Há mais ou menos uma década, se alguém lhe falasse sobre carros autônomos talvez sua reação fosse tratar aquilo como uma futurologia utópica e tão realista quanto aquele amigo do encontro de posto que é uma mistura de Toretto com Forrest Gump. Na época, freios ABS e controles de estabilidade e de tração não eram mais novidade – mas apesar disso, tudo estava na mão do motorista, não é mesmo?
Tomando a sopa pelas bordas, mais e mais assistentes de direção – de conveniência e de segurança – surgiram. De forma educada, eles pediram licença. Na base do “posso fazer isto ou aquilo, só um pouquinho”, eles te ajudam a estacionar. A avisar de perigos. A controlar o carro em situações de emergência. A prevenir que estas situações de emergência ocorram. A interferir, para o seu próprio bem, diretamente em todos os comandos que você está fazendo – incluindo o volante. Quando você se deu conta, já era tarde: um veículo como um Mercedes-Benz Classe S já oferece todas as tecnologias necessárias para ser completamente autônomo. Puristas à parte, isso não é ruim e têm salvo dezenas de milhares de vidas por ano em todo o mundo.
Mas quais são estes recursos tecnológicos? E em base do quê eles operam? Aqui vamos dar uma breve pincelada neste cenário de carros autônomos adormecidos, dotados de toda – ou quase toda a tecnologia – para se deslocarem sozinhos.
Sensores e acelerômetros
Sensores existem há muitas décadas em todo tipo de carro. Apenas no motor e em seus periféricos existem uma porção deles: temperatura de líquido de arrefecimento, óleo, de detonação, de rotação, de posição dos comandos de válvulas variáveis, sensores de pressão e de fluxo de ar (MAP e MAF, respectivamente), de posição da borboleta do acelerador (TPS), dentre outros. O acionamento do air bag do passageiro depende de um sensor no assento – se não há ninguém sentado, ele não dispara. Aquele aviso chato e necessário de botar os cintos funciona por princípio similar.
Já o acelerômetro, como o próprio nome diz, é um dispositivo extremamente sensível que colhe informações de aceleração própria. Essencial aos smartphones – graças a ele é que a tela se rearranja quando você deita o telefone, ou consegue pilotar joguinhos de corrida “esterçando” o aparelho nas curvas –, ele é utilizado há muitos anos nos veículos de competição para colher informações de telemetria, como força G lateral, curvas de aceleração e desaceleração, etc.
É graças ao acelerômetro que o controle de estabilidade existe e que os freios ABS chegaram ao estágio de evolução em que estão hoje. Apenas um acelerômetro consegue captar nuances como a rotação ou atitude de guinada do veículo em relação à sua trajetória (yaw, como em uma escapada de traseira ou de dianteira), inclinação do veículo, acelerações laterais, longitudinais e diagonais. Os primeiros air bags disparavam somente por um sensor de batida, mas hoje eles trabalham em conjunto com o acelerômetro – afinal, dependendo do ângulo, o sensor pode simplesmente não ser impactado.
Por meios diferentes, sensores e acelerômetros cumprem o mesmo papel: colher informações de diversos parâmetros do veículo, que são encaminhadas a uma unidade de processamento, cujas linhas de programação irão definir as ações a serem executadas de acordo com a leitura destas informações. Sensores e acelerômetros, por si, nada fazem sozinhos: eles apenas captam e encaminham informações. Fazendo uma analogia, eles são como os nervos de nosso corpo.
Quando você combina acelerômetros a sensores presentes na caixa de direção (para fazer a leitura do ângulo e da velocidade do esterçamento), nos cubos de roda (para aferir a velocidade de cada uma delas), no acelerador e nos freios, há uma avalanche de dados suficientes para que a central eletrônica saiba exatamente a atitude do carro em relação à curva. E em base disso é que os controles de estabilidade e tração (saiba como eles funcionam detalhadamente neste post) irão atuar para manter o veículo sob controle. Os sistemas anticapotamento funcionam exatamente como o controle de estabilidade, mas partem da leitura da inclinação do veículo e comandam as pinças de freio e o acelerador para produzir um torque de rotação que faça o carro nivelar novamente.
