É bastante difundida no Brasil a ideia de que um carro com mais de 100.000 km marcados no hodômetro é “muito rodado”. Não é incomum ver, no mercado de usados, carros que custam mais caro porque a quilometragem ainda não passou dos cinco dígitos – a percepção geral é que um carro com 105.000 km é está muito mais desgastado do que um exemplar com 95.000. E é fácil se deixar levar por esta ideia – quando meu carro virou 100.000 km, apesar de ficar orgulhoso (afinal, ele tinha 47.000 km quando entrou para a família), senti uma pontinha de angústia, como se soubesse que a partir dali ele já seria considerado, por algumas pessoas, um “carro velho”. Mesmo que, na prática, nada nele tenha mudado e tudo funcione exatamente como era dezenas de milhares de quilômetros atrás.
E olhe que eu estou falando de um carro popular 1.0 fabricado em 2008 – um carro projetado para uso constante, com manutenção simples e barata. Não é nenhuma Ferrari, embora também seja vermelho e “italiano” (entre aspas, pois foi fabricado em Betim/MG). As Ferrari, por outro lado, são provavelmente os superesportivos que demandam mais gastos na compra, na manutenção e nos consertos. Mas nada disto impediu o proprietário de uma F430 Spider de rodar nada menos que 253.453 km com seu carro, cuidando dela exatamente como se deve. Tanto que, honestamente, a Ferrari não aparenta ter uma quilometragem tão alta.
O pessoal do canal GTBoard trocou um ideia com o cara, que mostrou os detalhes do carro e explicou os serviços de manutenção realizados na F430. Não fica claro exatamente quando a Ferrari foi fabricada – pode ter sido em qualquer ano entre 2005 e 2009, o que coloca a idade deste carro entre 9 e 13 anos. Ou seja, ela rodou em média algo entre 19.000 e 28.000 km por ano – o que é bem mais do que a média para qualquer Ferrari.
Começando pelo lado de fora, nota-se que o carro foi muito bem cuidado, embora seja possível notar que o para-choque dianteiro foi trocado pela peça da 430 Scuderia Spider, com entradas de ar maiores e um spoiler embutido mais proeminente. Dito isto, esta é uma modificação relativamente comum entre os proprietários da F430, e não significa necessariamente que o carro foi batido. No mais, o aspecto da carroceria Rosso Corsa, das rodas, faróis e lanternas e demais detalhes externos é ótimo. Vale lembrar que a F430 Spider foi a primeira Ferrari V8 com construção toda em alumínio, o que certamente ajuda em sua durabilidade.
Do lado de dentro nota-se que o acabamento de Alcantara na base do volante está gasto e perdeu sua textura aveludada, e que os comandos do rádio ficaram meio frouxos. Fora isto, as condições do habitáculo também parecem excelentes – a fibra de carbono no topo do volante parece nova, sem quaisquer riscos ou raspões, e o mesmo pode ser dito das aletas para troca de marchas no volante. Mesmo o manettino usado para alternar entre os modos de condução está bem firme e sem folgas.
Falando em marchas, o dono diz que o carro jamais teve motor e transmissão abertos – o motor V8 de 4,3 litros e 490 cv a 8.500 rpm ainda tem os mesmos pistões, bielas, juntas dos cabeçotes, virabrequim, trem de válvulas e bloco que usava quando saiu da fábrica, e o mesmo vale para as engrenagens da transmissão. Dito isto, o dono afirma que já trocou o jogo completo de velas de ignição 25 vezes (ou uma vez a cada 10.000 km, em média) e que a caixa eletro-hidráulica de seis marchas já usou quatro jogos de embreagens (uma nova a cada 60.000 km, aproximadamente). Para conseguir preservar tão bem o conjunto mecânico, certamente o dono desta F430 foi bastante rigoroso na hora de fazer a manutenção – que, vale lembrar, só conta com revisões programadas até os 150.000 km, o que implica que a própria Ferrari sabe que é muito raro um exemplar permanecer em atividade por tantos quilômetros assim.
É preciso levar em conta a natureza deste motor: um V8 italiano de alto rendimento, capaz de girar a quase 9.000 rpm e que, por conta disto, é superdimensionado e utiliza materiais muito mais sofisticados – uma forma de garantir durabilidade mesmo com o alto nível de estresse ao qual os seus componentes são submetidos. O que impressiona, portanto, não é tanto o fato de o conjunto mecânico durar tanto tempo, mas sim de alguém ter se dedicado tanto a manter uma Ferrari com a manutenção em dia por tantos quilômetros. Especialmente uma F430 com câmbio F1, cuja manutenção é caríssima – aliás, em carros como este, serviços mais pesados podem custar perto do preço do próprio carro.
Além disso, há a cultura de se vender o carro antes que o mesmo desvalorize – algo que, ao contrário do que se possa pensar, também ocorre no mundo dos supercarros. Esta F430 certamente é uma exceção, e tem tudo para ser uma das Ferrari mais rodadas do mundo. Mas, se tratando de supercarros com alta quilometragem, há outros casos notáveis de outras marcas.
Um deles é o Porsche 911 Turbo mais rodado do planeta, com impressionantes 1.160.000 km e contando. Bill MacEachern foi o primeiro canadense a comprar o Porsche 930 quando ele foi lançado, em 1976, e está com ele desde então. Atualmente com 81 anos de idade, MacEachern é dono de uma lavadora de estofados, e há quatro décadas usa o esportivo com motor flat-six turbo de três litros e 260 cv para visitar clientes.
Bill diz que “a quilometragem só foi aumentando, aumentando e aumentando” o longo dos anos, e já mandou fazer o motor do carro quatro vezes. O objetivo agora é chegar a 1 milhão de milhas – pouco mais 1.600.000 km.
Já este Lamborghini Murciélago pertence a Simon George, dono de uma empresa especializada em passeios com supercarros no Reino Unido – você paga para dirigir um superesportivo por algumas horas. Simon comprou o Murciélago em 2004, depois de vender tudo o que tinha, e decidiu que o próprio carro se pagaria.
Deu certo e, com 260.000 milhas (quase 420.000 km) marcadas no hodômetro, o Murciélago é a estrela da frota da 6th Gear Experience e também serve como daily driver de George, que já precisou reconstruir o carro inteiro após uma colisão com uma árvore. O motor V12 de seis litros e 580 cv já teve os cabeçotes refeitos três vezes, e a caixa manual de seis marchas já passou por oitro trocas de embreagem – um serviço que exige a retirada do motor.
Voltando a nossa realidade, agora talvez você fique mais tranquilo ao considerar a compra de um carro com mais de 100.000 km rodados.