Pegue seu carro, dê uma volta pelo centro da sua cidade e comece a contar quantas infrações de trânsito você flagra em um passeio curto. Nos tornamos infratores constantes e o excesso de confiança na fiscalização eletrônica pode ser a origem desse mal. Como? É o que acontece quando todas as atenções estão voltadas para um lado só.
Em São Paulo é bem difícil trocar de pista nas grandes avenidas. À primeira piscada das setas, uma orquestra das anêmicas buzinas de moto começa a tocar em uníssono, avisando que você não pode invadir o território reivindicado pelos motociclistas: o corredor.
O corredor tornou-se uma espécie de faixa exclusiva informal para motos, um território guardado e fiscalizado pela turma das duas rodas. Quem ousar adentrar este espaço será punido com ações que variam de um aceno negativo com a cabeça, até um chute certeiro no retrovisor. Depende do humor do cidadão.
Os motociclistas também tomaram para si a utilização das rampas de acesso a cadeirantes nas ilhas e canteiros centrais, e as transformaram em retorno. Dependendo da cidade, a calçada também pode ser compartilhada por motos.
Mas eu seria injusto apontar os erros dos motociclistas sem mencionar também os motoristas que mudam de faixa ou dobram esquinas sem sinalizar a mudança de direção, dirigem falando ao celular, transportam seus “filhos” caninos no colo ou soltos no carro, costuram o trânsito, forçam passagem, trancam cruzamentos, estacionam em fila dupla, mudam de pista sobre faixa contínua.
Tudo isso é fato corriqueiro no trânsito cotidiano. As infrações foram banalizadas, e o que é banal não tem valor.
Afinal, “todo mundo está sujeito a erros”, diz a sabedoria das ruas. “Que mal há em esquecer a seta?” Ser punido por algo tão banal parece uma grande injustiça, não é mesmo?
Só que o Código de Trânsito Brasileiro classifica as infrações de acordo com sua gravidade — em resumo, as leves e médias, em geral, são aquelas que desorganizam o trânsito e podem causar pequenos acidentes; as graves e gravíssimas são aquelas que colocam em risco a vida ou a integridade física das pessoas.
Todas estas infrações mencionadas acima — deixar de guardar distância segura entre os demais veículos, transitar sobre calçadas, ilhas e canteiros, dirigir com objetos entre as pernas, sem uma das mãos no volante, sem atenção ao trânsito, deixar de dar passagem, transpor faixa contínua e estacionar em fila dupla — são classificadas como graves ou gravíssimas.
Portanto elas são tão perigosas quanto furar semáforo ou dirigir bêbado, pois qualquer uma delas pode colocar vidas em risco.
Então por que elas parecem menos graves que as outras?
Como só se fala em radares e sensores fotográficos em semáforos, blitzes de lei seca (que são operações pontuais, e não constantes) e operações com sistemas de detecção de placas para flagrar os veículos com documentação atrasada, essa tornou-se nossa única preocupação. Acabamos condicionados a ter uma falsa noção de que apenas o que é fiscalizado é ruim e perigoso, e que tudo aquilo que é errado, mas não é punido, é insignificante — é banal e sem valor. E assim seguimos nos arriscando e colocando os outros em risco impunemente, sem noção do perigo. Somos como bebês debruçados no parapeito da janela, ou colocando o dedo na tomada.
Faixa contínua antes da faixa de pedestres serve para ninguém ultrapassar o carro parado para travessia de pedestres, algo que poderia causar atropelamento
A fiscalização tem finalidade educativa e reforça as referências de certo e errado (as leis, nesse caso). A impunidade nos tira essa referência, pois quando nada acontece não há motivos para deixar de repetir o erro impune e ele acaba tornando-se regra. É exatamente por isso que pessoas continuam cometendo todos os excessos e infrações que você repara diariamente no trânsito e que afetam todos que fazem parte desse sistema.
O motorista de hoje tem medo de furar semáforo, ser pego bêbado, exceder o limite de velocidade e ter o carro apreendido por falta de licenciamento. Mas é só isso.
As estatísticas oficiais apontam que nos locais onde houve a instalação de radares, . O número de ocorrências relacionadas ao alcoolismo também diminuiu com as operações da Lei Seca. Então como , chegando a números comparáveis aos de conflitos bélicos?
Na cidade de São Paulo, por exemplo, há mais de 6.000 atropelamentos por ano e apenas 10% são fatais. Considerando que o risco de morte em um atropelamento acima de 50 km/h é de 60%, podemos concluir que boa parte desses atropelamentos não aconteceram em alta velocidade.
Não seria resultado de uma fiscalização ineficiente e incompleta? A fiscalização eletrônica ainda não flagra motoristas dirigindo com um cachorro no colo, falando ao celular, fazendo conversões sem dar seta, cruzando faixas contínuas, passando em alta velocidade por áreas escolares ou por faixas de pedestres. Não pegam o motociclista camicase.
Falta a fiscalização humana, capaz de analisar situações e dialogar, dependendo do caso. Uma bronca bem dada de um agente de trânsito tem tanto valor educativo quanto uma multa, com a vantagem de não pesar no bolso. Saber que você pode ser flagrado por um policial em ronda, como vemos nos filmes estrangeiros, nos faz pensar antes de ignorar as leis e cometer uma infração. É um aviso de que o Estado está de olho em quem não andar na linha. Mas isso parece cada vez mais raro.
A fiscalização eletrônica é cômoda para o Estado, pois gera arrecadação, enquanto finge ser plenamente eficiente baseada em estatísticas pontuais — nunca globais. Pior: em determinado momento as arrecadações com multas começam a fazer parte do orçamento, e há uma mudança de mentalidade por parte do Estado: ela deixa de ter o fim educativo para se encaixar sobre a linha fina entre o punitivo/educativo e o lucrativo. A receita das multas , o que, mas estamos mesmo sendo beneficiados com esses investimentos?
Não é o caso de defender o fim da fiscalização eletrônica — pelo contrário: ela pode ser uma ferramenta complementar muito útil. Mas a única forma de garantir a liberdade coletiva no trânsito é garantindo que as regras sejam seguidas e cumpridas e para isso é preciso reforçar a fiscalização — mas não com máquinas, e sim com gente de verdade.
[Fotos: diogolhh/Flickr (abertura), olhares.com (motos), CPRV-PM/SE (celular)]