Quando sai das pranchetas para a linha de montagem, e da linha de montagem para as concessionárias, um automóvel tem um segmento, um público alvo e um propósito bem definido. Pegue, por exemplo, o Nissan March. Fabricado desde 1982 e agora em sua quinta geração, o March é o supermini da Nissan – no Brasil o chamamos de compacto, e seus rivais são o Volkswagen Gol, o Hyundai HB20, o Renault Sandero, o Chevrolet Onix. Todos estes são carros pequenos que, no Brasil, muitas vezes fazem o papel de único veículo da família. Lá fora, por outro lado, um compacto geralmente é o segundo ou mesmo o terceiro carro de uma casa. Em todos os mercados, porém, os carros pequenos e baratos têm o objetivo de transportar pessoas e objetos de forma econômica, prática e ágil, sem dar muitas despesas com manutenção e consumo de combustível.
Mas aí aparecem os entusiastas. Via de regra os compactos são carros leves, com entre-eixos relativamente curto – duas características bastante desejáveis em um project car de pista e, com isto, muitos deles acabam se tornando exatamente isto. A cartilha do hatchback de track day é conhecida: motor com preparação leve (comando de válvulas mais agressivo, retrabalho de fluxo do cabeçote, melhorias no sistema de alimentação e talvez até um turbo), alívio de peso, suspensão mais baixa e firme e pneus melhores já são capazes de garantir divertimento, mesmo com tração dianteira – como a gente explica neste post!
Acontece que sempre há quem queira mais. E, de forma improvável, use um hatchback de tração dianteira como base para algo muito mais especializado, mesmo que desafie o senso comum. Algo como o “Mental March”: um exemplar de terceira geração do pequeno hatchback da Nissan que se tornou algo completamente diferente do que a fabricante imaginou quando ele foi lançado, lá em 2002: um hatchback com motor V6 central-traseiro, dois turbos e pelo menos 550 cv nas rodas de trás. É como uma versão JDM ainda mais radical do Renault R5 Turbo, que também usava um V6 atrás dos bancos dianteiros, porém montado na longitudinal.
O projeto pertence a uma oficina chamada The Lab Limited, que fica em Hamilton, na Nova Zelândia – um país que, dada sua proximidade geográfica como Japão, recebeu diversos carros “exclusivos” da Terra do Sol Nascente, incluindo o March de terceira geração. A oficina é tocada pelo mecânico, engenheiro e entusiasta Glenn Hodges, que participa de provas de time attack com o Mental March. A modalidade coloca os carros na pista um de cada vez em uma disputa contra o cronômetro e, com isto, elimina o risco de colisões envolvendo vários carros – o que possibilita um regulamento mais brando quanto a modificações nos veículos, que geralmente abusam dos aparatos aerodinâmicos e das preparações extremas.
O Nissan March de Glenn Hodges é um belo exemplo da criatividade e, bem, da falta de limites (no melhor sentido possível) dos adeptos do time attack. Para se ter ideia, dois Nissan March batidos foram usados para montar o monobloco e a carroceria, que foi modificada ao extremo com para-lamas mais largos (feitos de lata, e não fibra!), um enorme splitter frontal e uma asa traseira gigantesca – características comuns a todo carro de time attack, com o intuito de gerar a maior quantidade possível de downforce.
A carroceria foi reforçada com uma gaiola de proteção integral e o monobloco foi modificado com um subchassi para acomodar o motor central-traseiro e a suspensão independente do tipo McPherson com braços assimétricos.
O motor é um V6 de 3,5 litros “híbrido”: o bloco é de um Nissan Maxima, mas os cabeçotes são do 350Z, assim como o coletor de admissão. Por dentro, pistões forjados Wiseco e bielas Eagle, também forjadas. A alimentação fica por conta de uma ECU Link, programada para etanol E85, além de injetores Injector Dynamics ID1300. Já a sobrealimentação é proporcionada por dois turbocompressores Garrett GT2860RS.
O resultado: 568 cv e 71,3 mkgf de torque nas rodas traseiras, moderados por uma caixa manual de seis marchas vinda do Nissan Sentra. Hodges já disse mais de uma vez na página da The Lab no Facebook que procura manter-se fiel à marca na medida do possível – assim, o Mental March também usa semi-eixos e pontas de eixo do Nissan Maxima e pinças de freio do 370Z.
No entanto, em um projeto desta magnitude é inevitável (e até recomendável) usar componentes feitos sob medida, dimensionados exatamente para o carro em questão. Assim, o March da The Lab usa discos de freio Z1 Motorsports ventilados, suspensão amortecedores do tipo coilover SH com molas King e rodas DTM Gravity de 18×9 polegadas na dianteira e 18×10 polegadas na traseira.
Com este setup o March já participou de dezenas de provas de time attack regionais na Nova Zelândia. Recentemente, porém, o câmbio simplesmente não aguentou a força do motor, o que levou Glenn Hodges a buscar uma solução ainda mais radical para seu monstrinho: um sistema de tração integral, que ainda está na fase de definição dos componentes.
Como mostram as publicações mais recentes na página da The Lab, possivelmente será utilizado um eixo traseiro de Nissan 370Z adaptado para a dianteira do March. Além disso, o motor será reposicionado para a longitudinal a fim de viabilizar o novo drivetrain.
Como já é sabido por todo mundo aqui: um project car, por mais que pareça pronto, nunca fica pronto de fato.
Sugestão do leitor George Oliveira