É com a leitura de inclinação feita pelo acelerômetro também que os assistentes de controle de descida (HDC, hill descent control) e de partida em rampas (hill holder) funcionam. O primeiro, com foco no off-road, permite que o veículo desça um barranco úmido não apenas com velocidade controlada (definida pelo motorista) como também de forma retilínea, operando os freios de forma independente. Independentemente da diferença de aderência de um lado para o outro. Para isso ele usa as informações de yaw angle (ângulo de guinada em relação à trajetória efetiva) captadas pelos acelerômetros. Já o segundo é bem mais simples: ele mantém os freios apertados por cerca de dois segundos para facilitar a sua saída em ladeiras, especialmente em carros manuais.
Mas não é só isso. Com esta dupla dinâmica sensores-acelerômetros, os engenheiros descobriram que é possível notar comportamentos de cansaço ou de distração do motorista. É assim que os veículos de marcas premium oferecem aquele aviso com um ícone de xícara de café, sugerindo uma pausa em sua viagem para que você se recomponha. Com o advento das câmeras e radares (veja mais abaixo), este tipo de leitura ficou ainda mais precisa.
Com sensores e acelerômetros trabalhando juntos, a Volvo conseguiu desenvolver um sistema de proteção aos ocupantes no caso de uma saída de estrada (seja por distração ou perda de controle). Quando detectado este cenário, motores nos cintos apertam os ocupantes contra os bancos. E os assentos apresentam um sistema de amortecimentos verticais para absorver impactos secos de saltos e capotagens, prevenindo ferimentos na coluna cervical. A marca sueca também inovou com o Alcolock, muito utilizado em frotas de caminhões: para dar a partida, o motorista precisa fazer um teste de bafômetro (uma célula eletroquímica) instalado no próprio veículo, que registra as informações.
Ao mesmo tempo em que sensores e acelerômetros chegaram a um nível de sofisticação interpretativo que permite que o veículo saiba até mesmo se você é um braço-duro ou um bom piloto – não é sacanagem, um carro esportivo com o controle de estabilidade no modo Sport+ (o nome varia de acordo com a marca) deixa o carro escorregar à valer e só vai intervir se sentir que você está para perder o controle –, eles não conseguem saber o que acontece ao redor do veículo. E é aí que entram as…
Câmeras e radares
Da mesma forma que sensores e acelerômetros trabalham juntos para colher informações de naturezas diferentes mas com o mesmo propósito, câmeras e radares possuem a função primária de executar a leitura do ambiente ao redor do veículo – portanto, não estamos falando daquela câmera de ré, mas sim de uma que fica localizada no topo do para-brisa dos carros de luxo mais modernos. Os radares podem até ficar na mesma posição, mas geralmente são instalados de forma embutida na grade.
Radares possuem maior alcance – até 150 metros –, e trabalham com pulsos ultrasônicos, o que permite que eles funcionem perfeitamente mesmo à noite ou no meio da neblina. Já as câmeras, embora apresentem um alcance menor – na casa dos 50 metros – e de apresentarem limitações de acordo com a iluminação e o clima (neve ou neblina, por exemplo), são capazes de detectar nuances muito mais sutis do ambiente.
Sua capacidade atualmente está na casa de 50 quadros por segundo em alta resolução, com até 40 objetos mapeados simultaneamente: a diferença entre “mapear” e “detectar” é o que a separa do radar – a câmera consegue identificar pessoas, pessoas em bicicletas, veículos, animais de diversos tipos e objetos. Graças a essa capacidade, a Volvo está desenvolvendo uma funcionalidade específica para identificar cangurus na Austrália. Uma vez que os objetos podem ser identificados, suas trajetórias podem ser melhor compreendidas: animais, por exemplo, frequentemente apresentam trajetórias errantes e súbitas e não raro cruzam o caminho quando já é tarde. Neste caso, um radar detectaria de forma tardia.
Com esta dupla trabalhando em conjunto, uma série de funcionalidades surgiu em veículos de luxo. As câmeras fazem a leitura das placas de trânsito, avisando o motorista ou mesmo ajustando a velocidade de cruzeiro (o famoso “piloto automático”) de acordo com os limites apresentados. Rebatizado para controle de cruzeiro adaptativo (ACC), graças ao radar, o sistema não apenas mantém a velocidade programada, mas também é capaz de detectar veículos adiante e manter a distância programada pelo motorista, incluindo o caso de paradas súbitas e em congestionamentos. Nos carros mais modernos, o veículo pode até mesmo acompanhar o fluxo do trânsito em curvas, esterçando-o automaticamente (um sensor requer que o motorista apenas mantenha as mãos em contato com a direção).
