Todo mundo tem algum “ódio de estimação” – aquilo que acontece quando você implica tanto com alguma coisa que acaba se apegando a ela. O famoso “acompanho só para falar mal”, sabe? E, no fim das contas, vira +uma relação até divertida.
Trazendo isso para os carros: existem alguns deles que, tanto odiar, acabamos virando meio fãs. Como aquele vilão desprezível, mas com princípios e uma boa backstory: é difícil resistir à tentação de torcer por ele. O Pontiac Aztek, que era um carro feio em qualquer época, mas também era repleto de excelente soluções de engenharia. E a Fiat Multipla, que era basicamente a mesma coisa, só que feita na Itália (e, por isso mesmo, instantaneamente mais cool).
É pela mesma razão que ficamos imediatamente atraídos por uma versão esportiva bacana de um carro que, em qualquer outra configuração, só poderia ser classificado como “medíocre”. Algo como… o Dodge Neon SRT-4. Olha só para ele, não é invocado?
O Dodge Neon é conhecido dos brasileiros como Chrysler Neon, e veio na onda de importados que se atirou sobre nossas praias na década de 1990. O Neon tinha a proposta de oferecer o conforto e o luxo que os brasileiros percebiam nos veículos americanos, custando o mesmo que um sedã médio nacional. Mas, tal como aconteceu o grandalhão Chrysler Stratus (Dodge Stratus nos EUA), com o passar do tempo as baixas vendas e a manutenção dispendiosa os fizeram desvalorizar bastante e quase desaparecer das ruas.
Nos Estados Unidos, o Neon tem a reputação de ser um veículo barato, mas sem muitos atrativos fora isso. O visual arredondado típico dos Chrysler da época divide opiniões (eu gosto); a experiência ao volante é no máximo correta; porém sem brilho; e o desempenho é apenas suficiente para uso constante – não vai emocionar ninguém, e faz do Neon uma escolha popular para os pais que querem presentear os filhos com um carro na primeira habilitação, mas fazem questão de gastar pouco.
Só que nada disso vale para o Dodge Neon SRT-4. Hoje em dia, entusiastas mais jovens que não viram esse carro quando era novo podem até caçoar dele, seja pelo visual tunado de fábrica ao melhor estilo , seja pelo fato de ele ter inspiração no Viper, porém menos da metade dos cilindros e tração nas “rodas erradas”. Mas quem acompanhou o lançamento e os testes garante que o Neon SRT-4 merecia a sigla para Street and Racing Technology que acompanhava seu nome.
O Neon nasceu como mais uma resposta da Dodge à invasão japonesa – e, diferentemente de seu antecessor, o Colt, não era um japonês rebatizado (a Chrysler tinha uma parceria de longa data com a Mitsubishi). Em vez disso, foi concebido por ex-engenheiros da AMC – a American Motors Corporation, adquirida pela Chrysler em 1987. Designed in America, by Americans.
Só que esses americans estavam mesmo era fazendo um carro japonês a seu próprio modo – linhas arredondadas, quatro-cilindros transversal, tração dianteira e foco na economia de combustível. Mas, por mais que fosse um carro moderno e jovial quando apresentado pela primeira vez, em 1995, o Neon carecia da dinâmica bem acertada e, principalmente, da qualidade de construção e acabamento que carros como o Honda Civic e o Toyota Corolla ofereciam.
A solução que a Chrysler encontrou para injetar mais personalidade ao Neon também era inspirada pelos nipônicos – não por fabricantes e modelos, mas pela cultura dos imports. E falo isso no sentido literal: o Neon SRT-4 só existe porque um cara chamado Tom Gale foi ao SEMA Show de 1998.
Gale era o vice-presidente de design e desenvolvimento de produtos da Chrysler na época. E o SEMA Show já era o principal evento voltado ao aftermarket nos EUA, repleto de projetos que serviam de vitrine para as preparadoras e fornecedoras de componentes.
Muitos desses carros eram compactos importados do Japão – Mitsubishi, Subaru, Toyota, Nissan, Mazda. Não era só o consumidor médio que estava interessado neles: a cultura do tuning estava em plena ascensão na época, e sua influência era vista no chão do SEMA. Gale voltou para casa com a ideia fixa: deveria dar um jeito de colocar aqueles elementos em um carro da Chrysler. E o Neon, que estava prestes a ganhar uma nova geração, era o veículo perfeito.
