É o fim de uma era. Um clichê literário que vale a pena ser empregado neste caso, porque é mesmo o fim de uma era: a Dodge apresentou a versão de despedida do seu já icônico muscle car do século 21: o Challenger Demon 170.
E ela fez isso do jeito certo, da melhor forma possível para coroar a história dos muscle cars e a história da própria marca: usando um motor V8 supercharged com nada menos que 1.040 cv. Em algum lugar, os Ramchargers, Carroll Shelby, Walter Owen Bentley e até mesmo Zora Arkus-Duntov podem descansar em paz. Seu legado foi honrado.
A permanência do Challenger até 2023 e sua despedida são um símbolo do nosso tempo. Um tempo incerto, que pretende mudar tudo sem saber ao certo como fazer isso. Há quem siga o instinto de sobrevivência e tente se adaptar a essas mudanças para ver o que acontece e, quem sabe, emergir mais forte no futuro. Há quem simplesmente abrace a revolução de olhos fechados, em uma espécie de salto de fé — o que também significa queimar o mapa que o levou até ali e torcer para que tudo acabe bem.
A Chrysler decidiu correr para o abraço. Decidiu matar o motor a combustão e apostar na eletricidade. O primeiro sinal do seu futuro próximo foi quase positivo. O carro é legal, mas precisa melhorar muito para ser tão legal quanto o que ela está deixando para trás. Engraçado… parece que foi ontem que a Dodge celebrou a sabedoria dos centenários…
“Never ever forget where you came from” (Nunca se esqueça de onde você veio), dizia o ator Lennie Bluett ao encerrar o vídeo
O Dodge Challenger foi um carro importante — um dos mais importantes de seu tempo. Desse nosso tempo. Ele era um carro antiquado, sem nenhuma tecnologia inventada depois de 2010. Sua plataforma foi atualizada, mas o conceito original (LX, da era DaimlerChrysler) completou 19 anos neste ano e isso não o impediu de ser o muscle car mais vendido no mundo em 2022, superando o Ford Mustang (que teve seu pior ano) e o esquecido Chevrolet Camaro por uma ampla margem.
Por que o Dodge Challenger (ainda) é um dos carros mais importantes em produção atualmente?
O que isso significa? Que apesar desse futuro elétrico que a Stellantis decidiu para a Dodge, o público ainda está interessado em comprar um carro “antiquado” e “beberrão”. Não por essas qualidades, ou por ser politicamente incorreto. Ele foi o carro escolhido por quase 40% do público consumidor porque simplesmente entregou algo que estas pessoas queriam.
E talvez ele tenha conseguido atender tão bem as demandas do público justamente por que, nestes tempos de mudanças rápidas, ele se recusou a mudar. Ele se manteve o mesmo carro, com lentas evoluções – exatamente como nós, humanos, mudamos.
O Challenger de 2023 é o mesmo carro de 2008, com o amadurecimento natural da passagem do tempo, e não uma criatura completamente nova, baseada na tendência do momento e que irá mudar completamente dali a alguns anos para se adequar à nova tendência.
Novidades são boas, mas novidades o tempo todo anulam nossa percepção da realidade em si. O que é útil, o que é fútil, o que é bom, o que é ruim? Você não sabe porque não tem continuidade. Lembra do seu avô dizendo que carro bom era o Volkswagen (Fusca), porque ele não desvaloriza e tem peça em todo lugar? É isso. O tempo, a continuidade criou essa percepção.
No caso do Challenger, especificamente, ele não aderiu à incerteza dos carros elétricos (viu o que a Alemanha está fazendo?), ele não se preocupou com a questão ambiental, porque ele não é o culpado por ela. Ele só se preocupou em entregar o que as pessoas sempre esperaram de um muscle car: potência de sobra, visual agressivo e diversão fácil ao volante. São qualidades já conhecidas e esperadas, algo a que podemos nos agarrar como referência em um tempo de mudanças constantes. Veja como o Mustang hoje tem qualidades tradicionalmente encontradas em esportivos europeus e isso fica claro.
Por isso também o Challenger é uma ligação direta com o passado. Aquele passado que muita gente romantiza, outros sentem falta. Ele também atende esse anseio, possibilita viver um pouco daquilo nos dias de hoje. E essa ligação é algo que a Dodge fez questão de manter por todo o ciclo do Challenger, e a elevou a um novo patamar nesta versão de despedida.
