Crossover é a palavra inglesa para definir, em seu sentido mais básico, o local em que ocorre um cruzamento ou o resultado de um cruzamento. Por associação, ela também indica uma mudança de uma atividade para outra, ou de uma finalidade para outra. É daí que vem a ideia de batizar um utilitário feito sobre a plataforma de um carro de passeio com essa palavra.
Mas voltando ao significado básico da palavra, decidimos dar uma olhada em um outro tipo de crossover: os carros que são fruto do cruzamento de duas marcas. Feitos com motor de uma e chassi de outra. Ou carros de uma marca que foram desenvolvidos por outra. A primeira parte da lista é essa aqui:
Citroën SM
No início dos anos 1960 a Citroën começou a trabalhar em uma variação esportiva para o seu DS. Como já contamos por aqui antes, o DS deveria ter recebido um motor de seis cilindros, mas, no fim das contas, ganhou uma versão evoluída do quatro-cilindros do Traction Avant. Assim, ele era confortável, espaçoso e seguro, mas não muito rápido.
Para resolver este problema a Citroën começou a desenvolver o Projeto S, que deveria dar ao DS o motor mais potente que ele nunca recebeu, mas o negócio evoluiu tanto que depois de oito anos ele já havia se tornado um carro completamente diferente. Só faltava o motor, que estava sendo desenvolvido desde o lançamento do DS, em 1955.
Mas um importante acontecimento em 1968 mudou essa história. Você sabe do que estamos falando: a compra da Maserati pela Citroën. Os franceses queriam justamente o know-how em motores de alto desempenho dos italianos porque, para eles, seria uma tacada de mestre fazer um carro que tivesse sua suspensão hidropneumática e um motor esportivo da Maserati.
Nesse caso, seria o primeiro V6 da Maserati, que precisou atender algumas exigências do projeto: ele teria que ser um motor compacto e não poderia ter mais de 2,8 litros, pois acima disso os impostos seriam muito maiores. O resultado foi um V6 de 2,7 litros que, alimentado por três carburadores Weber de corpo duplo, produzia 170 cv.
A suspensão era basicamente a mesma do DS, porém refinada para ficar mais adequada à proposta esportiva do SM. Os freios usavam discos nas quatro rodas e faziam parte do sistema hidráulico que também integrava a suspensão, faróis direcionais e direção assistida. A carroceria tinha a típica excentricidade francesa da época, com as rodas traseiras parcialmente cobertas, uma dianteira longa e a traseira tipo kamm, que ajudava na aerodinâmica do grand routier, o que, por sua vez, o ajudava a ultrapassar os 225 km/h. Parece pouco, mas era o mais rápido de sua época, superando rivais como o BMW 3.0 CS, o Mercedes 450SLC e o Jaguar E-Type Série 3.
Mesmo assim ele não encontrou muitos clientes na Europa, embora tenha sido razoavelmente bem-sucedido nos EUA. Para piorar, em 1974 a Citroën faliu e foi comprada pela Peugeot, que diante do baixíssimo número de vendas do SM, decidiu tirá-lo de linha em 1975.
Mercedes-Benz 500E W124
Na metade dos anos 1980 a Mercedes ainda não usava seu atual sistema de classes, e dividia as categorias, basicamente, pela motorização de seus carros. O modelo compacto usava o motor de quatro cilindros, o modelo médio usava motores de seis cilindros, e o modelo grande usava motores de seis e oito cilindros.
Enquanto isso, não muito longe de Stuttgart, Hans Werner Aufrecht e Erhard Melcher, donos da AMG, faziam umas combinações que a Mercedes não estava muito disposta a fazer, como por exemplo, cabeçotes de quatro válvulas por cilindro para o motor M117, personalizações esportivas e, acima de tudo, engine swaps.
Entre estes swaps estava a instalação do V8 M117 do Classe S da época no 300E. A AMG pegava o motor 5.4 da versão 560SEL, ampliava diâmetro e curso com componentes dos motores a diesel, o que resultava em 6 litros de deslocamento e 385 cv. Para completar o pacote, ele ganhava novos para-lamas mais largos e um spoiler traseiro para reduzir o arrasto aerodinâmico. Era o 300E 6.0 AMG, que acabou conhecido como Hammer por seu porte robusto e desempenho brutal para a época: a aceleração de zero a 100 km/h era cumprida na casa dos 5 segundos e a velocidade máxima beliscava os 300 km/h.