O que se seguiu foi uma pequena saga para transformar a ideia em realidade, começando com a formação de uma equipe de jovens engenheiros e designers, cheios de ânimo e inspiração de sobra – até porque o próprio Gale era o responsável pelo conceito inicial do Dodge Viper, que poucos anos antes havia tomado o mundo de assalto. Ele queria trazer elementos do Viper para o Neon SRT-4, começando pelo sobrenome.
Mas não era só isso. Por fora, havia a entrada de ar no para-choque e o scoop no capô. As rodas de cinco raios também eram muito parecidas com as que o Viper usava na época. Elas também eram maiores, de 17×6 polegadas, com pneus 205/50/17 nos quatro cantos – e seu visual era complementado pela suspensão mais baixa e firme, com molas mais duras e amortecedores Tokico com acerto exclusivo (incluindo menos curso, para reduzir a rolagem da carroceria e evitar que as rodas “pegassem” nos para-lamas).
Na dianteira, havia duas entradas de ar extras para aumentar a capacidade de arrefecimento e um lip no para-choque. As laterais também tinham saias exclusivas, e a Dodge não se acanhou em colocar na tampa traseira uma asa que não ficaria deslocada em um Subaru WRX STI contemporâneo.
No interior, mais inspiração no Viper – os bancos tinham desenho muito parecido com os do superesportivo, e garantiam muito mais apoio lateral. Mas também havia um lado Need for Speed Underground, com textura que imitava fibra de carbono no volante e na coifa do câmbio, além de uma bola prata como manopla de câmbio e acabamento que imitava metal escovado no painel e no quadro de instrumentos.
E vocês sabem o que é mais louco? Não ficava ruim – o estilo tinha propósito. E era acompanhado de um bom conjunto mecânico.
O motor era um quatro-cilindros de 2,4 litros igual ao usado pelo curioso PT Cruiser, porém com um turbocompressor para chegar aos 217 cv — no primeiro ano, número que depois aumentou para 233 cv e que, segundo testes independentes, provavelmente era menor que a potência real, estimada em algo entre 250 cv e 260 cv. A versão inicial levava 5,6 segundos para ir de zero a 100 km/h, e a partir de 2004 o tempo era de 5,3 segundos.
Sabe o que isso quer dizer? Que, quando foi lançado, o Dodge Neon SRT-4 era o segundo carro mais rápido no portfólio da Chrysler, pedendo apenas para o… Dodge Viper, que ia de zero a 100 km/h em 3,6 segundo. Ah, e as rodas abrigavam freios maiores, com discos de 280 mm na frente e de 270 mm atrás.
Quando foi mostrado pela primeira vez ao público, no SEMA Show de 1999, a recepção do público foi positiva. No Salão de Los Angeles de 2000, a mesma coisa. Mas a Chrysler, talvez temendo que o carro fosse visto como algo pretensioso demais, demorou a dar o sinal verde para o projeto – ele só veio em 2002, depois que a SRT comprometeu-se a aproveitar mais componentes de prateleira, deixando para desenvolver do zero apenas componentes críticos, como o sistema de direção.
E, ainda assim, a gigante americana estava certa de que o SRT-4 seria um produto extremamente nichado, e projetou algo em torno de 2.500 unidades por ano. A Chrysler não esperava que, em três anos, 25.000 exemplares fossem vendidos – por sorte, o Neon esportivo ainda era um Neon, e não foi difícil aumentar a produção.
No fim das contas, o maior pecado do Neon SRT-4 foi ter sido o canto do cisne de sua plataforma, a PL – que era exclusiva do Neon. Isso, porque apesar de ser o melhor Neon de todos, ele ainda era um carro de acabamento visivelmente inferior ao de um Civic ou Corolla, e era menos confiável. Se você pesquisar em sites e fóruns americanos a respeito do Neon, vai encontrar muitos relatos de problemas crônicos. E também pessoas usando termos bonitinhos como death trap e shitbox para referir-se a ele.
Por outro lado, nos últimos anos os entusiastas mais jovens parecem ter redescoberto o Neon SRT-4, encorajados pelas facilidades do mundo moderno para quem tem um carro mais temperamental. Seu visual que era o retrato da época e seu desempenho surpreendente são bons cartões de visita.
Depois do Neon, a Chrysler decidiu que a Dodge precisava mesmo era de um crossover compacto – o Caliber, que também ganhou uma versão SRT-4. Mas, diferemente do Neon SRT-4, ele era um carro previsível e comportado, e também pesado e alto, que nem de longe era divertido ou memorável como o sedã esportivo.