Pense no Hemi Dart, um carro de arrancada vendido na concessionária em 1968. Um carro que tinha vidros mais finos e uma cinta de lona substituindo a máquina do vidro da janela para reduzir o peso. O Dodge Challenger Demon 170 tem um pouco dele.
Pense também nos motores Hemi sobrealimentados dos Ramchargers, os engenheiros da Chrysler reunidos em forma de equipe de arrancada. A verve desses caras está profundamente entranhada no espírito desse carro.
Lembre do Dodge Viper, o “Cobra moderno” de Lee Iaccoca e Carroll Shelby, que foi embora sem uma despedida digna, mas que foi a coisa mais insana lançada pela Dodge até a chegada do Challenger Hellcat e seus derivados. Afinal, ele tinha um V10 de 8 litros (ou 8,3 e 8,4 litros mais tarde) na sua imensa dianteira. Não tinha airbags, ABS ou controles de tração e estabilidade. Uma verdadeira cadeira elétrica vendida nas concessionárias e lojas de usados para qualquer um com um punhado de dólares. Há um pouco dessa loucura no Demon 170.
Ramchargers: o grupo de jovens engenheiros que transformou a Chrysler em um ícone das arrancadas
E pense também em tudo o que o Challenger entregou nos últimos anos: o Hellcat de 717 cv, depois o Demon de 852 cv que não tinha nem bancos adicionais de série e usava o ar-condicionado para resfriar a admissão do motor. Depois o Hellcat Redeye, um verdadeiro “sangue-no-zóio” que entregava 808 cv, seguido pelo SRT Super Stock de 818 cv. A Dodge sabia que a festa estava acabando e não haveria outra. Ela precisava “go like hell some more“.
O resultado é o Dodge Challenger Demon 170. Um muscle car baseado em uma plataforma de quase 20 anos, com um motor de 20 anos, que pesa 1.940 kg e que, mesmo assim, tem 1.040 cv, 130,4 kgfm e pode ir do zero aos 100 km/h em 1,66 segundo. E pensar que eu perdi tempo explicando o porquê de ele ser tão desejado pelo público.
A última plataforma
Vamos por partes: a plataforma de quase 20 anos é a plataforma LX da Chrysler, da qual deriva a versão encurtada usada pelo Challenger, a LC.
Ambas são fruto da era DaimlerChrysler e, por isso, usam a mesma suspensão dianteira do Mercedes Classe S W220, e a suspensão traseira independente do Mercedes Classe E W211, que, por sua vez é uma derivação da suspensão traseira da geração anterior da Classe E, a W210 de 1996 (!). A diferença é que a Dodge incluiu uma barra estabilizadora que não havia nos Mercedes.
Em 2014 o Challenger passou a usar uma outra variação da LX, batizada LA. A arquitetura é basicamente a mesma, porém com alterações para permitir o uso da transmissão ZF 8HP, que substituiu a antiga 722.6/5G-Tronic/W5A580 da Daimler. A suspensão, apesar de ser chamada de “completamente nova” pela Chrysler, na época, tem somente a calibragem modificada, mas não o arranjo em si.
O último motor
Explicada a plataforma, hora de falar do motor old-school. Sim, ele é vareteiro — ou seja, tem comando no bloco e válvulas no cabeçote acionada por varetas que empurram os balancins e acionam as válvulas (daí “push rods” – bastonetes que empurram). E ele usa um “antiquado” compressor de polia em vez dos mais eficientes turbocompressores. Ah, e apesar de ser um Hemi, ele não tem câmaras de combustão hemisféricas.
O motor é conhecido como 6.2 Demon, e é uma derivação desta atual terceira geração do motor V8 Hemi, lançada em 2003. Diferentemente das versões mais mansas, ele não tem o sistema de desativação de cilindros (chamado comercialmente de “Multi-Displacement System”), mas mantém o supercharger IHI dos Hellcat, agora com três litros de deslocamento (em vez de 2,7 litros do Demon e do Redeye e 2,4 litros do Hellcat).
