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Pensatas

Contando estrelas: precisamos falar sobre o NCAP

Não existe coisa mais perigosa na história registrada da humanidade do que gente que quer “mudar o mundo” ou “fazer a diferença”. Sim a história está cheia de gente que realmente mudou o mundo e fez diferença, mas esses não se achavam em nenhuma missão sagrada. Apenas fizeram o que sabiam fazer o melhor que puderam, e nesse processo, mudaram o mundo.

Não, gente que quer mudar o mundo, que já parte da premissa que sua missão é esta, age muito diferente. O trabalho e a criatividade são apenas meios para atingir objetivos, não a parte central de criar algo realmente diferente. Os fins são o que procuram, e para isso constroem palanques e instituições onde sua visão de futuro pode ser incontestada. Dali vestem o manto da infalibilidade, o de visionário de uma nova realidade inventada por ele mesmo. Amealham seguidores, não os inofensivos curtidores de Instagram, e sim gente que o considera uma forma superior de humanidade, que os segue cegamente.

Henry Ford é um exemplo dos dois casos: inicialmente não queria mudar o mundo; só fazer um carro melhor e mais acessível a todos. Quando mudou o mundo fazendo o tal carro melhor e mais acessível, achou que tinha respostas para todos os problemas da humanidade, que tinha um intelecto superpoderoso, e o dinheiro para fazer algo: anos de loucura despótica se seguiram.

A principal ferramenta para o sucesso desse povo é o medo. Você vai morrer de fome, não vai ter emprego, o mundo vai acabar. Ford usava o dia de cinco dólares como uma arma: sua vida tem que ser como eu digo, sem fumar beber ou fornicar, ou perderás o trabalho bem pago. Teve até um governante famoso, que fez muita coisa boa para seu país, e que mudou mesmo o mundo, mesmo que não da forma que esperava. O medo que propagandeava? Os Judeus vão acabar com a Alemanha. Não é à toa que Hitler era fã de Ford, e vice-versa.

1997 vs 2017: um progresso incrível.

Mas não, não estou aqui dizendo que as NCAPs espalhadas mundo afora sejam entidades do mal. Como vou provar mais a frente, são organizações que muito fizeram para a melhoria do automóvel, e certamente foram instrumentais para melhorar a segurança veicular como um todo. Seu trabalho, principalmente o inicial, não pode ser subestimado: trouxeram uma nova geração de veículos mais seguros para todos. Mas, de uma forma muito parecida com a história de Henry Ford, definitivamente não querem parar só aí.

 

Um pouco de história

O mundo hoje em dia é tão dividido entre esquerda e direita que qualquer análise que fale de um lado ou de outro corre o risco de soar como apologia ou ataque, para um lado ou para outro. Mas qualquer um que gaste um pouco de tempo pensando neste tipo de coisa vai concluir que não existe resposta definitiva, e é exatamente por isso que estas brigas são eternas. O conflito aqui é, no fim, algo bom, pois sempre leva à melhor solução, que não é a perfeita para nenhum dos dois lados. Se não descambar para violência, claro.

Digo isso para dar contexto nas incríveis forças políticas que deram origem a este movimento de melhoria da segurança passiva dos automóveis. Foi um movimento que nasceu não nos departamentos de engenharia de fabricantes, nem em pesquisadores técnicos. Começou num conflito aberto entre um impulso regulatório político e uma indústria que, então havia 60 anos operando sem nenhuma interferência, repudiava tal coisa veementemente. Um conflito de esquerda e direita clássico.

Ralph Nader

O grande protagonista desta história é o americano Ralph Nader. Advogado inteligentíssimo, com diplomas de Princeton e Harvard, Nader projeta-se na mídia em 1965 ao lançar o livro “Unsafe at any speed”, onde mostrava a despreocupação com segurança veicular dos fabricantes americanos. Seu principal alvo era o Chevrolet Corvair, supostamente instável, um acidente esperando acontecer.

