Hoje com quase 60 anos, o Ford Mustang está mais que sacramentado como um dos automóveis mais importantes da história. Nascido como resposta ao fenômeno chamado Chevrolet Corvette, que ganhou sua segunda geração em 1963 e assumiu de vez o papel de esportivo das massas, o Mustang foi concebido como um esportivo compacto, bom de guiar e ainda mais acessível que o Corvette, e diretamente oposto ao Corvair Monza da mesma marca em tamanho, preço e mercado alvo. Foi desenvolvido em tempo recorde – apenas 18 meses, entre setembro de 1962 e abril de 1964, de conceito ao início da produção em série.
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Fruto da mente visionária de Lee Iacocca, o Mustang foi de roadster de motor V4 central-traseiro (o conceito Mustang I) ao arquétipo de pony car. O termo foi cunhado logo após o lançamento pela revista Car Life para definir um carro compacto – ao menos para os padrões americanos – com proposta esportiva, motor seis-em-linha ou V8 e um grande catálogo de acessórios e componentes de preparação, e acabou criando uma categoria à parte dos muscle cars.
A Ford não podia se dar ao luxo de cometer erros com o Mustang, e por isso fez diversas experiências com seu estilo e uma boa quantidade de protótipos antes de chegar ao design – e ao acerto – definitivo. Mas deu resultado: com uma campanha de marketing agressiva, com direito a comerciais de TV no horário nobre, aparições no cinema e anúncios impressos em 2.600 jornais e 24 revistas (totalizando uma circulação de 68 milhões), as concessionárias da Ford ficaram inundadas de encomendas no dia do lançamento.
Documentos da época dizem que a Ford vendeu, no primeiro dia, 20% dos carros que esperava vender pelo resto do ano. Eventualmente, doze meses depois do lançamento a Ford já havia recebido 417.000 encomendas do Mustang – quatro vezes mais que o esperado.
Na verdade, o sucesso do Mustang foi tão grande que o primeiro exemplar, de VIN #001, foi vendido três dias antes do lançamento oficial, em 17 de abril de 1964. Quem comprou foi um piloto comercial de aviões – ele gostou tanto do carro que conseguiu convencer a Ford a quebrar o protocolo. Mas como?
Para entender esta história, é preciso entender como foi o processo de lançamento do Mustang. No dia 17 de abril, uma sexta-feira, ocorreu o lançamento oficial, com o pony car apresentado por Iacocca em pessoa. Durante o fim de semana seguinte, 22.000 exemplares foram encomendados.
A Ford já havia começado a fabricar o Mustang meses antes. Segundo os registros da própria fabricante – que, ainda assim, não são 100% confiáveis – entre agosto e dezembro de 1963 fora feitos cerca de 15 exemplares piloto. Esses carros foram usados para testar o ferramental da linha de produção e realizar os últimos ajustes finos no processo. Depois, veio uma série de pré-produção, com algo entre 180 a 200 automóveis que seriam utilizados para fins promocionais e testes de colisão, além de servirem como base para os primeiros Mustang de corrida. A produção em série de fato começou em 9 de março de 1964 na fábrica da Ford em Dearborn.
Para garantir que todas as concessionárias da América do Norte (EUA e Canadá) tivessem ao menos um exemplar do Mustang pronto para visitação na época do lançamento – e as concessionárias mais distantes receberam os primeiros carros, por questão de lógica (e logística). E foi assim que a pequena concessionária George Parsons Ford, da cidadezinha de St. John, na província canadense de Terra Nova e Labrador, recebeu o primeiro Mustang fabricado. Era o dia 14 de abril de 1964.
Terra Nova e Salvador é a província mais a leste do Canadá, na borda do continente, não tão longe assim da Groenlândia. A concessionária ficava a exatos 3.500 km da fábrica da Ford em Dearborn, no Michigan.
O número completo do chassi era 5F08F100001, e correspondia a um Mustang conversível branco “Wimbledon White” com interior preto. O motor era o V8 small block 260 da Ford, com 164 cv, ligado a uma caixa automática de três marchas. A capota de lona também era branca, e o carro tinha calotas raiadas e pneus com banda branca. Clássico.