Os radares conseguem detectar quando um veículo está presente na zona cega de seus espelhos retrovisores (as diagonais traseiras), emitindo um aviso luminoso nos próprios espelhos para avisar o motorista. No caso de uma tentativa de mudança de faixa, a ECU interpreta o risco crítico e alerta o motorista com aviso sonoro.
Os radares combinados às câmeras se tornaram os grandes aliados para reduções de atropelamentos e de engavetamentos. Podendo reconhecer não apenas a presença de objetos mas também identificá-los, os sistemas dos veículos podem agir de diversas formas na segurança ativa: com a aproximação em velocidade de um objeto ou pessoa detectada, o sistema Pre-Safe Brake (o nome varia de acordo com a marca) aproxima as pinças dos discos e potencializa a pressão da linha dos freios, preparando o carro para uma frenagem forte. No caso de não haver ação do motorista e a probabilidade da batida chegar ao limite do inevitável, ocorre a frenagem autônoma para buscar evitar a batida ou, no mínimo, mitigar os danos. Os sistemas mais sofisticados detectam avanços em cruzamentos, tanto de outros veículos quanto do próprio motorista, que pode regular o raio de distância para atuação do sistema ou mesmo desativá-lo.
O radar traseiro, no caso do Volvo XC90 topo de linha, é capaz até mesmo de preparar o veículo para uma colisão traseira: ao detectar a aproximação veloz crítica de um carro vindo por trás, o pisca alerta do carro acende automaticamente, e os cintos se tensionam, pressionando os ocupantes contra o encosto para reduzir as chances de fraturas cervicais. Até mesmo os freios são operados automaticamente no caso de um impacto.
Outra novidade interessante – que está presente em veículos de luxo como o Volvo XC90 e os Mercedes-Benz Classe E e S – é o sistema que corrige automaticamente a trajetória do veículo quando as câmeras detectam que ele está saindo das faixas de rolamento da estrada. O motorista pode escolher entre vários níveis de interferência: desligado, aviso sonoro, vibração de aviso no volante ou, por fim, permitir a correção de rota automatizada. O detector de pontos cegos está, aos poucos, se tornando desta forma em várias marcas.
Este último passo só foi possível graças ao advento da direção elétrica, que a princípio surgiu passiva com o fim de economizar combustível (uma bomba hidráulica consome em média 157 W, um sistema hidráulico com bomba elétrica consome algo na casa de 45 W, mas um sistema 100% elétrico consome apenas entre 8,4 e 12 W). O aumento ou redução de corrente estava mais ligado à busca de uma melhor comunicabilidade entre os pneus e as mãos do motorista. Mas isso também foi uma porta aberta para os sistemas ativos, que começou tomando a sopa pelas beiradas, com os assistentes autônomos de estacionamento – o famoso Park Assist, que é capaz tanto de colocar o veículo em uma vaga de baliza quanto paralelas, como as de supermercados.
Deixa que eu toco sozinho
A direção ativa foi um dos últimos passos que faltavam para a automação mecânica do automóvel ficar completa no sentido de seus acionamentos. Afinal, um câmbio automático ou automatizado já troca as marchas sozinho, o motor pode operar da forma que os algoritmos da ECU quiserem (quem não se lembra do vídeo abaixo?) e o pedal da direita já não é mais conectado mecanicamente ao motor, os freios há muito tempo já podem operar não apenas sem a interferência do motorista, mas também frear cada roda individualmente para produzir torques de rotação (utilizados tanto no controle de estabilidade quanto no torque vectoring),
Combine isso à leitura de tudo o que acontece com o veículo (sensores e acelerômetros) e em torno dele (câmeras e radares) e some com o avanço da conectividade, que permite não apenas a comunicação entre veículos como também com a infraestrutura da própria cidade. Está feito o caminho para os carros autônomos, não? Sim e não. Tecnicamente sim. Mas existem muitas discussões em torno de um automóvel que se comanda sozinho – este será o assunto do nosso próximo post desta pequena série.
Parte 1: Como a conectividade está transformando o motorista em um usuário… bem, isso quando ela funciona.