O carro foi bem aceito, mesmo sendo uma versão aftermarket, especialmente porque era garantido pela Mercedes-Benz, que tinha uma parceria com a AMG para atender os carros. O sucesso do AMG era ótimo para a Mercedes, mas também era uma mensagem dupla. A primeira é que havia demanda para um 300E com motor V8. A segunda é que a Mercedes poderia faturar mais dinheiro se fizesse esse swap por conta própria.
O problema é que a Mercedes não tinha espaço em suas linhas de produção para fazer seu próprio “Hammer”. A solução foi chamar os vizinhos da Porsche (a Mercedes também fica em Stuttgart), que tinham um cantinho sobrando em sua fábrica de Zuffenhausen e não se importaram em fechar um contrato para produzir o 500E para a Mercedes.
Na verdade, a Porsche também deu uma força no desenvolvimento do sedã: foram eles que afinaram o V8 M119 de cinco litros e comando duplo para produzir 325 cv, foram eles que acertaram a suspensão e também as relações do câmbio automático de quatro marchas. O processo de fabricação levava 18 dias, e envolvia um vai-e-volta constante entre as duas fábricas. Por esse motivo ele custava o dobro do preço da versão 3.0 com o motor M103 seis-em-linha.
O valor compensava no desempenho: zero a 100 km/h em 5,5 segundos e velocidade máxima de 260 km/h. Com essas e outras qualidades, o 500E vendeu bem, com 10.500 unidades produzidas entre 1991 e 1995 e só saiu de linha quando a nova geração chegou, com versões produzidas pela AMG. Já a Porsche, engatilhou um contrato antes mesmo de terminar a produção do Merc. O carro? A primeira super perua da história.
Audi RS2
O Audi RS2 (ou a Audi RS2, se preferir) é o carro mais lembrado quando falamos em “crossovers” de marcas. A perua foi, na prática, a primeira wagon feita pela Porsche, e como o Mercedes, além da mera fabricação, ela também teve o toque da marca de esportivos em seu desenvolvimento. Um toque muito mais extenso, aliás.
O motor 2.2 turbo foi todo recalibrado pela Porsche para produzir os 315 cv que levam a perua de tração integral aos 100 km/h em 4,8 segundos e à velocidade máxima de 262 km/h — 2 km/h a mais que o Mercedes V8.
O visual, como já cansamos de ver no FlatOut, tem a lanterna traseira integral como o 993, os piscas e retrovisores do 993 e as rodas Porsche Cup do 964, necessárias para abrigar os discos de freio de 322 mm. Até mesmo o emblema da perua tem o logotipo da Porsche combinado ao da Audi, deixando claro que a RS2 é um filho legítimo do cruzamento das duas marcas.
Pagani Zonda e Huayra
O nome é italiano, o design também, assim como o local de fabricação dos supercarros. E ele até ronca como um supercarro italiano, mas o que está embaixo da carroceria de fibra de carbono de todo Pagani é um legitimo panzer V12 da Mercedes-AMG — o M120 atmosférico de 6 a 7,3 litros no Zonda e o M158 biturbo de seis litros no Huayra.
O cruzamento de motor alemão com origem italiana é culpa dos argentinos. Quando Horacio Pagani decidiu criar seu próprio carro depois de ser ignorado pela Lamborghini ao pedir uma autoclave para fibra de carbono, seu amigo Juan Manuel Fangio, que manteve relações com a Mercedes-Benz até o fim de sua vida como representante da marca na Argentina, recomendou que o jovem Pagani procurasse os alemães para encontrar um motor. E encontrou.
McLaren F1
Hoje a McLaren tem seus próprios motores, um par de V8 derivados do mesmo projeto, com 3,8 e 4 litros, dois turbos e potência variando entre 570 cv e 720 cv. Mas na virada dos anos 1980 para os anos 1990, quando eles decidiram produzir o F1, eles tiveram que procurar um fornecedor para desenvolver a usina de força daquele que se tornaria o maior ícone de sua época, o McLaren F1.
O desenvolvimento começou ainda nos anos 1980, quando a Honda fornecia os motores para a equipe de Fórmula 1 da McLaren. Por isso, depois de conhecer o NSX — que influenciou profundamente o acerto dinâmico do F1 — Gordon Murray perguntou aos japoneses se eles não desenvolveriam um V12 atmosférico para seu supercarro. Provavelmente afetados pela crise financeira que acometeu a Ásia na época, eles recusaram.
Murray então perguntou à BMW, com quem já havia trabalhado no início dos anos 1980, na Brabham, e os alemães toparam o desafio. Ele precisava ter 12 cilindros e 600 cv. A BMW chamou o mago dos motores Paul Rosche e ele entregou o S70/2 com 627 cv. O negócio saiu melhor que a encomenda. O resto da história você já conhece muito bem.