Do motor original do Demon só restou o comando de válvulas e admissão “air grabber”, que usa os intakes no capô para captar ar frio. Além do compressor de maior capacidade, o corpo de borboleta agora tem 105 mm em vez de 92 mm para se adequar à relação volume/pressão do novo supercharger — que agora produz 1,46 bar em vez de 1,05 bar. E ele continua usando o sistema de ar-condicionado para ajudar no resfriamento do ar da admissão.
A grande sacada aqui é o novo gerenciamento do motor. No Demon original a ECU tinha um mapa específico para gasolina de alta octanagem (100 AKI), que o permitia chegar aos 852 cv (com gasolina premium, de 95 AKI ele ficava nos 819 cv). Agora a ECU tem um mapa para uso de gasolina com etanol — ou seja: o Demon 170 é um carro flex, na prática. Quando o sensor de oxigênio detecta uma proporção superior a 65% de etanol, o gerenciamento do motor adota esse mapa que permite se obter os 1.040 cv.
E ele te informa disso por meio de um ícone de uma bomba de combustível no painel. Quando a proporção passa de 20% de etanol, esse ícone aparece na cor branca (no Brasil ele ficaria permanentemente aceso…). Quando a proporção passa dos 65% ele fica vermelho, indicando que a força total está disponível.
A maior pressão do supercharger e a taxa de compressão efetiva bem maior que no Demon anterior (a pressão no cilindro chega a 2.500 psi, 32% maior) exigiram também prisioneiros e porcas de aço de alta dureza com especificação aeroespacial para os cabeçotes, assim como nas capas de mancal, agora capazes de suportar 44% mais carga do virabrequim. Bronzinas, bielas e até mesmo a usinagem das camisas de cilindro foram readequadas à nova potência do motor.
Esse motor ainda é o motivo do número 170: ele é derivado diretamente do motor Hellephant C170, vendido como “crate engine” pela Dodge. No Demon, o 170 foi usado como a escala de teor alcóolico de substâncias e bebidas (como “álcool 96º”, por exemplo).
A última transmissão
Com 20% mais potência que o Demon, é claro que a transmissão também precisou de atenção. Começando pelo cardã: mais largo, com paredes mais espessas e articulações maiores ele suporta 30% mais carga que o do Demon original. A carcaça do diferencial também passou a usar ligas de aplicação aeroespacial para resistir a 53% mais carga. Internamente, a coroa e o pinhão são maiores (240 mm) e têm uma nova flange para o cardã.
Os semi-eixos (eu sei que o nome correto é “semi-árvores”, mas vou usar o jargão popular, ok?) têm 43 estrias e tratamento térmico para obter maior dureza e suportar o torque despejado pelo diferencial e vencer a aderência dos pneus — que não é pouca, como você verá a seguir.
As últimas rodas e os últimos pneus
Já reparou que o Demon 170 é “widebody” só na traseira? Pois é… ele é assim porque as rodas traseiras tem 11 polegadas de largura/tala, enquanto as dianteiras têm só oito polegadas de tala (as dianteiras têm 18 polegadas e as traseiras, 17 polegadas— sim, elas são menores). Elas são feitas de alumínio (acima), mas você pode assinalar um quadradinho e pedir para que elas sejam substituídas por um conjunto de fibra de carbono (abaixo).
Essas rodas reduzem a massa não-suspensa em 14,5 kg (5,4 kg das traseiras e 9,1 kg das dianteiras). Elas são feitas em duas peças, com a porção central feita de alumínio forjado de alta dureza, e as calotas centrais da SRT são feitas de liga de titânio.
Os pneus foram desenvolvidos pela Mickey Thompson especificamente para o Demon 170. São os chamados “street drag radials”, ou seja: um pneu de uso misto de rua e arrancada. Os traseiros têm medida 315/50 e os dianteiros 245/55. A especialidade deles está na diferença de composto e de estrutura para cada eixo.
Os traseiros são pneus de arrancada otimizados para as ruas, e usam estrutura de nylon nos flancos em vez de poliéster para otimizar a transferência de carga (aquela torção das paredes dos pneus que você vê na arrancada). Já os dianterios são pneus de rua otimizados para arrancada, por isso eles têm baixa resistência à rolagem e são mais leves. Como são menores, a dianteira não precisou dos alargadores de para-lamas, o que eliminou 7,7 kg do peso do carro.