Nader é odiado pela indústria até hoje, mas na verdade, o conflito que ele desencadeou era necessário, e inevitável, naquele ponto. Não existia preocupação com segurança veicular dentro dos fabricantes realmente (fora pesquisas diversas), mas não porque as indústrias eram malvadas, e sim porque não vendia. A Ford no meio dos anos 1950 gastara uma fortuna em equipamentos de segurança como painéis acolchoados e cintos de segurança, e as propagandeou extensamente. Mas foi um fracasso total nas vendas, e “segurança não vende” virou mantra.

A indústria, na época, era totalmente livre e, por isso, podia e fazia carros incrivelmente precários em caso de acidente, claro. Não existiam normas a este respeito, e como o mercado não pedia, nunca ia aparecer iniciativas neste campo. A teórica força do mercado, que, segundo a direita, regularia isso, não estava nem aí. Foi necessário Nader apelar ao discurso inflamado e ao medo: os grandes executivos não se preocupam com sua segurança, e pessoas estão morrendo. Medo, de novo, como ferramenta de manipulação.

Nader mirou no comportamento dinâmico, e não na segurança passiva, e tecnicamente, errou. Isto porque o Corvair não era inseguro, apenas diferente com seu motor traseiro e comportamento de Fusca. A GM acabou absolvida de todo processo aberto por ele. Mas a GM mesmo daria um jeito de fazer Nader bem maior do que era.

Corvair: Inseguro a qualquer velocidade?

Desacostumada a ser atacada, a reação inicial da GM foi de se perguntar: quem é este Nader? Como ousa? O que acontece em seguida é uma c*gada, algo humano, que determinaria o sucesso de Nader e de sua campanha.

A GM ao invés de atacar as acusações, que eram infundadas neste caso, ataca a pessoa. Contrata detetives para descobrir sujeiras na vida de Nader, obviamente um comunista. O esquema é descoberto e o povo imediatamente faz da GM vilã, e Nader um herói do povo. Um novo movimento, de defesa dos consumidores, aparece, Nader a frente.

Crash test: anos 1970 é o início para valer

Era algo necessário. Alguma regulamentação, e um mínimo de segurança passiva em acidentes eventualmente aconteceria de uma forma ou de outra. Nos anos 1970, também legislações de emissão de poluentes, limites de velocidade e outras se juntariam às novas normas de segurança passiva. Encontram forte resistência da indústria, e da parcela dos consumidores que não desejava mudanças em seus automóveis, mas eventualmente compromissos são alcançados, e a indústria move-se para frente. Demora para todos se ajustarem a tanta legislação. Durante os anos 1970 os carros pioram em performance sensivelmente, nos EUA.  Durante os anos 1980 começam a melhorar, e ao chegar 1990, os carros voltam aos patamares de performance de antes das legislações, mas agora mais seguros, estáveis, econômicos e limpos. Todo mundo ganhou.

 

Euro NCAP

O movimento que começa nos EUA se espalha lentamente pelo mundo, com alguma resistência. A FMVSS publica as primeiras leis referentes a crash-test em 1973, mas as legislações de crash-test eram ainda precárias, baseados apenas em deformação de estrutura, e não no que interessa realmente, a lesão do ocupante. Durante o início dos anos 1990, muito progresso é feito neste campo, com a adoção das normas europeias de crash em offset a 56 km/h, medindo apenas lesões de ocupantes (além de vazamentos e problemas estruturais graves, claro), a norma ECE R94. A revista alemã auto, motor und sport começa a testar carros e a publicar resultados, o seu sucesso mostrando que uma maneira de tornar pública esta informação era necessária.

Isto ocorria porque os testes legislatórios eram realizados nos fabricantes, sem acesso do grande público. A documentação era emitida e o carro liberado para venda, mas não existia uma forma de comparar a performance de crash. Faltava uma forma de comparar esta performance, da mesma forma que se comparava desempenho, economia, volume interno etc.