Estacionado no pátio da George Parsons Ford, o carro chamou a atenção de uma pequena multidão. Stanley Tucker, piloto comercial da Eastern Provincial Airlines, passava em frente ao prédio e decidiu ver o que era toda aquela comoção.
Naquele dia, o vendedor Harry Phillips estava de plantão e, empolgado com o novo modelo, foi mostrá-lo a Tucker.
Os pormenores do encontro entre ambos se perderam no tempo, e a própria Ford já contou duas versões. Uma diz que Phillips não sabia o destino do carro – como unidade de pré-produção, ele ainda não havia sido homologado e tecnicamente não estava apto a circular nas ruas, e muito menos a ser vendido a um cliente. A outra diz o contrário: Phillips sabia muito bem que aquele exemplar era puramente para demonstração, que o lançamento só aconteceria dali a três dias, e que o carro não poderia ser entregue, mas ignorou todos os procedimentos para garantir que seria o primeiro vendedor a negociar um Mustang.
O dono da concessionária, George Parsons, relutou em permitir a venda, mas no final acabou cedendo. O carro só não podia ser entregue naquele dia. Novamente, há mais de uma versão da história: uma diz que Tucker só precisou esperar até o dia seguinte para ir buscar o carro. Outra afirma que, na verdade, ele teve de aguardar pelo menos uma semana – até o fim do período de exposição e o início das vendas de fato.
De todo modo, por algum tempo o Capitão Tucker foi o único dono de Mustang em toda a província de Terra Nova e Labrador. E ele aproveitou cada minuto – mais tarde, ele disse que seu carro nunca havia lhe dado problemas, apenas alegria. E que era muito bacana ver as crianças gritando “Mustang!” quando ele passava – mas que às vezes era pego de surpresa por algum curioso que o fazia parar na beira da pista para perguntar sobre o então recém-lançado pony car.
Acontece que não demorou muito para que a Ford percebesse o engano. Passados alguns meses, ao reunir todos os carros da primeira leva para encaminhá-los ao ferro-velho, a fabricante sentiu falta de um deles – e justo o primeiro!
Não foi difícil localizar a concessionária responsável pela venda, nem encontrar o Capitão Tucker. Difícil foi convencê-lo a devolver o carro.
Primeiro, a fabricante tentou comprá-lo de volta – porque, apesar de ter comprado um Mustang que não deveria ter sido vendido, Tucker era o dono legítimo do carro. Mas ele recusou, pois simplesmente gostava muito do carro, e rodou mais de de 10.000 milhas com ele (cerca de 16.000 km).
Tucker só mudou de ideia dois anos depois, quando a Ford lhe fez uma proposta tentadora: em troca do Mustang número 1, ele receberia o Mustang número 1.000.0001. Sim: em apenas dois anos a Ford produziu 1 milhão de unidades – um atestado incontestável do sucesso do pony car.
O carro era um Mustang prata, também conversível, mas com motor V8 289 de 225 cv. O câmbio também era automático, e o carro veio equipado com todos os opcionais possíveis – ar-condicionado, toca-fitas estéreo, freios a disco na dianteira e o chamado Rally Pac, que era nada mais que um conta-giros e um relógio instalados na coluna de direção.
Antes de entregar o Mustang, Tucker foi fotografado com o carro e acabou fazendo parte de mais uma campanha publicitária. Apesar disso, oficialmente ele não é considerado o primeiro comprador do Mustang, mas sim uma mulher chamada Gail Wise, que comprou seu Mustang azul em 15 de abril de 1964 e ficou com ele desde então. Até já contamos a história dela por aqui.
Esta senhorinha foi a primeira pessoa a comprar um Ford Mustang – e está com ele até hoje
O carro do Capitão Tucker foi levado direto para o museu Henry Ford, em Dearborn, Michigan. O Mustang está lá até hoje, e é uma das atrações favoritas do público.
O Capitão Tucker morreu em 2008, mas o homem que vendeu a ele o Mustang continua vivo. Harry Phillips tem hoje 85 anos e,em 2019, teve a chance de encontrar o carro novamente – sua neta, Stephanie Mealey, fez uma campanha na Internet para ajudá-lo a viajar até o museu Henry Ford. Lá, o ex-vendedor ficou maravilhado ao ver que o Mustang estava exatamente igual ao dia em que chegou à concessionária, 57 anos atrás.