top Gear em português. Os vídeos não eram legendados, então pouca gente assistia. Eu queria mostrar pros meus amigos que curtiam carros que existia um negócio legal demais na Inglaterra. Então comecei a traduzir as colunas publicadas pelo trio e, eventualmente, legendar alguns episódios junto de um camarada virtual chamado Felipe Farias. O blog logo chegou aos 100.000 visitantes, que procuravam alguma forma de assistir àquele programa. Cheguei a monetizar o negócio, mas ele mal chegou aos 100 dólares e eu nunca saquei o dinheiro.
Claramente aquele não seria meu trabalho, mas eu já tinha uma prova concreta de que eu sabia fazer aquilo. Bastaria adaptar o conteúdo ao tema proposto. E assim eu comecei a procurar pessoas e empresas que precisassem de um “webwriter”. Depois de alguns freelances, acabei chegando ao Jalopnik Brasil — e o background como tradutor de Top Gear foi uma credencial forte, pelo que soube mais tarde.
No Jalopnik, meu nome apareceu no primeiro dia. E de todos que estiveram presentes naquele 1º de março de 2010, somente eu fiquei até o dia 31 de dezembro de 2013. O Juliano chegou algumas semanas depois da estreia e o Dalmo acabou saindo dois meses antes do final. Como acabei me tornando um editor-assistente e revisor da galera, a influência do Top Gear ficou nítida. Quando fizemos o FlatOut, em dezembro de 2013, ela ainda estava lá, inspirando a equipe de alguma forma.
O fim de uma era
O fim de The Grand Tour (ou do trio Clarkson, Hammond e May), ainda mais nestes tempos incertos para os automóveis, representa o fim de uma era. Não apenas porque uma nova temporada do trio era uma certeza que, aos poucos deixa de existir, mas também por que, ao longo de 22 anos, Top Gear e Grand Tour criaram um novo padrão de entretenimento com carros e sobre carros.
Embora tenham surgido na virada para a “web 2.0”, quando o mundo começou a consumir conteúdo nas redes sociais, boa parte deste conteúdo era composto por quadros do Top Gear publicados “extra-oficialmente” no YouTube.
E é fácil entender porque eles se tornaram ícones: com irreverência, um pouco de filosofia, e uma legítima paixão por carros (algo que mudou para sempre o jornalismo automobilístico em todo o mundo), eles conseguiram cativar aqueles que já se interessavam por carros e motores, ao mesmo tempo em que eram divertidos para quem só queria passar o tempo assistindo à TV. Pela primeira vez foi possível assistir a um programa de carros com sua mãe, sua namorada, seu pai que só curte futebol.
E foi com essa versatilidade e carisma que Clarkson, Hammond e May influenciaram toda uma geração de entusiastas e, principalmente, comunicadores e a forma de se falar de carros para o grande público. O sucesso de Top Gear foi um divisor de águas na forma de se produzir conteúdo sobre carros — e arrisco dizer que as redes sociais como conhecemos hoje, falando de carros, seriam radicalmente diferentes sem a loucura caótica controlada que esse trio inventou 20 anos atrás.
Se a função dos meios de comunicação é transmitir cultura, eles cumpriram essa missão com um sucesso que talvez nem eles pudessem imaginar quando tudo começou.