Detesto ser o desmancha-prazeres, o frente-fria, o chato que acaba com a graça das coisas, mas já chegou a hora de vocês saberem que algumas das mais famosas cenas de perseguição e corrida dos cinemas usam truques de edição e artimanhas de dublês para parecerem fazer o impossível. Decepcionado? Desculpe… mas eu tinha que contar.
Uma das cenas mais famosas da história do cinema, a corrida final de “Velozes e Furiosos” é um exemplo disso. Quando o semáforo abre e a dupla de anti-heróis acelera seus carros, o Dodge Charger de Dom Toretto se torna o primeiro carro da história a fazer um burnout e um wheelie ao mesmo tempo. Se você tem a mínima noção de física ou conhece um pouco o funcionamento de um automóvel, sabe que isso é impossível, pois o burnout acontece quando há o destracionamento da roda, e o wheelie (ou empinamento) acontece quando há tanta aderência que o torque da roda levanta a dianteira do carro por alavancagem.
Logo, se há burnout, não há torque aplicado à dianteira por alavancagem. Se há empinamento, não pode haver destracionamento. Além disso, o Charger de Toretto roda uns bons metros destracionando e com a dianteira para o alto, o que é outra inverossimilhança da cena. Afinal, estamos falando de um Charger com motor big block, supercharger e rodas Torq Thrust de 15 polegadas — tudo isso ao redor do eixo dianteiro, o que faz com que a distribuição de massa do Charger seja maior na dianteira. E isso inviabiliza um wheelie tão longo.
Os segredos do Dodge Charger de Dom Toretto no primeiro “Velozes e Furiosos”
E se você ainda quiser acreditar (eu sei como é o coração de fã…), os dois estavam em uma rua qualquer de Los Angeles, sobre asfalto comum, possivelmente com poeira e pedriscos. Onde um Dodge Charger com um big block e um blower daquele tamanho encontra aderência suficiente para um wheelie em um lugar daquele?
Aliás, você já viu um carro fazer um wheelie na rua? Na pista de arrancada é relativamente simples: você só precisa de VHT, pneus de arrancada com uma enorme área de contato e capazes de acumular uma enormidade de energia potencial elástica. E claro, muito torque.
É por isso, prezados leitores, que a cena final de “Velozes e Furiosos” usou assistência mecânica e efeitos visuais para fazer com que o Dodge Charger fizesse o impossível. O carro tinha uma wheelie bar hidráulica, que empinou a dianteira e o manteve empinado, enquanto a fumaça do “burnout” foi adicionada digitalmente. Pois é. Tudo fake, acredita?
É evidente que estou sendo irônico aqui. Mas há um elemento nessa história toda que é, no mínimo, plausível: um wheelie em vias públicas. Quer uma prova? Veja este vídeo:
Sim, é uma corrida ilegal em uma via expressa. Mas não pense na parte da moralidade e sim na questão técnica. Você notou algo nessa via expressa? Reparou que há uma mancha preta onde o Corvette estava?
Pois este é o segredo — e não se trata de uma camada insana de VHT como nas drag strips. VHT, caso você não conheça, é uma resina sintética usada para aumentar a aderência dos pneus nas pistas de arrancada e também como selante para as superfícies de corrida por ser repelente de água.
Esta mancha é formada por um pouco de VHT misturado a metanol para secagem mais rápida — e rapidez é algo crucial para quem está fazendo algo ilegal nas ruas —, posteriormente inflamado para se espalhar de forma rápida e homogênea.
Mas isso é só parte da história – a parte mais óbvia. A outra, ainda mais evidente, é o carro: você precisa de pneus largos de arrancada, para aumentar a área de contato com a superfície. E é justamente a superfície em que a corrida está acontecendo que faz toda a diferença: uma pista de concreto.