Era necessária uma entidade independente para isso. Que publicasse o resultado, para que o público pudesse comparar. Esta ideia inicial, que criou os NCAP, é ótima, e certamente deveria ser o cerne deles até hoje. O primeiro NCAP, o “New Car Assessment Program”, é inaugurado nos EUA nos anos 1980, mas que realmente toma força com a criação do EuroNCAP em dezembro de 1996.

foi uma iniciativa, como a  das legislações, que foi extremamente benéfico em seu início. Usando um teste da ECE R94 (56 km/h, offset de 65%, barreira deformável), a EuroNCAP aumentava a velocidade para 64 Km/h e o resultado era uma catástrofe em 1997: todo mundo atendia a norma de 56 Km/h, mas claro que, a uma velocidade maior, o desempenho sofria. Mas serviu a seu propósito: apesar de nenhum ganhar cinco estrelas, um Volvo já conseguia quatro delas no primeiro teste. Comparação! Um carro era demonstrativamente melhor que outro.

O primeiro teste da EuroNCAP em 1997: todos foram mal

Se comparação pública era a intenção, cumpriu sua meta. Podíamos ver claramente quem era melhor ou pior, e entender a avaliação de estrelas. Mas claro que não ficou só nisso. A entidade não tem como objetivo a comparação pública, mas sim a sagrada busca de “morte zero” no trânsito. E isso muda tudo.

Primeiro o tom é agressivo como era o de Nader: quem tirou zero estrelas é assassino. Mesmo cumprindo todas as normas de segurança necessárias para a venda do carro, não interessa. Fez pouco. Mais! A reação da indústria a uma publicidade deste tipo foi simples: projetou os carros para o novo teste da EuroNCAP. Em alguns anos, ciclos de produtos novos aparecendo, praticamente todo mundo, fora alguns asiáticos baratos, já era 5 estrelas. Os carros ficaram maiores mais pesados e mais caros, e é claro, quem paga a conta é você mesmo, que os compra.

Mas não me entendam mal. Não acharia ruim se tivesse ficado nisso. Se tivessem botado uma norma, severa, e mantido ela. Gostaria do fim das estrelas também, poderíamos comparar lesões direto, em gráficos fáceis de ver. Já fiz alguns desses em minha vida de engenheiro, e se até diretores entendem numa olhada, vocês todos entenderiam. Uma forma de vermos a performance em crash de todos os carros é ótima, desejável, útil, faz progresso. Mas não é este o objetivo deles. É o sagrado “zero mortes”. E isso muda tudo.

O protocolo foi se complicando. No início, era lógico, com a adição por exemplo de impacto lateral e outros casos de crash. A única coisa ruim continuava no tom: ninguém gosta de ser chamado de assassino, então tome mais proteção no veículo, público querendo ou não. Mas onde realmente o angu desanda em minha opinião é quando começam a colocar itens de segurança ativa e avisos mil na equação. São duas coisas diferentes que não deviam ter nada a ver uma com a outra, mas são misturadas aqui num caldo.

Hoje, por exemplo, se você se irrita com avisos de cinto desafivelado, saiba que quem mandou foi a NCAP. Freios autônomos são agora premiados também. Todo tipo de controle de estabilidade e frenagem também. Estaria a NCAP nos levando ao carro autônomo?

Mas o pior é que fica muito mais difícil de comparar a performance passiva, de crash. Tanta coisa diferente influi no resultado que o melhor do NCAP, aquela maneira pública de comparar desempenho em acidentes, desaparece. Alguns carros podem ter mais estrelas que outros, mesmo com desempenho em crash pior, adotando vários equipamentos de série. Proteção a pedestre pontua. Até resgate do acidentado entra na pontuação. Não me entendam mal: todos esses itens de segurança são bons de serem comparados, mas em separado. No mesmo balaio, resultando só em estrelas, confunde.

 

Hoje

Escrevi tudo isso porque recebi esta semana a notícia de que, parte da rodada bianual de arrochamento dos requisitos do EuroNCAP, agora o tradicional teste severo de 64 km/h offset 65% em barreira deformável da entidade vai ser substituído por outro. Agora o carro, a 50 km/h, será impactado em offset 50% por uma barreira deformável em um carrinho de 1.400 kg, vindo de encontro ao carro também a 50km/h. Sim, uma velocidade de impacto de 100 km/h. Parece que agora, onde todo mundo é cinco estrelas, acham que tem que arrochar o critério de novo. Não é novidade: fazem isso desde o começo e não vão parar.

