“Honre o passado, mas jamais menospreze o presente, porque ele é a única chance que temos de fazê-lo especial como vemos o passado. Hamilton e Max têm certeza de que estão escrevendo um grande capítulo da história, assim como Russell, Ocon, Ricciardo e todo o restante do grid. Ou você acha que um cara de 24 anos superando um heptacampeão 12 anos mais velho é algo ocasional? Fernando Alonso fez isso e se tornou um dos grandes de todos os tempos — grande a ponto de sonhar com a Tríplice Coroa, algo que somente um piloto em toda a história conseguiu conquistar.
Estamos vivendo um grande momento do esporte, diferente daqueles passados, mas tão grande quanto. Só os saudosistas não perceberam.”
Desculpem a falta de modéstia, mas eu avisei. Há exatos dois anos, nove meses e um dia, para ser mais exato. E este último final de semana no automobilismo reforçou o aviso.
Esse trecho em itálico aí acima, é de uma pensata intitulada “Existiu mesmo uma ‘era de ouro da Fórmula 1’?”, na qual eu dizia que a ideia de que houve uma era de ouro é baseada em nossa percepção, e não na realidade. Como grande parte do público brasileiro da Fórmula 1 atual cresceu vendo uma sequência de vitórias brasileiras na TV, é natural que, para esse público, aquela tenha sido a era de ouro da Fórmula 1.
Factualmente ela foi a era em que o Brasil teve mais campeões, afinal, vimos seis títulos em 10 anos. Mas será que um torcedor alemão ou italiano diria que o período compreendido entre 1981 e 1991 foi “a era de ouro da F1”? Ou para o britânico, que viu entre 1962 e 1972 sete títulos de três pilotos? E os argentinos, que tiveram aquele considerado o maior piloto de todos os tempos nos anos 1950 e depois nunca mais?
A base da argumentação é justamente esta: o critério para o recorte de tempo e a contextualização dos números. Quando a tal era de ouro dos anos 1980 começou? Se for 1980 a 1990, temos quatro anos sem Senna e não teremos o último título dele. Nem mesmo a volta perfeita em Donington. Se for 1981 a 1991, teremos os seis títulos brasileiros, mas não teremos o titulo de Mansell nem o quarto de Prost, que o elevou a um patamar superior. Se considerarmos 1984 a 1994, temos Piquet bicampeão, Lauda conquistando seu último título, Senna estreando na Toleman, todos os títulos de Prost e Senna, o campeonato de Mansell, a chegada de Schumacher, Hakkinen, Damon Hill e o primeiro título de Schumacher. Mas faz sentido colocar 1984 e 1994 no mesmo recorte da Fórmula 1?
Percebe como o recorte influencia a percepção da “era de ouro”? Podemos estender de 1972 a 1994, quando tivemos os oito títulos brasileiros? Claro que sim. O recorte nostálgico permite tudo. Se o critério faz sentido é outra história.
E eu quero usar este último final de semana como um exemplo disso. Em 2021 a Fórmula 1 já dava sinais de que havia uma nova “era de ouro” se desenhando e que bastava olhar para ela do mesmo jeito que olhamos para os anos 1980. Até agora a temporada de 2024 teve sete pilotos de quatro equipes vencendo Grandes Prêmios e uma virada no campeonato de construtores como há muito tempo não se via em uma reta final de campeonato — a última verdadeira disputa ponto-a-ponto do título de construtores aconteceu em 1999, entre a Ferrari e a McLaren, enquanto uma virada nas últimas corridas aconteceu pela última vez em 1997 (há quase 30 anos!), quando a Williams tomou a liderança da Ferrari após o GP da Áustria, a quatro etapas do final.
Podemos comparar com a “era de ouro” dos anos 1980? Até podemos, mas a questão é: como fazer isso? Qual será o critério de recorte? Em 2024 temos dez anos de regulamento de motores, algo que aconteceu em 1987. A temporada de 1987 teve cinco vencedores de GP, domínio da Williams no Mundial de construtores e quatro equipes ganhando corridas, enquanto a temporada de 1988 foi muito parecida com a de 2023, considerando o domínio de um carro/equipe. E se você quer algo ainda mais parecido, a temporada de 2016 teve um multicampeão (Hamilton) disputando o título com um piloto experiente ainda sem títulos (Rosberg), em um carro dominante (Mercedes), com uma única equipe (Red Bull) quebrando a sequência de vitórias.
