Lembra dos tipos de motoristas que aparecem quando começa a chover forte na estrada? Eu falei deles nesta matéria, que foi inspirada por esta outra, sobre os maus motoristas que se acham bons de braço. A chuva é a condição adversa mais comum que um motorista ou piloto encontra em sua rotina, perdendo apenas para a falta de luz natural — afinal, anoitece mais do que chove.
Os quatro costumes do mau motorista que se acha bom de braço
O anoitecer às vezes é benéfico para o trânsito e para as corridas. Nas estradas, o trânsito fica mais calmo, com menos veículos na pista. Nas corridas, a temperatura diminui, a aderência dos pneus melhora em relação ao asfalto super-quente. Já a chuva… ela literalmente “molha o rolê”. Vantagem na chuva só existe se você estiver atravessando um incêndio ou se estiver disputando uma corrida com um carro inferior ao dos rivais. Quando a relevância da máquina é reduzida ou desaparece, a habilidade do piloto se sobressai.
É claro que pilotar na chuva é uma ação completamente diferente de dirigir na chuva. Na rua ou na estrada, você não precisa chegar antes dos outros, você só precisa chegar. Mas é justamente pelo caráter competitivo das corridas que a pilotagem na chuva pode nos ensinar algo sobre dirigir com segurança debaixo de um aguaceiro de verão, por exemplo. Com alguns fundamentos da pilotagem na chuva, você evita se tornar um mau motorista que se acha bom de braço e passa a ser um motorista consciente.
É claro que esse papo de segurança no trânsito é empolgante como uma reunião de condomínio, então, para não ser o Ned Flanders do FlatOut, eu decidi procurar uma fonte bem mais interessante que um livreto oficial de direção defensiva. Não por acaso, eu encontrei o livro “A Arte de Pilotar”, do Emerson Fittipaldi — que foi baseado em uma série de depoimentos do piloto ao jornalista Gordon Kirby.
Nele, Emerson fala sobre diversas situações de sua carreira nas pistas, com um foco especial na pilotagem e no equipamento, e reserva um trecho à pilotagem na chuva, que transcrevo aqui com comentários sobre os aspectos técnicos.
Quando chove, e a pista está encharcada, você precisa normalmente amolecer a suspensão, para conseguir mais aderência e melhor tração. Quando chove, você está sempre à procura de mais aderência.
Se você já está na pista, cinco minutos antes da largada, e começa a chover, há algumas coisas básicas que se pode fazer em relação ao carro. Você pode, por exemplo, desligar a barra da suspensão traseira. Pode alterar, também, o equilíbrio dos freios, colocando mais para a traseira, de modo que você não corra o risco de bloquear as rodas dianteiras. Se seu carro tiver aerofólios, você pode diminuir o ângulo das asas dianteiras, para combater a tendência a sair de traseira que ocorre numa pista molhada.
Numa situação de emergência, quando você não previa que iria chover durante a corrida, estas são as mudanças básicas que pode fazer no carro.
A aderência dos pneus é afetada diretamente pela carga sobre eles — é por isso que carros de arrancada com tração traseira, têm um acerto de compressão dos amortecedores mais macio: a transferência de carga para a traseira, natural da arrancada, afunda a suspensão e aplica mais carga sobre as rodas, otimizado a tração pelo aumento da aderência.
Portanto, amolecer a suspensão, como sugere Emerson, faz com que a transferência de carga nas acelerações, frenagens e mudanças de direção, otimizem a aderência do carro sob chuva. A desativação da barra estabilizadora traseira visa o mesmo efeito: aumentar a rolagem para que haja transferência de peso. A barra ativada torna a traseira mais rígida, potencializando o risco de saída de traseira nas curvas.
Já o acerto da asa dianteira mencionado por Emerson, reduz a carga sobre a dianteira, resultando em dois efeitos: uma mudança no equilíbrio entre os dois eixos, com uma distribuição dinâmica mais traseira; e uma tendência mais sub-esterçante em vez de sobre-esterçante. Estes pontos são fundamentais para compreender como as reações do carro interferem no equilíbrio sob a chuva e, consequentemente, o que não fazer ao volante para não desequilibrar o carro.
