Você já deve ter visto esse Fiat 500 com rodas traseiras falsas circulando nas redes sociais. Eles não são novidade — eles viralizaram pela primeira vez há uns três anos e, agora, parece que a internet ficou sem assunto e voltou a viralizar novamente.
O motivo das “rodas falsas” é uma conversão feita por uma oficina alemã chamada “Ellenator” para que jovens que ainda não têm 18 anos possam dirigir o carro sozinhos pelas ruas aos 16 anos. Normalmente é nos EUA e na Austrália que pensamos quando se fala em dirigir nessa idade, mas os europeus também têm essas permissões legais para menores de idade, embora elas variem de acordo com o país.
A permissão se deve à categoria de veículos usada na Europa, chamada “quadriciclos”. Eles são veículos de quatro rodas com volante, mas com algumas restrições técnicas para diferenciá-los dos automóveis convencionais. Há os quadriciclos leves (L6e) e os quadriciclos pesados (L7e) e os dois tipos podem ser conduzidos sem habilitação, bastando apenas uma permissão para guiá-los.
Os quadriciclos leves precisam ter motores de até 50 cm³ no caso de ignição por centelha, ou, no máximo 6kW/8cv no caso de motores a diesel ou elétricos. Já os quadriciclos pesados, são limitados a 450 kg de peso seco (o que não inclui o peso das baterias), e não podem ter mais de 20 cv/15kW, nem exceder 90 km/h.
Esses quadriciclos leves são permitidos em todo o território europeu, porém a idade mínima para conduzi-los varia de acordo com o país. França, Itália, Estônia, Letônia, Polônia e Hungria, exigem idade mínima de apenas 14 anos, enquanto Áustria, Lituânia, República Tcheca, Finlândia, Alemanha, Eslovênia, Espanha e Suécia permitem que eles sejam conduzidos com 15 anos. No restante da União Europeia a idade mínima é 16 anos, exceto na Dinamarca em Malta, onde é preciso ter 18 anos para guiar esses microcarros. Os quadriciclos pesados só podem ser conduzidos com 16 anos, no mínimo. Nem todos os países da Europa têm essa categoria, mas é onde se enquadram carros como o Citroën Ami e o Renault Twizy.
A Alemanha, em especial, tem uma outra categoria que permite a jovens motoristas dirigir sozinhos pelas ruas, porém com habilitação. Aos 17 já é permitido dirigir automóveis comuns, mas somente com a supervisão de um motorista maior de idade, que deve estar no banco do passageiro. Contudo, se o veículo tiver até três rodas e for limitado a 90 km/h e 20 cv, ele pode ser conduzido por motoristas de 16 anos.
Note que a diferença aqui é que ele não será um quadriciclo pesado, mas um triciclo de categoria L5 — mesmo tendo quatro rodas. O que acontece é que, se as rodas tiverem menos de 460 mm de espaçamento entre si, elas são consideradas uma só — a regra, aparentemente, é usada para classificar o rodado duplo de picapes como uma só roda. E pela lei alemã, veículos de categoria L5 podem ser conduzidos por motoristas de 16 anos desacompanhados.
É daí que vêm aquele Fiat 500 bizarro do início desta matéria. Eles são os mais populares, mas a adaptação pode ser feita a praticamente qualquer carro novo de tração dianteira. O eixo original é removido e, em seu lugar, é instalado um novo eixo que usa os mesmos pontos de fixação e a mesma suspensão, porém com duas rodas de 14 polegadas centralizadas. Para abrir espaço para elas, o vão do estepe é sacrificado. A conversão ainda inclui uma reprogramação da ECU para limitar a potência a 20 cv e a velocidade máxima a 90 km/h. Desta forma, o carro é certificado pelo TÜV (o “Inmetro” da Alemanha) e pode ser licenciado para rodar nas ruas e estradas.
A conversão, embora pareça extensa, pode ser revertida mais tarde, quando o proprietário completar 18 anos e puder dirigir sozinho, bastando refazer o vão do estepe e reinstalar o eixo traseiro original.
Há também uma outra brecha legal usada na Suécia, baseada em uma classificação parecida com a dos “triciclos de quatro rodas” da Alemanha. Carros convertidos em utilitários com velocidade limitada, são legalmente classificados como “tratores” e, por isso, podem ser conduzidos sem habilitação por cidadãos de, no mínimo, 16 anos.
A brecha é a adaptação de um hábito que começou na década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. Os países escandinavos sofreram com a escassez de tratores e equipamentos agrícolas, porque as fabricantes estavam usando todo seu material e mão-de-obra na produção de veículos militares. Os fazendeiros suecos precisaram improvisar, e passaram a transformar seus próprios carros em tratores.