A entidade está presa neste procedimento de sempre tornar os testes mais exigentes. Se todos são ótimos e ganham 5 estrelas, qual é a sua utilidade? Sem esta escalada, ela deixa de existir, de ser útil. Mesmo quando deixar de ser útil, ela nunca admitirá isso, claro. Continuará fazendo como sempre fez.

Aqui temos que parar e pensar um pouco aonde queremos chegar. No início, e nos últimos 30 anos, o NCAP e as legislações foram úteis para o avanço da segurança veicular, e perdemos pouco com isso. Carros ficaram maiores mais pesados e mais caros, claro, mas perdemos pouco. Agora existe uma lei dos retornos diminuídos que está em efeito. Antes, qualquer cinto de segurança obrigatório diminuía uma quantidade imensa de mortes no trânsito. Agora, precisa-se de muito, muito mais, para melhorias pífias.

A armadilha aqui é o pensamento do carro assassino. Seriam como armas de fogo, puxando o gatilho sozinhas. Mas uma arma de fogo existe para ferir, o carro não. Na verdade, hoje nos protege muito, uma armadura de incríveis poderes. Olhar um crash de 64km/h ao vivo é entender isso. Os NCAP usam a palavra “morte” como arma, para causar medo e acabar com argumentos contra. Aqui me lembro do discurso do Luís Roberto Barroso, do STF:

“Eu entendo e respeito quem tem o entendimento de que bastaria um caso de reforma para justificar a exigência do trânsito em julgado. Mas por essa lógica, deveríamos fechar todos os aeroportos, porque apesar de todos os esforços, há uma margem mínima de acidentes. O mesmo vale para a indústria automobilística, para a construção civil e quase todas as atividades produtivas. Viver envolve riscos. E tornar a vida infinitamente pior não é capaz de eliminá-los.”

O carro é totalmente seguro na garagem. Mas não é para isso que carro existe. Toda liberdade pressupõe algum risco. Não está na hora de repensarmos o quanto de nossa liberdade vamos perder para mais um pouco de segurança? Um carro atual é seguro pacas, tanto ativamente como passivamente, e graças, não nego, a este NCAP também. O que vem agora a mais? Abandonar a direção por módulos autônomos, ou por mastodontes gigantes onde a prioridade é SÓ segurança?

E tem ainda outro problema. Vou usar o apito de cinto desafivelado como exemplo aqui, apenas, mas vale para um monte de outras coisas. Quem disse que isso ajuda em algo? Em 1979 poderia ajudar, mas em 2020? Quem esquece cinto hoje, desculpa, merece qualquer destino cruel que venha a ter. Não quero eu ficar ouvindo pipipi enquanto espero o portão de casa abrir, e alguém tirou a jaca. Eu uso cinto! Estes caras estão me perturbando todo santo dia, decidindo o que vai no meu carro.

Mais que isso: alguém, um cara que bate carro e mostra filmes no YouTube, está ditando como seu carro será. Não o governo nem os fabricantes, outro cara! O fato de que não se pode desligar o pipipi do cinto é por que o protocolo não deixa. Olhe qualquer novo protocolo emitido pelos NCAP, e veja como será seu carro no futuro.

Para os fabricantes, ficou fácil: coloca tudo que a NCAP pede aí, porque todo mundo fará. Para a NCAP, o ciclo de testes e sua missão sagrada de mudar o mundo, também, ninguém mais parece ter coragem de falar basta. Sobra a conta para quem? Para nós claro.

Vamos pagar câmera de ré, radar, freio autônomo. Vamos ficar cada vez mais para dentro de um carro cada vez maior só por fora para nos proteger, não eventualmente (quiçá nunca) como num acidente, mas todo santo dia. Até o dia que proíbam os carros dirigidos por gente, porque obviamente nunca chegaremos no objetivo zero. Queira ou não, é onde este curso de ação nos levará. E do jeito que parece, com aplausos ensurdecedores.