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Técnica

É possível fazer um motor flex (ou bi-combustível) diesel-gasolina?

Motores diesel e motores a gasolina são parecidos, mas fundamentalmente diferentes. Enquanto o primeiro  inicia a combustão por compressão, o outro usa uma centelha. Isso faz com que as diferenças pareçam reduzidas a um único elemento, mas este único elemento exige diversas características que os tornam muito diferentes.

Primeiro, há a estequiometria: comparada à combustão da gasolina, a combustão do diesel precisa de menos partes de ar (comburente) para ocorrer. Depois tem a questão da taxa de compressão: como o diesel precisa ser comprimido até ocorrer a ignição, nesses motores esta razão é muito mais elevada que em um motor a gasolina. Um motor diesel trabalha com taxas de compressão elevadas, geralmente entre 15:1 e 25:1, enquanto os motores a gasolina raramente chegam além dos 12,5:1.

Essa razão de compressão também exige reforços mecânicos, o que significa que os componentes internos  usam ligas metálicas mais resistentes. A compressão também é uma das razões para o maior torque dos motores a diesel, o que também exige componentes reforçados na transmissão. Nos anos 1980, a AMG usava bielas, pistões e virabrequim dos motores seis-cilindros diesel em suas versões preparadas dos motores seis-cilindros a gasolina.

Isto só era possível, aliás, porque a Mercedes, na época, padronizava os elementos de projeto de seus motores, como a distância de centro-a-centro de cilindro, o diâmetro e o espaçamento dos mancais, o padrão de furação da capa seca de seus câmbios etc. O que me leva a um outro assunto: embora os motores diesel e gasolina sejam diferentes, eles podem ser desenvolvidos em conjunto, de forma modular.

Um exemplo famoso é o Mercedes OM606 diesel e sua contraparte a gasolina, o M104. Eles usavam o mesmo projeto para os blocos, com modificações sutis nas galerias de arrefecimento e, claro, no cabeçote, sistema de alimentação e na liga metálica dos componentes internos. Os motores OM668 e OM640 usados, respectivamente, nas duas primeiras gerações do Mercedes Classe A também são derivados do motores M166 e M266 a gasolina.

No Brasil o caso mais conhecido é o do motor diesel da Kombi, que foi o primeiro diesel quatro-cilindros da Volkswagen, e era baseado no EA827, o nosso MD/AP. Além dele, a família Ingenium da Jaguar Land Rover também teve as versões diesel e gasolina desenvolvidas em conjunto, o que significa que eles também compartilham a arquitetura básica do bloco.

A essa altura você deve estar quase convencido de que não é possível nem mesmo converter um motor diesel para rodar com gasolina, quanto mais fazê-lo usar os dois combustíveis. Mas há uma possibilidade a caminho.

Há mais ou menos dois anos falamos sobre o motor “diesel a gasolina” que a Mazda desenvolveu para atender as novas regras de emissões dos EUA e da Europa. Ele não irá funcionar com os dois combustíveis porque isso é inviável, embora fosse teoricamente possível. Chamamos este motor de “diesel a gasolina” porque ele usa o princípio fundamental do ciclo diesel, que é a ignição por compressão, em rotações baixas.  Em rotações elevadas ele utiliza a ignição por centelha como um motor convencional.

Por isso ele poderia, teoricamente, funcionar com os dois combustíveis: ele tem taxa de compressão suficientemente elevada para que a mistura ar-combustível seja detonada pela compressão e mantém as velas de ignição. Contudo, os dois combustíveis não poderiam ser misturados no tanque, o que exigiria duas linhas de combustível — do tanque aos injetores/válvulas injetoras. Além disso, a mudança de combustível teria que ser feita manualmente com o carro parado. Considerando esta inconveniência e a inviabilidade de ter duas linhas de combustível roubando espaço e acrescentando peso, temos uma boa razão para não existirem motores bicombustível.

Mas…

Isso não significa que eles não sejam possíveis. Há uma proposta em desenvolvimento pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA, que usa um blend de gasolina e diesel para obter uma eficiência de 60%.

Batizado RCCI (sigla para Compressão e Ignição Controladas por Reatividade em inglês), ele usa duas válvulas injetoras em cada cilindro para obter uma mistura de um combustível de baixa reatividade (gasolina) a um combustível de alta reatividade (diesel).

Nesse protótipo, a combustão acontece da seguinte forma: a mistura ar-gasolina é admitida no cilindro e então há uma injeção curta de diesel. A gasolina e o diesel começam a se misturar enquanto o pistão se aproxima do ponto morto superior (PMS).

Quando ele chega ao PMS, há uma segunda injeção de diesel para realizar a ignição da mistura. Como ela está aquecida, a segunda injeção de diesel se inflama, iniciando a combustão. É como se o spray de diesel fosse uma centelha.

Segundo os pesquisadores, este motor consome menos diesel e, consequentemente, resulta em menos emissões de partículas finas — atualmente o calcanhar de Aquiles dos motores diesel.

O problema é que este motor ainda está em fase inicial de desenvolvimento. Além disso, ele ainda depende de um sistema duplo de combustível, o que ocupa espaço, aumenta o peso etc. Com sorte, os engenheiros conseguirão contornar estes problemas e, quem sabe, possamos usar um motor flex diesel-gasolina (ou diesel-etanol…) em um futuro não muito distante.