Foto: Laura McDermot
Sergio Marchionne nasceu em 17 de junho de 1952 em Chieti, uma comuna de cerca de 50.000 habitantes a 200 km de Roma. Apesar de seu pai ser um carabiniere, em 1965 sua família emigrou para o Canadá, estabelecendo-se em Toronto. Foi onde o jovem Marchionne completou seus estudos, tornando-se bacharel em direito pela Universidade de York e, mais tarde, concluindo um mestrado na Universidade de Windsor. É uma formação pouco comum para um executivo da indústria automobilística, mas este não era seu objetivo na época.
Na verdade, quando ingressou na Fiat, em 2003, Marchionne jamais havia trabalhado no setor onde fez história. Ao sair da faculdade foi trabalhar na Deloitte & Touche como consultor fiscal/contábil. Depois de passar por diversos cargos de gerência no Canadá e na Europa, ele ingressou na Alusuisse em 1994 e rapidamente chegou ao cargo mais alto da empresa, tornando-se seu CEO. Dali foi para a SGS, uma empresa de testes e certificações, também como CEO e, em 2003, foi indicado como membro independente do conselho da Fiat S.p.A. Foi ali que sua trajetória como um dos grandes executivos da história começou a ser escrita.
Na época a situação financeira da Fiat era caótica. A empresa havia trocado de CEO cinco vezes em dois anos, e perdido mais de seis bilhões de euros nesse mesmo período. As ações haviam despencado para apenas US$ 1,50 e a falência da Fiat era dada como certa. Foi quando o conselho da empresa elegeu Marchionne como o novo CEO do grupo.
Apesar da reputação como “salvador” de empresas em falência, algumas pessoas duvidavam que ele pudesse ser capaz de reverter a situação da Fiat. Não por questionar sua competência, mas devido à situação da empresa e também ao fato de aquele ser seu primeiro trabalho na Fiat e na indústria automobilística. Era um completo outsider.
Na ocasião de sua nomeação, Marchionne declarou ao jornal The New York Times que a Fiat tinha um grande potencial e que bastava aproveitá-lo, e também reforçou que já havia levantado uma empresa antes citando a SGS: “Em meus 30 meses na SGS peguei uma empresa letárgica e a transformei em líder de seu segmento”.
Sua primeira medida como CEO da Fiat foi conhecer todas as linhas de produção, todos os refeitórios e vestiários das fábricas, que estavam abaixo dos padrões mundiais de bem-estar e qualidade. Por isso, assinou um documento comprometendo-se a melhorar as condições de trabalho de acordo com o padrão mundial, melhorando a produtividade e o bem-estar dos trabalhadores.
Em 2005 Marchionne deu sua primeira demonstração de visão estratégica e postura agressiva. Na época a GM detinha 20% da Fiat e um acordo para comprar a fabricante italiana em 2005. Em crise e sem dinheiro para concretizar a compra a GM ignorou o acordo. Marchionne então ameaçou processar a GM em uma negociação que rendeu à Fiat o recebimento de US$ 2 bilhões dos americanos para encerrar a disputa.
Apostando em seus instintos (como promover um executivo de 37 anos à presidência da Fiat) e inspirado no gerenciamento eficiente da Toyota e no foco no design de produtos da Apple, Marchionne começou a mudar a Fiat rapidamente. Do prejuízo de US$ 332 milhões em 2005, a fabricante passou a um lucro de US$ 384 milhões em 2006.
Em 2009 Marchionne deu uma tacada de mestre: diante da iminente quebra da Chrysler, o italiano iniciou um processo de compra de 35% da empresa americana, e de todo o potencial das marcas Dodge, Ram e Jeep. Foi a salvação da marca americana, mas também uma enorme fonte de lucros para a Fiat, especialmente ao transformar a Jeep em uma marca global usando plataformas Fiat, caso do Renegade e do Compass. A posição do Compass como SUV mais vendido no Brasil, aliás, é um dos melhores exemplos do potencial desperdiçado pela Jeep que foi aproveitado por Marchionne.
Com a aquisição de quase 59% da Chrysler, Marchionne formou a Fiat Chrysler Automobile em 2014, renovando não apenas o grupo americano, mas também dando nova vida ao lado italiano da parceria. Foi uma mudança agressiva, com foco em cortes de custos e ganhos em escala e no encerramento de modelos que não fossem lucrativos. Foi uma estratégia que matou a Lancia, mas ao mesmo tempo revitalizou a Alfa Romeo e a Maserati e deverá devolver à Dodge a competitividade no segmento dos muscle cars nos próximos anos.
Além disso, o anúncio da formação da FCA elevou as ações da Fiat para US$ 15 — valor dez vezes maior que na época em que Marchionne assumiu a empresa. Isso significa basicamente que ele decuplicou o valor de mercado da Fiat.
Outra manobra de visão de Marchionne para aumentar a lucratividade de suas marcas foi a separação da Ferrari, da CNH (segmento de tratores do grupo) e da Magneti Marelli do Grupo FCA. Sendo uma marca lucrativa e com alto valor agregado, a Ferrari vinculada à FCA teria seu valor de mercado variando de acordo com os resultados das demais marcas do Grupo. Por exemplo: se a Fiat e a Maserati tivessem prejuízos, o valor da Ferrari seria afetado negativamente. Separando a marca do grupo, ela teria seu valor de mercado dependente apenas de seus resultados — que são positivos desde que Luca di Montezemolo assumiu a marca no início dos anos 1990 (leia mais neste post).
Com a separação da Ferrari, a marca atingiu um valor de mercado de US$ 10 bilhões. E para não perder o controle sobre a empresa, 10% das ações ficaram com Piero Ferrari, filho do fundador Enzo, e os outros 90% com os acionistas da FCA. O simples anúncio da separação da Ferrari, por exemplo, aumentou as ações da FCA em 18%.
Workaholic, Marchionne frequentemente dormia em voos noturnos, realizava reuniões às 6 da manhã nas segundas-feiras, tomava 12 espressos por dia, tinha casas no Canadá, na Itália, na Inglaterra, Holanda e Suíça, e costumava dirigir os protótipos de todos os modelos em desenvolvimento, incluindo as Ferrari no circuito de Fiorano. Com esta rotina não sobrava muito tempo para curtir seus próprios carros e, talvez, por isso sua coleção seja desconhecida publicamente, mas é sabido que ele tinha ao menos um Challenger SRT-8, com o motor 6.4 de 470 cv, e uma Ferrari Enzo preta.
A última vez que Marchionne apareceu em público foi no final de junho, quando entregou um Jeep Wrangler aos Carabinieri. Sete dias depois entrou em licença para cuidar de sua saúde e foi para a Suíça, onde faria uma cirurgia para a retirada de um tumor maligno no ombro direito, realizada na semana passada. No sábado a FCA anunciou quatro substitutos para Marchionne, o que gerou preocupações sobre seu estado de saúde, uma vez que ele planejava deixar o comando do grupo somente em 2019. Na manhã de hoje foi confirmada sua morte devido a uma embolia que causou danos irreversíveis ao seu cérebro após a cirurgia.
A impessoalidade do mundo corporativo raramente cultua a personalidade de um CEO, mas Marchionne era uma das raras exceções justamente por ser movido por seus instintos e percepções. Sem ele, talvez a Fiat e a Chrysler não estivessem por aí. Nem o Dodge Challenger Hellcat, os Alfa Romeo 8C, 4C, Giulia e Stelvio, o Fiat 124 Abarth, o Maserati Ghibli, o Dodge Viper ACR…