O fato de serem veículos com carroceria sobre chassi facilitava o negócio, claro. O entre-eixos era encurtado, a parte traseira da carroceria era removida e a transmissão ganhava uma caixa de redução. Assim estava feito o trator caseiro dos suecos. A marcha reduzida e as grandes rodas traseiras tornavam estes tratores improvisados suficientemente eficientes.
A ideia se popularizou rápido. No início, eram carros bem antigos e baratos, como o Ford Modelo A, mas logo qualquer coisa que lembrasse vagamente um carro acabava transformada em um trator. E, mesmo depois da Guerra, a prática continuou. Não é preciso pensar muito para entender: era uma modificação barata, que podia ser feita pelo próprio dono, e quase não havia regulamentação. Com o passar do tempo, o governo sueco criou algumas normas: os tratores não poderiam ter entre-eixos maior que 2,2 metros, deveriam levar apenas duas pessoas e ter eixo-traseiro não suspenso. Além disso, o veículo seria registrado como equipamento rural – o que dava permissão aos jovens a partir de 15 anos de idade para conduzi-los.
Foi assim que os “tratores” improvisados começaram a ganhar as cidades interioranas da Suécia, onde havia menos trânsito (e menos fiscalização). Aos poucos, formou-se toda uma cena cultural em volta dos veículos, que passaram a ser chamados de EPA traktors. EPA era o nome de uma cadeia de lojas de utilidades cujos produtos ficaram famosos pelo baixo preço e pela qualidade duvidosa, e “EPA” acabou se tornando sinônimo de algo feito em casa, com o que se tivesse à mão.
A brincadeira durou até 1963, quando as autoridades decidiram que a situação já estava melhor, e que já era possível comprar tratores de verdade para as fazendas. Assim, a lei que permitia a circulação dos EPA traktors foi revogada.
Os fazendeiros não se importaram muito, no fim das contas, mas quem já havia descoberto que os EPA traktors eram uma forma barata e até divertida de ter um veículo para transporte nas cidades não gostou nada da notícia. Cedendo à pressão popular, o governo decidiu manter os antigos EPA traktors nas ruas e definiu um novo conjunto de regras para novas conversões.
Chamados A traktors, os veículos foram regulamentados em 1975. A partir dali passou a ser possível transformar praticamente qualquer automóvel em um trator, e não havia mais comprimento máximo para entre-eixos.
São permitidos apenas dois lugares, e o espaço atrás dos bancos dianteiros não pode ser utilizado para transportar passageiros ou carga. Além disso, foi definida uma velocidade máxima de 30 km/h, e ainda é preciso instalar um engate na traseira – afinal, legalmente, ainda estamos falando de tratores. Todos os A traktors precisam ter um triângulo refletor na traseira, que indica se tratar de um veículo de baixa velocidade.
A solução mais comum para a carroceria é transformar o carro em uma picape, cuja área da caçamba não pode ser maior que 1,25 m² e, em tese, só pode ser utilizada para carregar lastro. Boa parte das conversões é realizada em modelos da Volvo, especialmente os da série 200 – que até não ficam mal como “utes suecas” – mas a criatividade dos caras não tem limites. Alguns criam verdadeiros project cars, com modificações na carroceria, interior, novas rodas e até sistema de som.
Para reduzir a velocidade máxima, há algumas técnicas engenhosas. Alguns modificam o câmbio simplesmente retirando as engrenagens das marchas mais altas, por exemplo. Outros fazem mapas de controle para limitar tudo eletronicamente.
De qualquer forma, estamos falando de uma lei razoavelmente flexível: na prática, são poucos os A traktors que não chegam a pelo menos 50 km/h, e também há aqueles que utilizam a caçamba e o compartimento de carga para transportar pessoas e coisas. Além disso, pode-se até usar caminhões e picapes grandes, desde que a cabine seja simples. Se a primeira fileira de bancos tiver três lugares, os três podem ser utilizados normalmente.
Mesmo não respeitando todas as normas, raramente os donos de A traktors se encrencam com a polícia, por algumas razões: há uma espécie de “acordo velado” com as autoridades, e a polícia faz vista grossa quando percebe que um determinado veículo, ainda que não esteja 100% de acordo com o regulamento, não oferece risco. Ainda mais em cidades pequenas, onde está a maioria absoluta dos A traktors – nos grandes centros, boa parte das pessoas sequer lembra que eles ainda existem.
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