Se tiver tempo para se preparar para correr na chuva, pode ir mais além. Pode regular os aerofólios, ou até trocá-los, para obter maior pressão aerodinâmica e pode usar molas e amortecedores mais suaves. É possível também jogar com a pressão dos pneus: se estiver caindo uma chuva fraca, baixe a pressão; se estiver chovendo muito forte, e houver perigo de aquaplanagem, aumente a pressão para criar uma parte mais saliente no cento da banda de rodagem, que ajuda a drenar a água para os lados.
Apesar da aparente contradição sobre a aderência mencionada no início do texto, note que a dica da pressão dos pneus tem a ver estritamente com o risco de aquaplanagem. O asfalto liso, porém não encharcado, sem lâmina ou poças d’água, exige o uso de uma calibragem mais baixa para aumentar a superfície de contato dos pneus, otimizando a aderência.
Contudo, quando se tem uma lâmina d’água ou água empoçada, o aumento da área de contato aumenta o risco de aquaplanagem. Nesse caso, a pressão mais elevada faz com que a banda de rodagem fique com a parte central mais pronunciada (“over inflated” na imagem acima), reduzindo a área de contato e, consequentemente, reduzindo o risco de aquaplanagem — isso, claro, sem contar a questão do escoamento pelos sulcos da banda de rodagem.
Você deve ser muito mais cuidadoso na chuva. Eu gosto de pilotar no molhado, desde que não seja numa pista tão cheia d’água que você comece a aquaplanar. Quando a pista está apenas molhada, e você tem alguma tração e boa visibilidade, dá para curtir guiar um carro de corrida. É divertido. Não é que você dirija mais agressivamente, mas usa muito mais as mãos e os pés, porque na chuva o carro está sempre derrapando.
No inverno de 86 quando fui treinar em Riverside, estava chovendo bastante. Sempre que eu saía do cotovelo, o carro escapava de traseira e as rodas giravam em falso. Isto acontecia tão rápido, que eu tinha que usar uma só mão para contra-esterçar e corrigir a direção do carro, porque se usasse as duas seria lento demais. Eu só conseguia fazer isto porque a pista estava molhada, e o volante ficava leve, mesmo numa curva muito fechada. Em circunstâncias normais, o volante de um carro de corrida atual é muito pesado, e eu não conseguiria jamais fazer a mesma coisa, mesmo numa situação de emergência.
Do mesmo modo, você tem de jogar com o acelerador para encontrar a dosagem correta que lhe dê tração e equilíbrio, e para conseguir o máximo de aceleração na saída das curvas. Chegar ao máximo da aceleração é muito crítico na chuva, e é preciso ter muita cautela ao apertar o acelerador ao sair das curvas. No final da reta, para poder frear de maneira eficiente e segura numa pista molhada, você deve ser bem progressivo ao pisar no pedal do freio. A freada tem de começar de leve, e depois você deve pisar forte no pedal, para obter uma boa transferência de peso da traseira para a dianteira do carro.
As dicas aqui, claro, se aplicam somente ao uso em pista. Se você tentar “jogar com o acelerador”, vai acabar saindo de frente nos carros comuns de tração dianteira que a maioria de nós tem em casa. O jeito aqui é acelerar progressivamente — e também frear progressivamente. Nos carros turbo modernos, uma boa é recorrer ao short shifting, saindo de curvas com marcha alta para ter uma menor aplicação de torque e minimizar o risco de perder a dianteira ou a traseira.
Na frenagem, a técnica mencionada pelo Emerson só funciona na pista, quando se quer usar uma leve rotação da traseira para apontar o carro. Uma alicatada forte na entrada da curva em um carro de rua irá fazer você perder a traseira pela transferência de peso para a dianteira, afinal, ele não tem um motor na traseira como os monopostos pilotados pelo Emerson.