Isso, porque o wheelie depende mais da superfície do que do carro em si, considerando que estamos falando de carros feitos para arrancada. Toda arrancada — seja de uma bicicleta ou de um Boeing 747 — ocasiona transferência de carga para a traseira devido à inércia. Isso, por si, faz a dianteira de um carro ficar mais leve durante uma arrancada ou sob aceleração. Você só precisa de força suficiente para tirar a dianteira do chão.
Para entender o efeito, basta segurar uma caneta por uma ponta e balançar a outra ponta, mais distante, movendo os dedos. Seus dedos são o torque da roda, o corpo da caneta é o chassi do carro. Se as rodas traseiras do carro fossem rígidas e fixas no chão e não houvesse suspensão, qualquer aplicação de torque nas rodas poderia levantar minimamente a dianteira. Como elas não são, parte deste torque é usado para comprimir a suspensão, dobrar os pneus e o que sobrar move a roda. Se ela estiver livre, ela irá girar e carregar consigo o que estiver preso a ela — nesse caso, o carro.
A dica já está no parágrafo acima: se a roda fosse fixa no solo, qualquer aplicação de torque poderia levantar a dianteira. Se elas fossem fixas. Logo, para fazer um wheelie você precisa… aumentar ao máximo a aderência entre os pneus e o piso — ou seja: torná-la o mais próximo de algo fixo.
O segredo de se fazer um wheelie, portanto, (além do carro, claro), está no tipo de superfície em que o carro irá arrancar. Quanto mais áspera, maior será a aderência entre a roda e o piso. Isso faz com que o asfalto pareça uma superfície ideal para a tarefa, mas há um detalhe no asfalto que o torna inadequado para isso: ele usa como base derivados de petróleo, que podem amolecer sob calor extremo — o que acontece quando se faz burnouts consecutivos. Nesse caso, o asfalto amolecido começa a desprender os agregados e começa a se esfarelar. Além disso, sua aspereza é resultante das pontas dos agregados e pedriscos usados em sua composição. Pense nele como um tapete com grãos de areia: a estrutura é firme, a areia está presa à trama do tapete e a superfície é áspera, mas a área de contato é reduzida devido à irregularidade da trama e as partículas que podem se desprender afetam a aderência. O pneu com VHT sobre o asfalto é uma tira de fita adesiva colada sobre esse tapete sujo. Vai colar?
Já o concreto, apesar de ter esses agregados, é feito com pó de cimento, que tem um processo de endurecimento por reação química e não apenas por temperatura como os derivados do petróleo. Por isso, ele é aplicado na forma líquida e tem sua superfície trabalhada de acordo com a finalidade, mas ao secar, se torna mais estável. Para aplicação rodoviária, ele é texturizado para otimizar o atrito com os pneus, que é o fundamento da aderência mecânica. Além disso, por ser menos poroso e menos permeável que o asfalto, ele retêm mais borracha, o que ajuda na aderência.
É por isso que as corridas ilegais são, normalmente, praticadas em trechos de concreto. Como a superfície já é adequada, basta aplicar a mistura de VHT diluída por etanol para se ter uma simulação de drag strip nas ruas. Os corredores fazem burnouts para aquecer os pneus e a superfície preparada. O burnout é feito sobre uma pequena poça da mistura de VHT e etanol, aplicada no momento em que o carro alinha para a corrida.
Outros elementos necessários para se levantar a dianteira em uma arrancada de rua é a calibragem dos pneus traseiros com baixa pressão — o pessoal da Hot Rod Magazine recomenda usar 14 psi — e redução da carga dos amortecedores para que haja menor resistência à compressão da suspensão e, consequentemente, a energia da transferência de carga seja usada para alavancar a dianteira.
Com isso, a Agência FlatOut de Verificação de Fatos e Mitos responde: o wheelie de Toretto é plausível? Sim, porém não como aconteceu. Especialmente por que o Supra já estaria longe enquanto o Charger perde tempo fazendo fumaça e empinando o nariz. Ele não é um carro de 10 segundos?
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