Claro, no caso da temporada de 1988 tivemos dois dos maiores nomes da Fórmula 1 em uma mesma equipe, algo que só vimos em 2007 quando Alonso e o então novato Hamilton dividiram a McLaren, mas com um resultado desastroso para a equipe. Isso também mostra como é difícil comparar as épocas a fim de tentar responder objetivamente qual era melhor.
Em 2024 temos a terceira temporada com um novo regulamento para os carros. Poderíamos comparar com 1986, a terceira temporada sem efeito solo e com peso mínimo de 540 kg. Foi a temporada na qual Mansell e Piquet dividiram a Williams em duas metades e Alain Prost correu por fora com seu McLaren para conquistar o bicampeonato. Nesse sentido as temporadas são parecidas: houve cinco vencedores de GP de quatro equipes diferentes, com uma disputa acirrada entre McLaren e Williams no Mundial de construtores. Na ocasião, havia quatro campeões mundiais na pista, ante os três que temos hoje.
Existe a possibilidade, contudo, de a história se repetir de forma parecida: Max conquista o título de pilotos como Prost, mas quem leva o título de construtores é a McLaren, como a Williams naquele 1986. Aqui temos a semelhança que nos traz uma questão: qual a diferença prática da temporada de 1986 e da temporada de 2024? Regulamento novo, mas não muito. Tecnologia de motores dominada. Pilotos novatos correndo com campeões, com múltiplos vencedores de provas e uma disputa acirrada do campeonato.
Antes que você argumente que é a qualidade dos pilotos, eu mesmo vou trazer isso. Tínhamos Piquet, Senna, Mansell, Prost, Rosberg, Johansson, Arnoux e Berger. Mas lembre-se que só Piquet, Rosberg e Prost tinham títulos até ali. Lembre-se que Norris e Leclerc podem estar na mesma posição que Senna e Mansell estavam em 1986, empilhando pódios e vitórias e ganhando experiência para um futuro título. Quem vai saber? A “era de ouro” é um conceito nostálgico baseado na projeção do passado, ele só pode existir muito tempo depois de acontecer — ninguém percebe que uma época de ouro está acontecendo.
Mas deveria, e é por isso que é importante deixar um pouco o passado de lado e viver mais no presente. Imagine se a temporada de 2024 (ou de 2025, ou de 2026…) se tornar uma das maiores da história. Onde você estava quando tudo isso aconteceu? Lamentando o passado que você não viveu?
Pare de comparar estatísticas da Fórmula 1 para saber “quem é melhor”
E se você está pensando em empurrar dados e tudo mais para argumentar, já adianto que não vai funcionar. Eu já fiz isso antes (acima) e expliquei que não funciona porque a comparação é impossível devido à quantidade de fatores variáveis envolvidos — desde tecnologia, passando por número de provas, riscos de acidentes, até compostos de pneus, uso de combustível etc.
Além disso, permitam-me trazer uma outra citação própria publicada mais recentemente aqui no FlatOut, mais especificamente no início de 2023. Ela tem a ver com a “era de ouro”, e diz o seguinte:
“Se o torcedor brasileiro quer ver brasileiro ganhando nas pistas… bem… os brasileiros vencedores estão por todos os lados. Sempre estiveram. A gente é que estava olhando para o lado errado.”
Também neste final de semana, vimos Gabriel Bortoleto assumir a ponta do campeonato de F2 a duas etapas do final da temporada. Ainda há quatro corridas (duas sprint races e duas corridas full), mas há chances de Gabriel conquistar o título de Fórmula 2 neste ano antes de ser confirmado para a temporada de 2025 da Fórmula 1 pela Sauber/Audi.
É, sem dúvida, um grande momento para o automobilismo brasileiro que coincide com um ótimo momento da Fórmula 1. É preciso admirar e respeitar o passado, mas olhe o que está acontecendo agora. Quando vimos isso pela última vez? Quando teremos esse momento de novo?
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