Nesse caso, o jeito é antecipar as frenagens começando com o freio motor antes de pressionar o pedal de forma progressiva e suave. A pressão e alívio dos pedais, aliás, sempre devem ser suaves sob chuva, nunca bruscas pois isso causa transferências de carga pouco sutis, que desequilibram o carro.
Tudo muda de figura quando a pista fica coberta de água parada e o carro começa a aquaplanar nas poças d’água. Reconhecer uma situação destas é muito importante: se chover forte, você deve prestar atenção nas poças que se formam e tentar passar fora delas. Se a água cobrir toda a pista, tente ficar no meio, onde deve haver menos água devido ao perfil da pista. Mesmo se a camada d’água parecer igual ao longo de toda a largura da pista, você deve tentar andar pelo meio, pois pelo menos terá cinquenta por cento de chance de escapar de uma derrapagem para um dos lados.
Nesse trecho as dicas do Emerson se aplicam também à estrada. Fique atento ao fluxo de água sobre a pista, onde ela escorre, onde ela se acumula. Procure o trilho formado pela passagem dos outros veículos — o spray dos pneus é, na prática, a retirada de água da pista. Ali haverá menos risco de aquaplanagem.
Em situações normais, o meio da pista é realmente o ponto mais alto — toda rodovia tem uma curvatura leve em sua superfície para otimizar a drenagem da pista —, contudo, a realidade é que muitas rodovias estão em condições menos que ideais, então as deformações podem mudar o escoamento/acúmulo de água na pista. Esteja sempre atento e fuja dos grandes volumes.
A primeira coisa que se deve fazer quando o carro começa a hidroplanar é aliviar o acelerador. Se acelerar, as rodas traseiras vão girar em falso e desequilibrar o carro. Tire o pé do acelerador, mas sempre com muito cuidado. Tenha consciência de que o carro está flutuando, e que você perdeu o contato com o chão. Não perca a esperança. As vezes, parece que tudo está perdido, mas ainda há uma chance de recuperação. Nunca entre em pânico.
Tire o pé e tente manter o carro apontado na mesma direção de pista. À situação pode parecer difícil, mas você pode salvar o carro de uma batida. Outras vezes, não há nada o que fazer, e você não é capaz de fazer nada nem para salvar a sua pele.
A aquaplanagem não avisa com antecedência. Você só a percebe quando ela já aconteceu. Às vezes acontece só em uma roda, às vezes em um lado do carro, às vezes com o carro todo. Você sente uma leve balançada no carro nas aquaplanagens de roda ou unilaterais, que acontecem em poças menores. Uma aquaplanagem raramente é longa, mas é suficiente para causar um acidente caso você reaja da forma errada.
Quando o carro aquaplana por inteiro, você sente a direção “boba” pois os pneus perderam a resistência do asfalto. Eles estão sobre uma lâmina d’água. Por isso, resista ao reflexo de corrigir aquele balanço que você sentiu ao passar em uma poça. Apenas mantenha a direção firme em linha reta e alivie o acelerador suavemente — nunca de forma abrupta, pois isso pode desequilibrar o carro.
O correto e seguro é seguir a trajetória mais seca que houver na pista, mas, às vezes, você ganha tração e tempo guiando fora do trilho, onde há menos borracha misturada com a água, o que forma uma lama muito escorregadia. Quando há tráfego na chuva, é preciso tomar muito cuidado devido à falta de visibilidade. Eu sempre tento ficar um pouco para o lado, em relação ao carro que está andando na frente, para ter o máximo possível de visão dentro das condições do momento.
Lembra daquele caso dos dois tipos de motoristas que aparecem na chuva? Aqui está uma situação que eles ignoram: fugir do spray dos outros carros para enxergar alguma coisa. Antecipe a ultrapassagem: saia de trás do caminhão/carro com uma distância maior que o normal para ter visibilidade, e execute a ultrapassagem de forma que você permaneça o menor tempo possível no meio da névoa de água.
Se você antecipar a ultrapassagem, conseguirá ver o que há à frente dela, então atravessá-la é como mergulhar na piscina de olhos fechados — você sabe o que há do outro lado.
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