A última redução de peso
Falando em reduzir peso… o Demon 170 é 71 kg mais leve que o Redeye Widebody. Além das rodas e dos para-lamas dianteiros, ele também tem freios dianteiros mais leves, barras estabilizadoras ocas, remoção de todo isolamento acústico, remoção do banco do passageiro e do banco traseiro, carpete mais fino, sistema de áudio simplificado e remoção do revestimento do porta-malas.
A última preparação para arrancada
Nada disso que foi dito até agora adiantaria de algo se o Demon 170 não fosse mais rápido que o Demon original na drag strip. E mais potência não serve de nada se ela não chegar ao chão para lançar o carro no quarto-de-milha.
A preparação começou pelos pneus, já mencionados, mas continua no acerto da suspensão. Ela usa amortecedores adaptativos da Bilstein e foi elevada em 10 mm para compensar a redução de 17 mm do curso, necessária para acomodar os pneus MT. A cambagem traseira também foi revisada para aumentar a área de contato quando há trasferência de carga para a traseira na arrancada. Essa transferência, aliás, também foi recalculada com a adoção de molas 35% mais macias na dianteira e 28% na traseira que as do Demon original, além das barras estabilizadoras 75% menos rígidas na dianteira e 44% na traseira.
Os amortecedores, como no Demon original, foram otimizados para esta transferência desejada na arrancada. No modo de condução “Drag”, eles têm compressão firme e retorno macio na dianteira e compressão macia e retorno firme na traseira — assim o carro “afunda” mais na traseira, aumentando a carga sobre os pneus para otimizar a tração.
O TransBrake, o sistema que permite acelerar o motor com o câmbio engrenado sem que ele se mova para atingir a rotação ideal para a arrancada, agora tem modos diferentes para diferentes níveis de aderência da pista (alta, média ou baixa). Com isso, o motor pode atingir até 2.350 rpm com o TransBrake ativado, o que resulta em um aumento de 15% no torque despejado nas rodas traseiras no instante da largada.
O desempenho final
Tudo o que você leu até agora resultou no muscle car mais potente da história, com o tempo mais baixo no quarto-de-milha, com a aceleração de zero a 96 km/h (60 mph) mais rápida de um muscle car, e capaz de atingir a maior aceleração entre os carros produzidos em série.
Traduzindo em números: em uma drag strip, com a superfície preparada com VHT, o Demon foi do zero aos 96 km/h em 1,66 segundo — o que resultou em uma aceleração longitudinal de 2,004 G (ou seja: 2 vezes a aceleração da gravidade). Considerando a aceleração média do carro e a menor área frontal resultante dos para-lamas estreitos, é certo que ele chega aos 100 km/h em menos de dois segundos.
Na mesma drag strip (a “The Strip” do Las Vegas Motor Speedway) ele cobriu o quarto-de-milha em 8,91 segundos a 243,38 km/h (151,17 mph) — o que significa que ele não pode correr oficialmente sem gaiola e para-quedas. Na prática, estamos falando de um carro capaz de chegar aos 200 km/h em menos de oito segundos.
Um muscle car de quase 2 toneladas, com um motor que usa bloco de ferro, comando no bloco, plataforma dos anos 2000. Um carro que não precisou de nada extremamente tecnológico para igualar o desempenho de muitos supercarros ultramodernos.
Nos faz pensar sobre essa obsessão por querer sempre coisas novas e sobre onde poderíamos estar se a indústria tivesse um pouco mais de liberdade para oferecer o que é melhor, e não se visse forçada a oferecer somente o que é permitido — um permitido que, cada vez mais, é obrigatório.
O Dodge Demon 170, aliás, tem um nome adequado. Talvez ele não seja um demônio pela fúria e agressividade — isso também pode ser característica dos justos. Talvez ele seja um demônio para um mondo que não permite que ele exista nem mesmo em seu cantinho, apesar de tanta gente querer o contrário — com números para comprovar.
O Dodge Challenger vai embora não por ser obsoleto, perigoso ou indesejado. Ele vai embora porque foi proibido de existir. Será que é realmente isso que queremos para o futuro?
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